Contos do inverno nuclear - Os mísseis de outubro e a primavera de 75
(Por Jota Alves)




FOME E PERSONALIDADE

A comida era escassa, apenas alguns nacos de carne de frango, dos poucos que conseguiam criar, ovos, milho e ervilhas enlatadas. Quantidade insuficiente para um grupo de mais de trinta pessoas. Mesmo assim a divisão era rigorosamente igual para todos.

A fome era uma companheira constante daquele pequeno grupo de homens e mulheres.

Anos de privações e sofrimento transformam qualquer ser humano. Alguns passaram a ser mais solidários, empreendedores e combativos, outros ficaram mais egoístas, taciturnos, impulsivos ou covardes.

O medo, a fome e o desespero estavam moldando o caráter dos sobreviventes.

O primeiro ano foi o mais difícil de todos. O frio intenso, as doenças e a violência que tomou conta das cidades ceifaram a vida da maioria das pessoas. Talvez fosse a primeira vez na história da humanidade que uma tragédia atingiu totalmente as pessoas sem perguntar por raça, gênero, credo religioso, etnia, condição social ou situação geopolítica.

O mundo nunca mais foi o mesmo depois dos misseis de outubro.

Eleonor também nunca mais foi a mesma. Aquela garota de dezesseis anos que gostava de passear na praça e que se envaidecia com os olhares que recebia não existia mais. O que existe agora é uma mulher de vinte e nove anos que sobrevive às duras penas com o que restou após ser brutalmente violentada: um filho de doze anos e uma vontade férrea de lutar e viver.

UM CORPO NA NEVE

Eleonor acha que o frio será para sempre, parece que nunca mais haverá um único dia de calor. Ela daria tudo por uma tarde bem calorenta, dessas em que o suor faz com que as roupas fiquem grudadas no corpo.

Ela anda desajeitada com as roupas improvisadas para combater o clima hostil, seus pés afundam na neve. Por um segundo ela lembra-se da cena de um filme antigo em que a mocinha fica brincando de jogar bolas de neve com o seu namorado. Ela amava ir ao cinema. Logo ela afasta esse pensamento, não existem mais cinemas.

Ela e seu grupo já estavam há mais de uma hora andando naquela campina gelada quando se depararam com o corpo de um homem. Inicialmente acharam que ele estava morto. Havia um ferimento extenso em suas costas e o sangue havia manchado abundantemente suas roupas. Apesar da vasta barba que lhe cobria o rosto percebia-se que era um homem ainda jovem.

Houve uma breve discussão sobre a viabilidade de levá-lo com eles ou se seria melhor deixa-lo para morrer. Decidiram carregá-lo com eles até o seu abrigo.

CONFRONTO

Um mundo em que as convenções sociais foram, literalmente, explodidas, as fronteiras entre o certo e o errado tornam-se rarefeitas e anárquicas. Em um contexto assim conflitos transformam-se na regra. Matava-se e morria-se por comida, por território, pela posse de um simples casaco ou de meia dúzia de ovos.

O grupo de Max era menor que outro, na proporção de três para um. Não dava para vencer, mas também não havia como fugir. Paus, facas, lanças e pedras eram as armas. Max agradeceu aos céus pelos adversários não terem armas de fogo, assim eles teriam uma chance.

A luta não durou muito. Seus quatro companheiros foram logo mortos contra apenas dois dos atacantes.

Em pouco tempo os gritos e gemidos cessaram. Restava o sangue espalhado na neve e corpos que logo seriam esquecidos.

O ferimento em suas costas era profundo, mas não impediu que corresse. O medo o empurrava para frente. Dava para sentir seus inimigos muito próximos. De repente o chão fugiu sobre seus pés e ele deslizou por aquilo que antes deveria ter sido uma ribanceira qualquer.

Seu corpo caiu em uma posição esquisita e lá ficou. Por algum motivo seus perseguidores resolveram deixá-lo no fundo daquela ribanceira, talvez acreditando que ele morreria congelado em pouco tempo.

UM OUTRO AMANHECER

Sentia seu corpo muito dolorido e parecia que suas costas tinham explodido. Aos poucos foi abrindo os olhos e explorando o ambiente ao redor. A última coisa que se lembrava era de ter caído enquanto corria.

Agora já estava totalmente desperto e descobriu-se em um lugar que jamais havia visto.

Percebeu que estava com roupas limpas e que lhe tinham aparado os cabelos e raspado a sua barba.

Onde estava? Quem havia trazido ele para aquele lugar?

Respirava devagar pois suas costas pareciam querer arrebentar a cada movimento que fazia.

Percebeu que estava em um lugar maior e mais confortável que aquele onde ele e seu grupo se refugiavam.

À frente dele haviam várias pessoas que nunca tinha visto antes. Não pareciam hostis e, definitivamente, não faziam parte do grupo que o atacou.

Percebeu entre aqueles que lhe salvaram um rosto levemente familiar. Era uma mulher. Quem seria? De onde a conhecia? Ela ainda era jovem e parecia também lhe conhecer.

Mesmo cansado e respirando com uma certa dificuldade teve que responder a várias perguntas que lhe eram dirigidas. Ninguém iria aceita-lo ali, mesmo que por poucos dias, sem ter a menor ideia de quem era ele, afinal era um mundo perigoso em que viviam.

Finalmente deixaram-no descansar. Enquanto tentava pôr os pensamentos em ordem alguém se aproximou e falou.

- Ei, eu lhe conheço. Sempre via você na praça da minha antiga cidade. Todas as vezes que ia passear com umas amigas você estava lá. Chegamos a conversar muitas vezes. Você se lembra?

Fatos há muito tempo esquecidos emergiram do fundo de um oceano de coisas perdidas.

De repente um pouco do antigo mundo retornava.

- Seu nome é Eleonor ....

 
Taverna do Escritor
Enviado por Taverna do Escritor em 23/02/2019
Reeditado em 19/05/2019
Código do texto: T6582339
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