NOTÍCIAS DA DEMOCRACIA
Ao contrário do que se poderia esperar, a proliferação de Fake News determinará o poderio ainda maior de alguns poucos noticiários autorizados, em um futuro não muito distante. Na típica residência dos Souza, por exemplo, o horário das refeições será ditado pela programação do jornal local e nacional.
– O jantar está esfriando, Carol – avisará a mãe, Eleonor, em tom de súplica. – O jornal já vai começar.
– Estou indo – responderá a filha, de má vontade.
Na sala, o restante da família estará sentado à mesa, de frente para a tevê posicionada em local de honra.
– Você mima demais essa menina, Eleonor – resmungará Humberto, marido e pai, dando uma garfada em seu prato. – Toda noite é a mesma aporrinhação.
– Isso é só uma fase passageira, coisa de adolescente – contemporizará a mãe.
– Posso usar o controle da Carol? – pedirá novamente Ricardinho, o caçula.
– Não, meu filho – responderá Eleonor, tomando o aparelho das mãos do menino e devolvendo-o ao seu lugar, junto ao prato de Carol. – Já disse que só quando você fizer 13 anos.
– Aposto que eu sei votar melhor do que ela – retrucará o menino, inconformado.
– Disso eu não duvido – falará o pai, mastigando um naco da comida. – Mas silêncio agora, que o jornal está começando.
A tela da tevê mostrará duas jovens esbeltas apresentando o noticiário. Uma delas dirá:
– Boa noite. Dentro de instantes começaremos falando sobre a situação econômica do país. Os telespectadores que possuem o dispositivo de opinião remota já podem votar agora.
Em imediata obediência a esse comando, Humberto e Eleonor apontarão seus controles para a tela da tevê. Cada um apertará com insistência a tecla colorida, dentre as seis disponíveis, que melhor representa o seu estado de espírito com relação à notícia que será dada.
– Mas onde está essa menina? – reclamará o pai, irritado. – Toda noite é a mesma história.
– Carol – implorará a mãe, aflita.
– Pronto, já cheguei – responderá a filha, avançando até o local vago na mesa. Antes mesmo de se sentar, ela apanhará o seu controle remoto e o apontará ostensivamente para a tevê. – Resolvido: acabou-se a agonia!
E será bem a tempo. Logo a seguir a outra apresentadora começará a ler a notícia, que será ilustrada por uma série de imagens pertinentes:
– Os brasileiros podem comemorar boas conquistas na área da economia. A taxa de desemprego finalmente começa a dar indícios de que vai diminuir, alavancada pelo aquecimento do comércio, pelo crescimento da indústria e pelas boas safras registradas no último trimestre. Depois de uma longa recessão, nosso país finalmente está começando a crescer.
– Até parece – deixará escapar Carol, entre os dentes, enquanto se serve de comida.
O pai baterá com a mão na mesa, encolerizado:
– Você sabe que esse tipo de atitude não é tolerado nesta casa, mocinha.
Ao notar o olhar consternado da mãe, Carol dará de ombros, em um gesto de pouco caso:
– Está bem. Que seja.
O jantar decorrerá em silêncio durante os comerciais. No retorno do jornal, a primeira apresentadora dirá:
– Agora vamos falar sobre os índices de criminalidade nos grandes centros urbanos. Os telespectadores já podem votar.
Então o irmão caçula fará a denúncia:
– Carol não está votando! Ela só está fingindo que aperta os botões!
O pai olhará para ela com estupefação e ultraje. A mãe ficará totalmente horrorizada. A menina dará de ombros mais uma vez, jogando com displicência o controle sobre a mesa de jantar:
– Não vejo sentido em ficar assistindo notícias que nós mesmos decidimos como serão – ela afirmará simplesmente, com indiferença. – Nada disso está acontecendo de verdade.
Eleonor ainda tentará conciliar:
– Minha filha, quantas vezes nós lhe dissemos que não importa o que acontece de fato, e sim o que o povo acredita que acontece?
– Ficar repetindo os mandamentos de comunicação não vai me convencer, mãe – retrucará a menina. – Qual a graça de ver um jornal que só transmite notícias que nos agradam?
– Não é assim não, mocinha – vociferará o pai, congestionado. – Pois se a maioria das notícias é terrível, ao ponto de me deixar fervendo de ódio!
– O senhor me desculpe, pai – Carol ousará interromper, fitando o pai diretamente nos olhos. – Mas não são essas notícias que lhe deixam com ódio, elas só justificam o ódio que o senhor já sentia antes.
– Agora chega – rugirá o patriarca, trêmulo de indignação. – Você passou dos limites.
Mas antes que ele tenha tempo de pensar em alguma punição adequada, a menina já está se levantando da mesa:
– Quer saber de uma coisa? Perdi o apetite.
Ao ver a filha se encaminhando para a porta da rua, Eleanor perguntará, alarmada:
– Mas para onde você vai a essa hora, minha filha?
– Vou ver o mundo real, mãe. Quem sabe não descubro alguma verdadeira novidade?
E a filha baterá a porta atrás de si, deixando o restante da família assistindo em consternado silêncio às notícias nas quais eles perderam a oportunidade de votar. Por fim o pai dirá, suspirando, como se encerrasse o assunto:
– Essa juventude de hoje não tem jeito mesmo: cada dia mais alienada.
por Fabio Shiva