Há um médico a bordo?
Wilmer Hasselblad dormitava na confortável poltrona do voo comercial, que o conduzia no longo trajeto entre a ilha tropical de Yi-Sahuni e a cidade costeira de Bakla, no continente meridional de Garmak, um planeta distante mais de 500 anos-luz da Terra, quando a voz aflita da chefe das comissárias se fez ouvir pelos alto-falantes da cabine:
- Há algum médico a bordo?
Hasselblad despertou de imediato. A aeronave não era hiperssônica, e estavam na metade da viagem, que duraria ainda cerca de duas horas até o aeroporto mais próximo - coincidentemente, em Bakla, o destino final. Aprumou-se na poltrona e olhou em ambas as direções do corredor central, para ver se alguém se habilitava. A maioria dos passageiros era composta de turistas e empresárias garmakianas, classificação DBCL - seres humanoides respiradores de oxigênio com a costumeira disposição cabeça, tronco e membros. Ademais, possuíam pele lisa e cinzenta, sem pelos, três olhos e seis dedos em cada mão - e eram hermafroditas ovíparas, embora a reprodução quase sempre se desse de forma sexuada. Além das garmakianas, estavam a bordo meia dúzia de extraplanetários - inclusive ele, Hasselblad, o único DBDG. Com alívio, viu que um desses "estrangeiros" ergueu-se da poltrona: era um kem-ooh, classificação DBAC - humanoides de pele verde, sangue à base de cobre, uma narina na nuca.
- Eu sou o doutor Jaziananuth - apresentou-se ele através do Tradutor Universal que trazia pendurado no pescoço. - Quem está com problemas?
Uma das comissárias garmakianas conduziu o esguio kem-ooh para a parte traseira da aeronave, sob os olhares curiosos dos demais passageiros. Sendo uma pessoa discreta, Hasselblad acomodou-se em sua poltrona e fechou novamente os olhos, dando o caso por encerrado. Abriu-os segundos depois, quando os alto-falantes deram novamente sinal de vida:
- Há alguém da Pesquisa Colonial a bordo?
Até onde ele sabia, era o único membro da entidade naquele voo. Ergueu-se, e uma comissária foi até ele.
- Sou Wilmer Hasselblad, analista de segunda classe da Pesquisa Colonial - identificou-se. - Mas não tenho nenhuma formação médica, faço parte da equipe de auditoria.
- A pessoa Jaziananuth solicita a sua presença junto à pessoa com problemas - explicou a comissária.
Ainda sem entender a razão pela qual estava sendo convocado, Hasselblad seguiu pelo corredor até a última fileira de poltronas, sob o olhar atento dos demais passageiros. E ao ver o kem-ooh ajoelhado ao lado do paciente, entendeu o motivo: quem estava ali, dentro de um traje de pressão flexível e transparente, não era um DBCL, nem DBDG, muito menos um DBAC, mas um TRLH - uma criatura exótica ("pessoa", corrigiu-se mentalmente), que lembrava um paguro vermelho de dois metros de altura; se paguros usassem trajes de pressão e respirassem uma mistura de amônia e metano. O TRLH jazia imóvel em seu assento, os dois pares de órgãos locomotores inferiores pendendo do assento, os dois superiores cruzados em "x" sobre a parte do corpo que emergia da carapaça cônica protetora. O médico ergueu-se e olhou para Hasselblad como quem pede desculpas.
- Lamento ter que lhe incomodar, mas embora eu seja médico, meus conhecimentos práticos não vão além de pacientes DB, respiradores de oxigênio. A pessoa H'ra-Aha-Uhl está fora do meu escopo.
- Já tive contato com indivíduos TRLH, mas não sou médico - replicou Hasselblad. - Mas vamos ver se poderei ajudá-lo... a pessoa está consciente?
- Aparentemente sim, embora só tenha falado coisas sem sentido... talvez um problema no Tradutor Universal - especulou o médico.
Hasselblad curvou-se sobre H'ra-Aha-Uhl - e imediatamente sentiu cheiro de amoníaco.
- Está sentindo esse cheiro? - Indagou para o médico.
- Qual cheiro? - O kem-ooh parecia surpreso, e só então Hasselblad lembrou-se de que, para o olfato daquela espécie, amoníaco deveria cheirar como rosas. Talvez achasse que se tratava de algum perfume dos TRLH.
- Estou sentindo cheiro de amônia - explicou Hasselblad, embaraçado, como se por um momento fossem confundi-lo com um cão farejador. - Isto pode significar que o traje de proteção está vazando e que o indivíduo aí dentro está perdendo a consciência.
- Daí as palavras sem sentido - ponderou o médico. - E acredita que possa localizar e tapar o vazamento?
- Me ajude a virar a pessoa - solicitou o analista. E para o TRLH:
- Não se assuste... vamos movê-lo para verificar se há algum vazamento no seu traje. Entendeu?
Nenhuma resposta. Preocupado, Hasselblad começou a virar cuidadosamente a carapaça dorsal de H'ra-Aha-Uhl , protegida pelo traje. Finalmente, identificou uma rachadura quase imperceptível numa das mangueiras que iam do tanque pressurizado de amônia até o interior do traje.
- Aqui! Temos que tapar isso... comissária!
Uma das atendentes veio correndo com um rolo de fita adesiva. Hasselblad enrolou a fita sobre o vazamento e depois, olhos lacrimejando, cheirou para ver se ainda havia alguma saída de gás. Aparentemente, problema resolvido. Olhou para o indicador de pressão na manga de um dos membros superiores de H'ra-Aha-Uhl e ficou apreensivo.
- O traje devia estar vazando há algumas horas, e ou a pessoa não percebeu, ou o indicador está com defeito. Quando relaxou para dormir a bordo, deve ter perdido a consciência. Pelo manômetro externo do tanque de amônia, não possui mais de 30 minutos de gás restante.
- Não vamos pousar antes de 1 hora e meia - a comissária juntou as mãos, num gesto muito humano de preocupação. - E não carregamos amônia a bordo.
Hasselblad ergueu-se para refletir no que fazer, enquanto H'ra-Aha-Uhl dava sinais de vida: descruzou os membros superiores e gemeu.
- Calma, H'ra-Aha-Uhl - disse Hasselblad. - Estamos trabalhando para te ajudar.
E virando-se para a comissária:
- Vocês usam hidróxido de amônio como material de limpeza na cozinha de bordo? Amoníaco líquido?
- Creio que temos algumas garrafas no depósito - avaliou a comissária.
- Traga tudo o que tiver - ordenou Hasselblad.
Ele desacoplou um dos tanques de amônia vazios do traje de pressão, e quando a comissária voltou com meia dúzia de garrafas, começou a despejá-las rapidamente dentro do cilindro. Finalmente, fechou-o e viu o ponteiro do manômetro voltar lentamente para a área verde do medidor.
- Espero que isso funcione - declarou. E então, abriu lentamente o registro do tanque que acabara de encher.
No assento, H'ra-Aha-Uhl começou a mexer-se. E a emitir um som que parecia de tosse. Finalmente, exclamou num tom de profunda irritação:
- Que fedor desgraçado é esse?
Hasseblad deu um tapinha no ombro do doutor Jaziananuth e comentou, antes de voltar ao seu assento:
- Pode lhe dar alta.
- [05-04-2019]