O'Brasil

Morogh O'Ley havia bebido um pouco além da conta naquela noite. E na noite anterior. E na anterior àquela. Ultimamente, era uma das poucas coisas na vida que lhe davam certo contentamento; isso e xingar a mulher, que cansada do bêbado em que ele se tornara, retornara para a casa da mãe viúva em Murloghmore. Trocando pernas pela estrada deserta, O'Ley caminhava rumo à vila vizinha de Irros Ainhagh quando viu um facho de luz que se aproximava dele pelo alto. Não era, obviamente, a lua cheia, logo intuiu, sentindo-se subitamente curado da bebedeira. Caiu sentado na estrada, tremendo.

A luz provinha da parte de baixo de um estranho aparelho que lembrava uma grande cobertura de bandeja metálica, maior do que uma diligência de passageiros, e que girava sobre seu eixo produzindo um suave zumbido, como de uma colmeia no verão. O veículo aéreo estendeu três pernas metálicas e pousou ao lado da estrada sob o olhar arregalado de Morogh, absolutamente paralisado. Finalmente, uma escada metálica projetou-se do ventre do aparelho e por ela desceram duas criaturas humanoides vestidas com roupas prateadas e um capacete transparente sobre a cabeça. Os rostos que o encararam eram humanos, embora parecessem bem mais morenos do que os nativos da região.

- Vocês... vocês são espanhóis? - Conseguiu indagar Morogh em irlandês.

Os dois estrangeiros entreolharam-se. Finalmente, o que parecia ser o mais velho dos dois, questionou, num latim com sotaque estranho:

- Você me compreende?

Morogh balançou afirmativamente a cabeça. Para alguma coisa agora serviam as aulas que o pai lhe pagara na juventude, imaginando que ele poderia ter seguido carreira eclesiástica.

- Em que data estamos? - Inquiriu o homem.

- Abril de 1668... - retrucou Morogh. - Não sei o dia ao certo...

Os visitantes começaram a discutir numa língua desconhecida; o mais jovem consultava um objeto chato, que parecia uma placa de metal. Finalmente, pareceram chegar a um consenso e o mais velho voltou a dar atenção a Morogh.

- Desculpe, não perguntei seu nome... e que lugar é esse.

- Eu sou Morogh O'Ley, e vocês desceram no distrito de Balynahinsk.

- Balynahinsk - repetiu o visitante mais jovem. - Esse é mesmo o nosso homem.

- Eu sou... o quê? - Indagou Morogh preocupado.

- Parabéns, O'Ley! Você vai ter o privilégio de conhecer O'Brasil - disse o mais jovem, apontando um tubo prateado para ele.

Morogh sentiu uma picada no ombro direito. Em seguida, tudo ficou escuro e ele desabou na estrada.

* * *

Quando a mãe lhe informou que o marido estava ali, à procura dela, Mairéad, que alimentava os gansos, temeu pelo pior.

- Ele está sóbrio - tranquilizou-a a mãe. - Roupas limpas, cabelo penteado.

Mairéad foi até a sala da casa simples e ali estava ele: Morogh O'Ley, sentado calmamente num tamborete de três pernas. Ele ergueu os olhos quando a avistou e parecia um homem diferente; transformado.

- Amada esposa - ele disse, erguendo-se. - Vim pedir o seu perdão.

- Morogh... o que houve? - Indagou ela, surpresa.

- Eu passei por uma... experiência - declarou ele, de modo misterioso. - Vi coisas que nenhum outro homem jamais contemplou.

Mairéad aproximou-se do marido, cuidadosamente. Não sentiu cheiro de bebida.

- Eu não bebo nunca mais, Mairéad - declarou Morogh. - Estive em O'Brasil.

- O'Brasil... a ilha mágica? - Indagou a mulher, incrédula.

- Essa mesma. Parece loucura, mas fui levado por dois homens numa carruagem... - ia acrescentar "aérea", mas não queria que o relato parecesse ainda mais louco do que já era. - Disseram que me conheciam e que iriam me ensinar um meio de sairmos dessa miséria em que caímos depois que confiscaram nossos bens.

Mairéad apenas balançava a cabeça, sem saber o que dizer.

- Me deram isto - apanhou a bolsa de viagem e dali retirou um manuscrito com páginas de pergaminho.

- Eu não sei ler, você sabe - replicou a mulher.

- É um compêndio médico - explicou ele. - Um livro que reúne todos os conhecimentos da medicina dos antigos! Está escrito em irlandês e latim... os homens de O'Brasil falam latim.

- Certo, entendi - replicou Mairéad. - Mas você não é médico! O que vai fazer com esse livro?

- Mulher, você não entendeu? Com este livro, eu vou poder trabalhar como médico!

E com o manuscrito presenteado pelos viajantes de O'Brasil, Morogh O'Ley e esposa mudaram-se para o porto de Galway, onde ele começou a praticar a medicina. E aos que questionavam a sua falta de conhecimento formal, ele contava a história do seu contato imediato do terceiro grau com os habitantes de O'Brasil.

- [07-03-2019]