Arizona 3

Os pingos de chuva caiam do céu escuro como pequenos tiros de sal. Cada gota podia perfurar a pele dos desavisados, quem sabe arrancar-lhes a vida. Na encosta do Monte do Juramento, lugar em que os últimos homens venderam sua alma, sempre chovia, por isso era uma terra que cheirava à morte muito mais do que as outras pelas quais passei.

Mas eu sei que a chuva dessa região não tem nada de especial, é apenas a natureza respondendo aos séculos de abuso que ela sofreu com a humanidade do passado.

Os rasgos na rocha serviram por centenas de anos como uma fortaleza natural para os que buscam salvação. Apesar de isso ter mudado recentemente, quando alguma coisa começou a espreitar nas sombras desse enorme labirinto esculpido na pedra bruta. Maldito monte! A água escorre trazendo do pico do monte as toxinas que envenenaram nossos rios, uma concentração massiva de CO2.

Eu caminho lentamente com Vegas, que tem alguma dificuldade em se esgueirar das poças de água que se formam nos buracos das pedras. Estamos seguindo caminho por uma trilha íngreme, estamos indo em direção ao chefe do vilarejo, Azerbaijão, um homem muito antigo que detém a sabedoria das terras desérticas.

Junto a chuva, o vento uiva com violência sobre nós, meus cabelos curtos são jogados para o lado enquanto tento proteger minha visão com minha mão direita, a esquerda toca na rocha para manter o equilíbrio. Vegas está de quatro à minha frente – sabia que o paspalho iria se borrar todo para subir – ele faz um sinal com os dedos indicador e médio para que eu continue a subir.

A chuva engrossa mais, e a sensação de ardência na pele aumenta. Apesar de ser durona, se ficar exposta tanto tempo, posso contrair alguma infecção. O coitado do meu acompanhante usa pouca roupa, ele deve estar sofrendo muito mais do que eu. Paro de subir e olho para trás, Vegas não está mais ao alcance da minha vista. Ponho minha cabeça um pouco para fora da trilha para me certificar de que ele não caiu monte abaixo, o que seria uma morte terrível.

– Ei, o que você está olhando? Questiona o velhote à minha frente.

– Eu estava te procurando! Respondo-lhe.

– Vamos, Arizona! Não podemos perder o rastro do nosso procurado. A pista está fresca.

“Procurado”, penso. A Organização me deu uma missão difícil, parece que persigo um fantasma, uma ideia, uma fantasia sem graça. Meu chefe disse que só esse cara é capaz de reverter o problema do mundo. Paramos em frente à casa de Azerbaijão, uma construção reutilizada do que antes parecia ser uma guarita, em uma de suas paredes rachadas há o número 51, logo abaixo uma mensagem de “não entre”, na língua dos velhos.

Eu chamo pelo chefe da vila, apesar de não a ter enxergado durante minha caminhada. A chuva diminuiu sua força, restando apenas respingos leves e inconstantes. Vegas dobra a ponta de sua camisa surrada tentando manter alguma sequidão na roupa. – Dessa forma eu morro de pneumonia – Ele diz.

– Você vai morrer de um jeito ou outro, velho! Falo-lhe.

O careca apenas olha para mim com aquele olhar de maltrapilho com senso de superioridade. Chamo outra vez pelo chefe, que aparece das sombras internas de sua casa com uma roupa colorida e perfumada de rosas. Algo que não é comum para os sobreviventes desse inferno. Azerbaijão é um homem velho de estatura mediana, barba enrolada e sobrancelhas grossas caídas sobre minúsculos olhos de cor castanho como sua pele. – Seja bem-vinda, caçadora! Ele diz como uma voz rouca. Há tempos que não recebo visitantes.

– Como você sabe quem sou?! Questiono com surpresa.

– Eu sei de muitas coisas! Ele respondeu-me. Agora entrem porque a noite logo cairá e junto a ela seu terror.

Quando o velho Azerbaijão terminou de falar, um sussurro sinistro ecoou das trilhas nas rochas, eriçando os pelos da minha nuca.