Tornamo-nos deuses na tecnologia, mas permanecemos macacos na vida.

Frase de

- Arnold Toynbee

 









Ainda é cedo, mas preciso trabalhar. Tomo rapidamente minha pequena refeição da manhã. Duas barras de proteína e uma porção de chá sintético descem sem gosto e sem problemas. Passo minha pulseira de id junto da fechadura e tranco o cubículo que o governo me cede em troca do trabalho. O barulho metálico seco fica para trás junto daquilo que chamo de lar.

Ao descer para a rua vejo meus vizinhos e alguns colegas. Aceno para alguns e cumprimentos outros poucos. Todos presos na mesma rotina monótona e maçante até o metrô. Nenhum de nós tem direito de possuir um carro, na verdade não possuímos direito nenhum, como um nome ou qualquer outra coisa parecida, nem mesmo podemos nos chamar de homens, pois o termo foi proibido pelas novas leis do Governo Único Matriarcal. Somos subindivíduos, mas pela facilidade da pronúncia atualmente somos chamados apenas de “Subs”.

No caminho até a estação de metrô passamos por três bloqueios para averiguação. Como a interação entre os gêneros é proibida, somos vigiados por andróides armados que nos escaneiam e checam nossas pulseiras de id. Sobre nossas cabeças, drones de vigilância fixam suas câmeras de alta definição em cada movimento. A rotina de sempre. Após atravessarmos os bloqueios chegamos à estação central, onde pegamos o bom e velho trem para o distrito industrial. Num dia bom levamos trinta minutos para chegar às fábricas, nos piores, chegamos mais cedo.

Os trens saem impecavelmente no horário, se você os perde leva uma pequena suspensão administrativa, se acontece mais uma vez você é realocado e perde automaticamente seu posto, na terceira ganha uma passagem só de ia até as prisões de vácuo do governo, um saco-cela preto e o resto da vida vegetando. Não há justiça, pelo menos se você nasceu um sub. Olho pelas janelas do trem por um momento, a cada quarteirão do setor se vêem dezenas de holo-propagandas do governo.



 



 

...

 


 

Após um dia inteiro de trabalho pesado voltamos para casa. A viagem de volta parece mais longa do que deveria. No horizonte posso ver bem as muralhas que delimitam a zona de exclusão, agora iluminadas pelas incontáveis torres de vigia. Atrás delas parece haver um sol, mas um tipo de sol colorido e vivo. Lá atrás, a cidadela das Mães da Nação brilha pulsante protegida por muralhas tão altas que nem podemos imaginar o quanto, mesmo assim conseguimos ver a luz dos prédios mais altos e a beleza opressiva e opulenta de sua superioridade.

É uma pena, mas nós nunca poderemos ir lá, somos os destruidores do mundo, os Pais da Grande Guerra. Não temos direito nenhum à felicidade, temos de trabalhar e reconstruir o novo mundo, pagar pelos nossos pecados e aguardar pelo descanso da morte justa. Pelo menos é isso que nos ensinam desde que somos gerados.

Aprendemos nos primeiros anos de vida que a humanidade quase foi destruída pela guerra que criamos, as grandes cidades desapareceram e o pouco do que restou estava quase totalmente contaminado pela radiação. Algum tempo depois as pessoas que restaram começaram a adoecer, mas somente os homens sofreram com a morte terrível da peste nascida da guerra. Quem sobreviveu à doença foi sentenciado pelo novo governo único a reconstruir o país para pagar pelos crimes contra o mundo. Desde então, geração após geração de cópias somos guiados pelas mulheres, nossas mães, as Mães da Nação. Nossas donas.



Olho mais uma vez além das muralhas e penso o quanto seria mais fácil se eu tivesse nascido como uma delas.










PS:Esse conto foi escrito ao som de "I Walk Alone" de Tarja Turunen

Jeff Silva
Enviado por Jeff Silva em 25/06/2019
Reeditado em 14/02/2024
Código do texto: T6681675
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