Fábrica de abominações

[Continuação de "Chamou, Mestre?"]

Pontualmente às 19 h, bateram à porta do quarto espartano que Josaphat havia alugado no Dois Lilases, uma hospedaria barata para viajantes, na Cidade Inferior. Ele abriu, imaginando que se tratava de Abia, o prestamista, e viu-se perante a figura sombria de Nicomedes, o monge, em seu hábito negro. Ele abaixou o capuz, revelando sua cabeça tonsurada.

- Eu não o esperava - disse Josaphat, surpreso.

- Tomei minhas precauções, Josaphat - retrucou o monge, entrando e fechando a porta atrás de si.

- Sente-se - solicitou Josaphat, indicando a única cadeira do aposento, ao lado da cama de solteiro. Enquanto o convidado acomodava-se, ele tomou assento na beirada da cama.

- Se veio me procurar, imagino que saiba o que me trouxe à Cidade Inferior - declarou então Josaphat.

- Abia me disse que você queria discutir uma ameaça às liberdades daqueles que vivem à sombra das torres de Metropolis - replicou Nicomedes. - Como tal só pode provir daquele Anticristo, Joh Fredersen, creio que agora me dará subsídios para que possamos destruí-lo de uma vez por todas. A solução de 2026, como bem o sabe, foi construída sobre areia; Fredersen jamais mudou seu propósito de maximizar seus lucros às custas dos que trabalham.

- Destruir Joh Fredersen... - ponderou Josaphat, erguendo brevemente os olhos para a lâmpada incandescente que iluminava o quarto, e depois encarando Nicomedes. - Fui secretário do Mestre da Cidade, como sabe, e talvez tenha nutrido este sentimento, tempos atrás... Joh Fredersen causou-me muito sofrimento, particularmente. Mas desde que passei a conviver com o filho dele, Freder, e a nora, Maria, afastei o desejo de vingança do meu coração. É estranho ouvir um religioso como você, Nicomedes, pregando a destruição.

O monge exibiu um sorriso sardônico.

- Mesmo Cristo não pediu por favor e com licença aos vendilhões do Templo, mas os expulsou com chicotadas. Sejamos francos, Josaphat: Joh Fredersen está além de qualquer salvação. A morte dele seria motivo de comemoração para todos os que sofrem nesta cidade. Eu até consigo imaginar algum nível de convivência civilizada com Freder Fredersen, principalmente por conta da influência de Maria sobre ele, mas no que toca ao Mestre da Cidade, é uma questão de sobrevivência: ou ele, ou nós.

- Eu compreendo o seu ponto de vista, embora o lamente - admitiu Josaphat. - Não posso me comprometer com o apoio à destruição física de Joh Fredersen, pois não é isto que meu patrão deseja, mas a ele também preocupa o que o Mestre da Cidade anda tramando nos últimos meses. E foi para isso que vim, propor uma aliança entre todos os que se opõe aos planos de concentração do poder nas mãos de Joh Fredersen.

- É um leque bastante amplo de aliados que propõe - redarguiu Nicomedes. - Mesmo seus concidadãos na Cidade Superior, muito provavelmente nem desconfiam do que ele está de fato produzindo em sua nova fábrica; quando descobrirem, talvez Fredersen quede sozinho em seu suntuoso escritório na Nova Torre de Babel.

- Então você já sabe? -Indagou Josaphat.

- Das abominações construídas segundo os planos de Rotwang? Sim, estou a par - replicou o monge. - E lhe digo que estou arregimentando homens por toda a Cidade Inferior para destruir aquela fábrica do inferno!

Josaphat cruzou as mãos no colo.

- O que me disse casa com as informações que eu havia obtido por investigação própria - admitiu. - Todavia, temos que nos recordar que Joh Fredersen é um homem de extrema inteligência, ou não teria chegado ao posto de Mestre da Cidade. Crê mesmo que ele não previu a possibilidade de ter a sua planta industrial atacada pelos Góticos? Ele a construiu na superfície justamente por não confiar nos trabalhadores da Cidade Operária, mesmo tendo a alternativa estratégica de inundar os subterrâneos em caso de revolta, como aconteceu em 2026.

- Se a construiu na Cidade Inferior, foi por nos imaginar como um perigo menor do que o dos revoltosos de 2026 - retrucou com veemência Nicomedes. - O que, como estou lhe revelando, é um erro. Antes que a Catedral seja destruída, poremos abaixo a fábrica de abominações de Joh Fredersen!

Josapahat suspirou.

- Se eu conheço Joh Fredersen... e acredito que o conheço bem... ele está contando justamente com este ataque para consolidar sua posição de poder. Nicomedes, eu lhe peço: não tome nenhuma atitude precipitada. Freder Fredersen fará todo o possível para evitar que o pai leve adiante seus planos para a fábrica, forem eles quais forem.

- Freder Fredersen tem o sangue do pai - replicou o monge. - Mas pelo seu bom nome, Josaphat, eu concordo em adiar o ataque por uma semana. Após isso, vou querer provas cabais de que o Mestre da Cidade abandonou definitivamente suas velhas práticas; caso contrário, teremos guerra.

O monge ergueu-se e cobriu a cabeça com o capuz, parecendo absorver por um breve momento toda a luz do aposento.

- Sabe que uma semana é um prazo curto para mudar os hábitos de toda uma vida - arguiu Josaphat.

- Eu sei - redarguiu Nicomedes. - E você tem uma semana para provar que eu estou errado.

Com estas palavras, o monge deixou o quarto, sem se despedir.

[Continua]

- [05-02-19]