O ÓDIO QUE VEIO DO ESPAÇO

Às 14h45 de um belo domingo, o hemisfério ocidental da Terra foi atingido por raios cósmicos provenientes da remota Nebulosa Philistheum. Felizmente boa parte da radioatividade foi filtrada pela atmosfera terrestre, mas um buraco na camada de ozônio permitiu que uma descarga massiva atingisse em cheio boa parte do território brasileiro. O bombardeio galáctico teria sido considerado portentoso, caso os cientistas tivessem tomado conhecimento do ocorrido e possuíssem instrumentos capazes de captar as ignotas frequências siderais.

Tal como se deu, o evento cósmico passou totalmente despercebido pela humanidade. Mas os seus efeitos não tardariam a serem sentidos pelos brasileiros, os mais afetados pelas invisíveis emanações.

O mais significativo é que o fenômeno teve curtíssima duração. Do momento em que a chuva radioativa invadiu a atmosfera até se entranhar na crosta terrestre sem deixar vestígios, menos de meio segundo se passou. Isso determinou um curioso efeito nas pessoas das regiões atingidas.

Exatamente às 14h45 daquele domingo, aqueles que estavam exalando o ar dos pulmões não sofreram qualquer influência dos raios cósmicos. Mas quem estava inspirando nesse exato momento acabou inalando algumas partículas provenientes da distante nebulosa.

Essas pessoas sentiram, em maior ou menor grau, algum estranhamento devido ao contato com a força alienígena. Algumas chegaram a tossir ou espirrar, eliminando parte da carga recebida e atenuando os efeitos que logo começariam a se fazer sentir.

A princípio nada de anormal foi registrado. Alguns esparsos incidentes aleatórios ganharam o noticiário: o espancamento de artistas de rua em ônibus e sinais de trânsito, brigas em festas e shows degenerando em morte, diversos atos de vandalismo e incêndio criminoso cometidos contra universidades, bibliotecas e outros espaços culturais. Contudo tais episódios não chegaram a se destacar, em meio à crescente onda de violência urbana no Brasil.

Tudo mudou drasticamente após as eleições presidenciais. O candidato eleito, valendo-se de uma intensa campanha de ódio e uma enxurrada de notícias falsas, teve ascensão meteórica e tomou as urnas de assalto. No dia de sua vitória, metade da população saiu gritando pelas ruas, em frenéticas comemorações, enquanto a outra metade assistia em aturdido silêncio, sem entender nada daquilo que estava acontecendo.

É que o presidente estava entre os que haviam inalado a toxina sideral, junto com quase todos os que compunham sua equipe. Os poucos imunes foram logo afastados nos primeiros meses de governo e substituídos por outros que também haviam sido afetados.

Agora alçada ao patamar da Presidência da República, a doença da nebulosa não tardou a exibir catastróficos sintomas. Os randômicos vandalismos da fase inicial da epidemia, ao se institucionalizarem, acabaram virando decretos, medidas e resoluções desconcertantes:

– Extinção dos cursos de Humanas nas universidades públicas.

– Fechamento de rádios, teatros e salas de arte federais.

– Fim das leis e editais de incentivo à cultura.

– Controle estatal das produções do cinema nacional.

– Rígida orientação ideológica nas escolas de ensino médio e fundamental.

– Proibição do samba, da capoeira e de todas as manifestações da cultura popular.

– Criminalização de todas as religiões não oficiais.

– Fechamento das bibliotecas e livrarias e queima de livros em praça pública.

O mais estarrecedor, para os não afetados pela virose espacial, era que cada nova determinação do governo, que lhes causava sempre maior abjeção e horror, era invariavelmente celebrada pelos que não se sabiam doentes como um novo ato de pura sabedoria, ditado pela infalível bondade divina. De tão embasbacados diante dessa bizarra sequência de eventos aparentemente inexplicáveis, os ainda saudáveis foram ficando cada vez mais débeis em seus protestos e intimidados em sua oposição. Dia a dia, diminuíam as vozes da resistência.

Até que um cientista paraibano, verdadeiro gênio da raça, ao estudar as cartilhas astronômicas se deu conta do fenômeno cósmico ocorrido naquela fatídica tarde de domingo:

– As radiações da Nebulosa Philistheum provocaram uma espécie de alergia aguda: uma intolerância severa a toda forma de Arte.

Felizmente o mal não era irreversível:

– Basta prepararmos uma vacina para a população infectada, que tudo voltará a ser como era antes.

Tarde demais, no entanto: as forças entrópicas que moviam o governo já estavam além de qualquer controle. A essa altura, a apologia à vacinação havia sido declarada crime de lesa-majestade, punível com a morte. O cientista paraibano foi fuzilado no pátio da PE de João Pessoa.

por Fabio Shiva

Fabio Shiva
Enviado por Fabio Shiva em 21/07/2019
Código do texto: T6700862
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