A estranha visitante
A ESTRANHA VISITANTE
Miguel Carqueija
O imenso facho de luz branca varre os ares e a tremenda voz da sereia ecoa entre o nevoeiro.
A noite negra amortalha o gigantesco Farol da Urca, sentinela avançada do perigoso Golfo do Rio de Janeiro.
É o dia 10 de dezembro de 1993, uma sexta-feira. Alex Fontenova observa a noite sem estrelas, sem lua, e procura distinguir alguma coisa no mar lá embaixo, diante do farol. O nevoeiro, porém, impede quase toda a visão. De qualquer forma, Alex não se preocupa muito. Já poucos navios arriscam passar nessa área tida por alguns como amaldiçoada. Alex sente crescer dentro de si a angústia que o corrói como um bicho devorador. É estar sozinho demais. No começo, pensa ele, deve ter sido diferente. Quando o Rio de Janeiro afundou em sua maior parte, ainda se tentou conservar alguma coisa da antiga importância. O entusiasmo, porém, diminuíra progressivamente nos últimos vinte anos e agora o faroleiro da Urca devia ser o mais solitário cidadão da Terra.
Alex vai até a varanda e observa o mar diretamente abaixo, onde a visão é mais nítida. Ele observa as ondas intermináveis, que o lembram de alguns filmes de bela fotografia, como "O encouraçado Potemkin" de Serguei Eisenstein.
Algo, alguma coisa parece brilhar na escuridão lá embaixo. Que poderia ter sido? O clarão logo desaparece. Alex julga-se delirar, mas não tem a menor intenção de ir lá ver. Afinal, o que poderia ser, em plena água?
............................................................
14 de dezembro de 1993, terça-feira. O calor é sufocante. Alex nada um pouco pela manhã, gozando o infravermelho, e pensa, pensa muito, como nunca consegue deixar de fazer, mesmo quando relaxa.
Terminando de nadar ele se enxuga e se veste, e dirige-se à porta dos fundos. Pensa nos pais, que se acham tão distantes; na namorada, que rompeu com ele há tempos. Pensa no telefone, tão difícil de funcionar, e no aparelho de rádio, parado por defeito. As verbas nunca chegam para as necessárias reformas. Tudo ficou mais difícil depois que transferiram a capital do país para Juiz de Fora. Alex sonha com o dia em que poderá ter uma família, não lá, evidentemente; não naquela droga de farol, que isso não era a vida que ele pedira a Deus. O farol era uma entidade fria. Não transmitia o calor de uma casinha de tijolo, com flores no quintal e um caminho de pedras até o portão de madeira, onde uma garota de cabelos longos e grossas sobrancelhas vinha recebê-lo sorridente...
A mão direita de Alex fecha-se sobre a maçaneta da geladeira. Sorri amargamente, paralisando-se um instante. Quanto tempo, quantos anos ainda... quando poderia ter uma chance, arranjar outro emprego, viver no meio das pessoas?
....................................................................
22 de dezembro de 1993, quarta-feira à noite. É outro dia em que a angústia cresceu como um negro fantasma. As cartas de seus pais e irmãs, recebidas na véspera, aguçaram a sua solidão. Os jornais também eram antigos. Falavam na guerra estúpida que Austrália e Nova Zelândia travavam há meses. Falavam na crise ministerial do Brasil e nos preparativos para a próxima Copa do Mundo de futebol no Japão, em 1994. A televisão é outra coisa que raramente funciona no farol. Parecia uma armadilha. Era como se o farol fosse um lugar encantado, uma voragem, um “maelstrom”...
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24 de dezembro de 1993, sexta-feira. O rádio deu alguns chiados como de hábito, e no meio da estática foi possível ouvir a notícia — na verdade, só parte dela — da trégua celebrada entre Austrália e Nova Zelândia. Ainda funciona o espírito natalino? Como quer que fosse, ao menos durante o Natal não haveria bombardeios e as crianças das grandes cidades neozelandesas e australianas poderiam atravessar a rua sem temor.
Embora a temperatura tenha caído Alex sua e bate os dentes de febre, enquanto verifica o equipamento eletrônico do farol. A manutenção da IBM só passa uma vez por ano exceto se houver chamada de emergência. Isto é insuficiente, considerando-se a delicadeza do equipamento e a gravidade que pode alcançar um sinistro naquelas águas. O terrível naufrágio do “Queen Mary” em 1955 jamais será esquecido. Principalmente pelos adeptos de Juscelino Kubtcheck, nome tido como certo para ganhar as eleições presidenciais daquele ano. Alex sabe que será responsabilizado se algo assim tornar a acontecer, ainda mais considerando os recursos de última geração que hoje o farol possui. Não se sente consolado com tais pensamentos.
25 de dezembro, sábado. Que estranho parece, um Natal cair em dia de sábado! Como devem estar reclamando no mundo civilizado, a perda deste feriado e do outro, o Ano Novo! Para Alex não faz diferença. Havendo um só homem para trabalhar, não há como usar feriados. Ainda mais quando vidas humanas dependem disso...
Boiando na água, pela manhã, Alex fita a imensa vidraça do farol, uns cinquenta metros acima. Vidro inquebrável, refratário, diziam que poderia aguentar séculos, enquanto a frágil vida humana ia e vinha...
Tendo colocado a bermuda e a camiseta, Alex retorna à sua imponente atafona, pensando em conferir os aparelhos, utilizando inclusive o sugador de poeira. Esse inimigo quase invisível penetra em tudo, provocando abrasão. Um onipresente inimigo da civilização, quase esquecido mas sempre ativo, pensa Alex filosoficamente. Então, ao fitar o chão, iluminado pela luz do dia, que penetra pela janela na parede de pedra, Alex toma um choque. Marcas de pés molhados, que o antecederam, dirigem-se para a escada.
Alex sobe correndo, tão excitado que nem tomar precaução em não fazer ruído. Crê que os pés são de mulher ou criança, devido ao tamanho. Não sabe o que pensar. Ao chegar porém à ante-sala de seu quarto, já não sente grande surpresa. Alguém teria de estar ali ou por perto, e lá estava ela.
Sentada no chão, recostada numa poltrona, estava certamente a esperá-lo. Ao vê-lo entrar levanta-se lépida e sorridente.
— Oi, Alex. Que bom que você chegou.
Alex não entende. Fita-a sem compreender. A garota de “colant” é uma aparição incrível naquele local solitário. Os cabelos molhados, cor de fogo, apesar da água ostentam ondas encantadoras. Mas o principal são os olhos, azuis como o mar quando não está poluído. Azuis e obsedantes, uma voragem ótica...
— Quem é você? E como chegou aqui?
Ela sorri e se aproxima.
— Alex, você é uma alma pura e bondosa, como restam poucas no mundo. Almas assim às vezes recebem favores especiais do Criador. Não me pergunte mais detalhes que eu não saberei dizer. Há alguns dias eu vim do continente, num submarino individual, cheguei aqui de noite, e desde então venho sondando...
— À noite? Foi no dia dez?
— Creio que sim. Você viu alguma coisa?
— Daqui de cima... vi uma luz...
— Era eu. Trouxe rações comigo, não precisei me mostrar logo.
— Mas eu não estou entendendo... você já me conhecia?
— Não, e aí é que está a beleza de tudo isso. Você não é uma pessoa solitária, não está sofrendo por não ter casado e constituído família? Pois é, eu sei de tudo isso. Não precisa se assustar, eu sou tão humana como você. Só que eu sonhei com você, com seu farol, e procurei me informar, me certificar. Então, vim.
Alex encostou-se na parede, como se buscando apoio. A mente ainda recusava crédito às implicações de tudo aquilo.
— Por que você esperou quinze dias?
Ela aproxima-se mais, coloca as mãos em seus ombros e, pondo-se nas pontas dos pés, beija as suas faces. Como para selar, pudicamente, o início de tudo.
— Tolinho! Eu quis ser o seu presente de Natal! Não podia me mostrar antes...
Ele quer saber mais sobre ela, mas a emoção o sufoca. A intuição lhe diz que tudo aquilo é verdade. Uma verdade que supera tudo o que ele podia esperar do futuro...
A garota, entusiasmada, continua falando e acariciando seus ombros:
— É claro que o seu exílio terminará. Você não será orgulhoso de recusar trabalhar comigo. Sou micro-empresária, no ramo da informática. Mesmo sendo tão romântica. Você dará o aviso prévio e voltará para o mundo. Criaremos meia dúzia de filhos e seremos felizes para sempre.
Perplexo, Alex entretanto sente que só precisa de uma coisa agora: aceitar o que parece fantástico.
— Eu adoraria tudo isso — diz ele, fitando os olhos de Maelstrom que o sugam. — Mas... preciso saber quem é você...
A garota de cabelos cor de fogo responde, radiante:
— Eu sou a sua alma gêmea.
NOTA: este conto foi escrito há muitos anos, e supõe uma grande catástrofe atingindo o Rio de Janeiro no final do século XX. Trata-se de uma realidade alternativa.
A ESTRANHA VISITANTE
Miguel Carqueija
O imenso facho de luz branca varre os ares e a tremenda voz da sereia ecoa entre o nevoeiro.
A noite negra amortalha o gigantesco Farol da Urca, sentinela avançada do perigoso Golfo do Rio de Janeiro.
É o dia 10 de dezembro de 1993, uma sexta-feira. Alex Fontenova observa a noite sem estrelas, sem lua, e procura distinguir alguma coisa no mar lá embaixo, diante do farol. O nevoeiro, porém, impede quase toda a visão. De qualquer forma, Alex não se preocupa muito. Já poucos navios arriscam passar nessa área tida por alguns como amaldiçoada. Alex sente crescer dentro de si a angústia que o corrói como um bicho devorador. É estar sozinho demais. No começo, pensa ele, deve ter sido diferente. Quando o Rio de Janeiro afundou em sua maior parte, ainda se tentou conservar alguma coisa da antiga importância. O entusiasmo, porém, diminuíra progressivamente nos últimos vinte anos e agora o faroleiro da Urca devia ser o mais solitário cidadão da Terra.
Alex vai até a varanda e observa o mar diretamente abaixo, onde a visão é mais nítida. Ele observa as ondas intermináveis, que o lembram de alguns filmes de bela fotografia, como "O encouraçado Potemkin" de Serguei Eisenstein.
Algo, alguma coisa parece brilhar na escuridão lá embaixo. Que poderia ter sido? O clarão logo desaparece. Alex julga-se delirar, mas não tem a menor intenção de ir lá ver. Afinal, o que poderia ser, em plena água?
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14 de dezembro de 1993, terça-feira. O calor é sufocante. Alex nada um pouco pela manhã, gozando o infravermelho, e pensa, pensa muito, como nunca consegue deixar de fazer, mesmo quando relaxa.
Terminando de nadar ele se enxuga e se veste, e dirige-se à porta dos fundos. Pensa nos pais, que se acham tão distantes; na namorada, que rompeu com ele há tempos. Pensa no telefone, tão difícil de funcionar, e no aparelho de rádio, parado por defeito. As verbas nunca chegam para as necessárias reformas. Tudo ficou mais difícil depois que transferiram a capital do país para Juiz de Fora. Alex sonha com o dia em que poderá ter uma família, não lá, evidentemente; não naquela droga de farol, que isso não era a vida que ele pedira a Deus. O farol era uma entidade fria. Não transmitia o calor de uma casinha de tijolo, com flores no quintal e um caminho de pedras até o portão de madeira, onde uma garota de cabelos longos e grossas sobrancelhas vinha recebê-lo sorridente...
A mão direita de Alex fecha-se sobre a maçaneta da geladeira. Sorri amargamente, paralisando-se um instante. Quanto tempo, quantos anos ainda... quando poderia ter uma chance, arranjar outro emprego, viver no meio das pessoas?
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22 de dezembro de 1993, quarta-feira à noite. É outro dia em que a angústia cresceu como um negro fantasma. As cartas de seus pais e irmãs, recebidas na véspera, aguçaram a sua solidão. Os jornais também eram antigos. Falavam na guerra estúpida que Austrália e Nova Zelândia travavam há meses. Falavam na crise ministerial do Brasil e nos preparativos para a próxima Copa do Mundo de futebol no Japão, em 1994. A televisão é outra coisa que raramente funciona no farol. Parecia uma armadilha. Era como se o farol fosse um lugar encantado, uma voragem, um “maelstrom”...
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24 de dezembro de 1993, sexta-feira. O rádio deu alguns chiados como de hábito, e no meio da estática foi possível ouvir a notícia — na verdade, só parte dela — da trégua celebrada entre Austrália e Nova Zelândia. Ainda funciona o espírito natalino? Como quer que fosse, ao menos durante o Natal não haveria bombardeios e as crianças das grandes cidades neozelandesas e australianas poderiam atravessar a rua sem temor.
Embora a temperatura tenha caído Alex sua e bate os dentes de febre, enquanto verifica o equipamento eletrônico do farol. A manutenção da IBM só passa uma vez por ano exceto se houver chamada de emergência. Isto é insuficiente, considerando-se a delicadeza do equipamento e a gravidade que pode alcançar um sinistro naquelas águas. O terrível naufrágio do “Queen Mary” em 1955 jamais será esquecido. Principalmente pelos adeptos de Juscelino Kubtcheck, nome tido como certo para ganhar as eleições presidenciais daquele ano. Alex sabe que será responsabilizado se algo assim tornar a acontecer, ainda mais considerando os recursos de última geração que hoje o farol possui. Não se sente consolado com tais pensamentos.
25 de dezembro, sábado. Que estranho parece, um Natal cair em dia de sábado! Como devem estar reclamando no mundo civilizado, a perda deste feriado e do outro, o Ano Novo! Para Alex não faz diferença. Havendo um só homem para trabalhar, não há como usar feriados. Ainda mais quando vidas humanas dependem disso...
Boiando na água, pela manhã, Alex fita a imensa vidraça do farol, uns cinquenta metros acima. Vidro inquebrável, refratário, diziam que poderia aguentar séculos, enquanto a frágil vida humana ia e vinha...
Tendo colocado a bermuda e a camiseta, Alex retorna à sua imponente atafona, pensando em conferir os aparelhos, utilizando inclusive o sugador de poeira. Esse inimigo quase invisível penetra em tudo, provocando abrasão. Um onipresente inimigo da civilização, quase esquecido mas sempre ativo, pensa Alex filosoficamente. Então, ao fitar o chão, iluminado pela luz do dia, que penetra pela janela na parede de pedra, Alex toma um choque. Marcas de pés molhados, que o antecederam, dirigem-se para a escada.
Alex sobe correndo, tão excitado que nem tomar precaução em não fazer ruído. Crê que os pés são de mulher ou criança, devido ao tamanho. Não sabe o que pensar. Ao chegar porém à ante-sala de seu quarto, já não sente grande surpresa. Alguém teria de estar ali ou por perto, e lá estava ela.
Sentada no chão, recostada numa poltrona, estava certamente a esperá-lo. Ao vê-lo entrar levanta-se lépida e sorridente.
— Oi, Alex. Que bom que você chegou.
Alex não entende. Fita-a sem compreender. A garota de “colant” é uma aparição incrível naquele local solitário. Os cabelos molhados, cor de fogo, apesar da água ostentam ondas encantadoras. Mas o principal são os olhos, azuis como o mar quando não está poluído. Azuis e obsedantes, uma voragem ótica...
— Quem é você? E como chegou aqui?
Ela sorri e se aproxima.
— Alex, você é uma alma pura e bondosa, como restam poucas no mundo. Almas assim às vezes recebem favores especiais do Criador. Não me pergunte mais detalhes que eu não saberei dizer. Há alguns dias eu vim do continente, num submarino individual, cheguei aqui de noite, e desde então venho sondando...
— À noite? Foi no dia dez?
— Creio que sim. Você viu alguma coisa?
— Daqui de cima... vi uma luz...
— Era eu. Trouxe rações comigo, não precisei me mostrar logo.
— Mas eu não estou entendendo... você já me conhecia?
— Não, e aí é que está a beleza de tudo isso. Você não é uma pessoa solitária, não está sofrendo por não ter casado e constituído família? Pois é, eu sei de tudo isso. Não precisa se assustar, eu sou tão humana como você. Só que eu sonhei com você, com seu farol, e procurei me informar, me certificar. Então, vim.
Alex encostou-se na parede, como se buscando apoio. A mente ainda recusava crédito às implicações de tudo aquilo.
— Por que você esperou quinze dias?
Ela aproxima-se mais, coloca as mãos em seus ombros e, pondo-se nas pontas dos pés, beija as suas faces. Como para selar, pudicamente, o início de tudo.
— Tolinho! Eu quis ser o seu presente de Natal! Não podia me mostrar antes...
Ele quer saber mais sobre ela, mas a emoção o sufoca. A intuição lhe diz que tudo aquilo é verdade. Uma verdade que supera tudo o que ele podia esperar do futuro...
A garota, entusiasmada, continua falando e acariciando seus ombros:
— É claro que o seu exílio terminará. Você não será orgulhoso de recusar trabalhar comigo. Sou micro-empresária, no ramo da informática. Mesmo sendo tão romântica. Você dará o aviso prévio e voltará para o mundo. Criaremos meia dúzia de filhos e seremos felizes para sempre.
Perplexo, Alex entretanto sente que só precisa de uma coisa agora: aceitar o que parece fantástico.
— Eu adoraria tudo isso — diz ele, fitando os olhos de Maelstrom que o sugam. — Mas... preciso saber quem é você...
A garota de cabelos cor de fogo responde, radiante:
— Eu sou a sua alma gêmea.
NOTA: este conto foi escrito há muitos anos, e supõe uma grande catástrofe atingindo o Rio de Janeiro no final do século XX. Trata-se de uma realidade alternativa.