No coração do espaço

A viagem interestelar já durava mais de dez anos-luz e a grande nave singrava solitariamente o oceano entre as estrelas. Viajando próximo à velocidade da luz ela era não mais que um ínfimo ponto na vastidão do espaço.

Em seu interior três astronautas estavam em estado de animação suspensa. Poderosas máquinas mantinham suas funções vitais reduzidas a um nível mínimo, essenciais para que estes chegassem em plena integralidade orgânica.

Um longo caminho descortinava-se à frente daqueles viajantes. Seu destino final: um pequeno planeta orbitando uma estrela anã há mais de noventa trilhões de quilômetros de distância.

UM PEQUENO PLANETA

Niward é um pequeno mundo circulando uma estrela chamada Ran. Vegetação abundante, nove pequenos oceanos e uma grande variedade de animais e insetos compõem o seu rico ecossistema. Além de Niward apenas mais um planeta forma a família de Ran, mas este é formado por imensos vulcões, sendo incompatível com o desenvolvimento de qualquer organismo.

A vida formou-se em Niward há pouco mais de três bilhões de anos. Uma longa evolução se processou até que os últimos duzentos mil anos de sua existência viu surgir uma espécie animal que se destacava das demais pela capacidade de criar e operar instrumentos.

Longas eras foram necessárias até que esta espécie se tornasse dominante sobre o planeta. Com o passar dos séculos sociedades surgiram e morreram, pequenas e grandes guerras aconteceram, pestes devastaram milhões, revoluções religiosas, científicas e culturais as mais variadas aconteceram.

Tudo isso terminou por fazer surgir uma civilização que, finalmente, havia superado sua capacidade para autodestruir-se.

Niward era agora um mundo em que as grandes contradições sociais haviam diminuído sensivelmente e onde liberdade, respeito, igualdade e progresso caminhavam juntos.

UM PASSO ALÉM ...

Após centenas de anos acumulando conhecimentos sobre astrofísica, astronáutica, fisiologia e outras ciências, bem como a construção de inúmeros artefatos tecnológicos voltados para vencer a vastidão entre as estrelas, eles estavam prontos para tentarem o grande salto.

Era chegado o momento de atravessar o abismo que os separavam do único lugar com razoáveis chances de haver vida inteligente: uma estrela anã situada há pouco mais de dez anos-luz de distância.

Não havia sido fácil. Resistências de todos os tipos tiveram que ser vencidas e a busca pelos recursos para o maior projeto científico da história de Niward consumiu o tempo, a saúde e vida de muitos.

Um momento único e singular descortinava-se à frente dos habitantes daquele pequeno e solitário planeta.

Quando finalmente os preparativos para a gigantesca odisseia terminaram uma onda de medo, especulações e ansiedade tomou conta de todos. Se a missão tivesse sucesso um gigantesco impacto cultural e social aconteceria pelas próximas décadas. Cada sociedade, cidade, religião e habitante do planeta sentiria de maneira indelével as mudanças que ocorreriam caso fosse encontrado vida inteligente.

Com um futuro desconhecido à sua frente a grande nave partiu.

NA IMENSIDÃO DO ESPAÇO

Enquanto os três astronautas viajavam pelo grande mar estelar os habitantes do pequeno planeta levavam suas vidas de sempre: trabalhavam, amavam, faziam planos, nasciam e morriam.

No interior da nave a inteligência artificial que controlava tudo dedicava especial atenção aos astronautas hibernando. Cuidados extremos com o sistema de sustentação de vida eram essenciais para o sucesso da missão. Perda de massa óssea, pressão intracraniana, alterações neurológicas e endocrinológicas eram só alguns dos problemas monitorados pela IA que comandava a nave. Dez anos dormindo em um casulo requeriam vigilância contínua.

A confiança na precisão e eficácia das máquinas que compunham a grande nave era total. Qualquer problema que surgisse durante a viagem teria que ser resolvido pela IA ou pelos astronautas, caso estivessem despertos, sem o suporte de sua base lançadora uma vez que qualquer comunicação levaria anos para ser recebida.

Eles estavam sozinhos na imensidão estelar. Ninguém iria ajudá-los caso alguma coisa desse errado.

O TERCEIRO PLANETA

Ao aproximar-se do seu objetivo a grande nave dirigiu-se de imediato ao terceiro planeta mais próximo da estrela que dominava o sistema. Todos os dados informavam ser este o único, dos nove corpos que orbitavam a estrela, com reais possibilidades de conter algum tipo de organismo vivo.

A longa jornada chegava ao fim.

Era chegado o momento de despertar e a inteligência artificial assim o procedeu. Três astronautas há muito adormecidos foram finalmente retirados de seu estado de hibernação.

Larcck 54, Gen 9 e Filo 31 despertaram lentamente. Suas funções orgânicas sendo otimizadas aos poucos. Uma miríade de sensações misturando-se com lembranças que emergiam de cérebros há muito adormecidos: O sorriso de um filho deixado para trás, o medo de não retornar para casa, um mergulho em uma piscina de águas azuladas, uma paixão perdida. Essas lembranças e muitas outras foram organizando-se no córtex cerebral.

Os três viajantes estavam agora plenamente despertos.

Há aproximadamente seiscentos mil quilômetros de distância descortinava-se um planeta de dimensões um pouco maiores que Niward. Circundando este havia um pequeno satélite.

Os três astronautas olhavam por uma das grandes escotilhas da nave e era nítido que havia um certo desconforto entre eles: a sua frente estava um planeta de coloração cinza-escura circundado por um pequeno satélite que apresentava belos reflexos prateados.

Os cálculos projetavam 97% de possibilidade de vida no planeta. A distância deste em relação à sua estrela eram muito favoráveis ao surgimento de diversas substâncias e gases que propiciariam o surgimento de vida animal e orgânica em sua superfície. Havia algo de errado ali.

Imediatamente sondas de investigação foram enviadas ao planeta e mostraram que a atmosfera deste se encontrava impregnada por bilhões de toneladas de detritos radioativos e a sua superfície apresentava temperaturas baixíssimas.

Eles estavam diante de um mundo sem vida.

Decidiram que seria impossível um pouso lá, os protocolos de segurança eram bem claros em relação a isso.

ACHADOS ARQUEOLÓGICOS

A inteligência artificial da grande nave calculou que há 13 anos passados do tempo local, ocorreu um evento que causou a destruição global do planeta. O que de fato ocorreu e os detalhes da grande catástrofe provavelmente jamais seriam conhecidos na sua totalidade.

Algo aconteceu àquele planeta justamente quando ele estava muito próximo de estabelecer o primeiro contato extraterrestre.

Os três astronautas decidiram realizar uma ampla investigação objetivando entender o que de fato havia ocorrido.

Um número grande de pequenos satélites artificiais foi detectado orbitando o planeta. Deduziu-se que provavelmente serviriam para facilitar as comunicações ou avaliar condições climáticas. Alguns foram capturados e a IA da nave de Nward levou pouco tempo para entender a dinâmica de funcionamento deles.

Uma avaliação inicial permitiu aos três astronautas compreenderem que os seres daquele planeta se utilizavam de um sistema binário em suas transmissões tanto analógicas quanto digitais. Todos os artefatos capturados eram produtos de uma tecnologia distante no tempo, calculada em pelo menos quinhentos anos de atraso em relação às máquinas que compunham a grande nave.

O próximo passo seria um pouso no pequeno satélite. Talvez ali houvesse alguma coisa que fornecesse respostas que ajudassem a esclarecer as causas da morte do planeta.

Astronautas Nardwianos já haviam pousado em outros corpos celestes, mas seria a primeira vez que seria realizado um pouso em um lugar que se sabia, quase com total exatidão, já ter sido visitado por uma outra raça extraterrestre.

Os dois astronautas designados para a missão seguraram a respiração quando o módulo de descida pousou tranquilamente na superficie do pequeno astro.

Um olhar ao redor permitiu a estes divisarem um mundo cheio de montanhas, crateras e platôs. Um lugar onde o peso deles era seis vezes menor do que quando estavam na gravidade artificial da nave. Não acharam um lugar bonito e viram que não era muito diferente de Indor e Mror, as pequenas luas de Niward.

Larcck 54 e Gen 9 quase tiveram uma síncope quando encontraram pegadas totalmente preservadas na superfície. Eram marcas perfeitamente visíveis de pés calçados e bem menores do que os deles. Elas ficariam ali, bem como as suas, por milhares de anos em função da ausência de ventos e outras forças atmosféricas para movimentarem a fina poeira.

Uma bela e indizível sensação tomou conta dos corações e mentes daqueles astronautas tão distantes de sua casa ...

Em pouco tempo uma infinidade de objetos e artefatos foram encontrados espalhados pela superfície do satélite. A atmosfera rarefeita do pequeno satélite possibilitou que as coisas descobertas estivessem em perfeito estado. Alguns tiveram sua finalidade facilmente deduzíveis, outros pareciam sem sentido.

Reunidos em um compartimento que agora servia de depósito para os objetos recolhidos os três astronautas olhavam e discutiam. Entre eles pairava um certo ar de reverência perante aqueles artefatos.

Larcck 54, Gen 9 e Filo31 olhavam para os estranhos objetos já catalogados e avaliados:

- Uma espécie de veículo sobre rodas que permitiu a estes terem uma noção da envergadura física dos seres que moraram no extinto planeta. Concluindo-se que estes apresentavam um tipo físico um pouco menor que os Niwardianos.

- Duas pequenas esferas que talvez fossem alguma espécie de objeto de adorno.

- Uma pequena estatueta. Provavelmente com funções religiosas.

- Uma fotografia retratando quatro seres, sendo um macho e uma fêmea adultos e dois pequenos macho. Provavelmente constituindo um núcleo familiar e com um biótipo semelhante aos habitantes de Niward.

- Uma espécie de pena. Proveniente de algum animal voador.

- Um objeto que pela sua aparência poderia ter servido como martelo.

- Uma placa contendo caracteres completamente estranhos, indicativo

de alguma mensagem.

- Um aparelho refletor de radiação eletromagnética.

- Pedaços variados de um metal inexistente na tabela periódica de Niward.

Todos esses achados ajudaram a compor um mosaico de como eram fisicamente os seres que habitavam o planeta e que tipo de tecnologia eles chegaram a desenvolver antes de desaparecerem. Estava mais do que claro que eles já haviam desenvolvido a capacidade para voos espaciais, ainda que muito incipiente, mas também foram capazes de criar artefatos de destruição em massa.

Provavelmente seus habitantes causaram uma grande conflagração nuclear que terminou com a vida sobre o planeta. Essa era conclusão final.

DE VOLTA PARA CASA

Era chegado o momento do retorno para casa. Havia um clima de frustração muito grande entre os três astronautas niwardianos. Trilhões de quilômetros foram percorridos em busca de vida e tudo o que se encontrou foi um planeta morto.

Os artefatos achados e meticulosamente guardados eram a prova viva da mais fantástica descoberta científica da história de Niward. Eles propiciariam muitos anos de pesquisas e discussões apaixonadas.

Mesmo assim faltava algo ...não houve um contato com outra inteligência, não ocorreu o estranhamento que só a proximidade com outra espécie poderia propiciar.

Havia uma civilização naquele pequeno planeta. Aqueles seres amaram, procriaram, construíram um mundo, fizeram suas revoluções e um dia destruíram-se.

Atravessados por um sentimento de tristeza e inspirados por uma última ideia antes de mergulharem em hibernação, os três astronautas fizeram um pedido a IA da grande nave: solicitaram que esta rastreasse se alguma informação estranha, algo que fosse anômalo, havia sido guardada nos computadores que compunham os satélites por eles capturados.

Sim, havia algo. Era só um pequeno conjunto de coordenada espaciais.

Alguém havia inserido nos protocolos do primitivo computador um preciso mapa estelar mostrando um satélite que circundava o maior planeta daquele sistema estelar.

Imediatamente as lentes do poderoso telescópio a bordo da grande nave foram direcionadas para a região descoberta na tentativa de ver alguma coisa. Pequenas sondas viajando a um quarto da velocidade da luz chegaram rapidamente as imediações do quadrante descoberto.

Foi impossível aos três astronautas conterem um grito de felicidade quando viram o que as imagens mostravam.

No coração do espaço o que restava de uma civilização tentava escapar a um destino trágico. Seis grandes naves usando um sistema de propulsão muito antigo cruzava a imensidão estelar. Eles ousaram enfrentar o abismo entre as estrelas.

Os niwardianos não estavam mais sozinhos ...

* Todos os objetos descritos no conto existem de fato e foram deixados na superfície da Lua pelas missões Apollo.

** Um conto construído ao som de Travis, Smashing Pumpkins, Coldplay, Rubel e Nando Reis. Livremente baseado em livros de Clarck, Asimov e Sagan.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 12/03/2019
Reeditado em 12/03/2019
Código do texto: T6595863
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