Um convite para partir
O casal estava atônito, olhando para a tela. Passaram os olhos de novo, e de novo, dez vezes naquela mensagem curta. “O seu perfil foi selecionado para o astrocondomínio Terramar”.
- Quando que você recebeu a sua mensagem? – Perguntou a mulher
- Hoje às 11 horas. E para você, quando veio? - Disse o marido.
- Agora pouco, não faz nem 10 minutos... - ela respondeu, se lembrando daquela caixinha que indicava recebimento de um novo e-mail, piscando alegremente no canto direito da tela, enquanto ela assistia o noticiário.
A princípio, ignorou. As imagens dos manifestantes cercando a própria emissora eram mais chamativas. Era ainda o primeiro ano do governo, mas ela, como Pesquisadora Social, sabia que eram estes pequenos atos que desencadeavam coisas piores. Aquele pessoal raivoso, gritando ordens contra a própria mídia. Era assim que nascia uma ditadura?
Faziam séculos, desde guerra Sino-MarteAmericana, que não se via um grau tão forte de instabilidade social.
Ela era uma cientista bem cotada pelo meio, mas não do tipo que a burocracia aprovava. Escreveu textos, deu entrevistas e palestras. Mas o medo da fome, da sede e da água prevaleceu para a maioria das pessoas. Com a maioria das nações do mundo em colapso, guerras e epidemias, qualquer político prometendo fechar as barreiras e purificar as almas de seu povo era facilmente aplaudido.
Chorou quando viu então os estrangeiros serem expulsos. Temeu por si também quando viu universidades e escolas serem ocupadas.
Não poderia culpar as pessoas. Não concordava com o seu marido, um geólogo burocrata do próprio governo que acreditava que as pessoas nunca passariam da mentalidade "caçadora-coletora". Ele achava que a humanidade era a mesma de milhares de anos atrás, mas com armas no lugar de pedras. O cérebro ainda preso à fome nas savanas e explicações místicas. Ela não. Ela acreditava, precisava acreditar, que havia algo a mais, uma esperança, uma Civilidade escondida e que um dia ressurgiria.
Seu marido trabalhava em um escritório de exploração mineral para o governo. O sistema de Monitoramento Mineral Universal, MMU para os tecnocratas, composto (até onde ela se interessou a entender) por sondas móveis e satélites de rádio detecção. Uma Inteligência Artificial que mapeava todas as jazidas minerais no universo conhecido, e gerava relatórios de potencial econômico. Seu marido, graças a Lei Decisória Humana – na qual dizia que IAs não podem tomar decisões sem a supervisão humana - assinava as quilométricas planilhas geradas, colocando os astros em leilão para qualquer empresa interessada.
Era um trabalho monótono, mas pagava bem, e trabalhar para o governo trazia estabilidade no meio de um tempo de crise, tumultos e desorganização.
Mas agora, ambos receberam aquela mesma mensagem, ainda ali, iluminada na tela.
“O seu perfil foi selecionado para o astrocondomínio Terramar”.
Não fazia sentido. Ela era conhecidamente contra o governo. Por que foi selecionada para uma colonização? O nome “astro-condomínio” era apenas um marketing, pelo anacronismo que o termo “Colônia” trazia.
De qualquer modo, o convite parecia uma armadilha. Mas seria? Ela refletia também que o governo não precisaria ir tão longe para se livrar deles – ela mesmo se calou depois de um tempo, sem mais escrever ou palestrar; e era cedo demais para o governo ter apoio para essa manobra tão escandalosa como o exiliar a oposição, por eles chamados de inimigos.
- Bem, sabemos que a Agência Internacional de Habitação, que cuida dessas coisas, é neutra... E o recurso vem dos países nórdicos, a maioria ainda não radicais... - Refletiu em voz alta o seu marido.
- Neutra, como assim? – Ela sabia que não existia neutralidade na humanidade. Mas ela queria apenas que alguém a acalmasse, mesmo que mentisse, por hora, para ela.
- Bem, não sabemos os parâmetros de pesquisa. Mas as Sondas do MMU por exemplo, buscam minerais raros e cruzam com a logística para sua exploração: distância aos Portais, facilidade de climatização nas bases, e essas coisas.... Veja bem. Nós dois temos ensino superior, 30 anos, não temos filhos, e nos check-ups tiramos ótimas notas. Praticamos esportes.... Para um computador, somos um casal perfeito! Fora que eu sei tudo sobre solos, relevo e rochas, e você de história, antropologia moderna... habilidades uteis em um planeta a ser explorado.
- Você eu não entendo. Você não costuma publicar suas opiniões. Mas eu, qualquer artigo que já escrevi ao longo da vida pode ser considerado subversivo nas mãos erradas.
Ele não soube o que responder. Também tinha suas dúvidas. E sabia que não só o convite era estranho, mas o fato de terem enviado parecia uma forma de ameaça. Um expurgo ou um prêmio? Tentou acalma-la.
- Vou ver com o pessoal, se alguém conhece alguém, que conhece alguém, até chegar nos parâmetros de escolha disso aí. E saber se quem assina a Decisão da IA é nosso, ou Internacional.
Não descobriu muita coisa. Descobriu que de fato os parâmetros cruzavam saúde, educação, idade e habilidades. Também descobriu que a decisão era totalmente Internacional, e o país signatário da Convenção de Uso e Exploração do Universo, não podia interver.
Contou isso para ela.
- Mas não sabemos ainda. Alguém pode estar querendo tirar as pessoas que seriam no futuro perseguidas, um aliado oculto, ou alguém já está nos perseguindo?
- Isso depende. A oportunidade é boa... O lugar lá parece ser muito bom, já está bem habitado, ar puro, uma sociedade estável... Não deve ser ruim. Teremos emprego e um salário razoável.
- Mas mesmo assim, deixar o nosso país? Vai valer a pena?
- Depende do quanto de fé temos na humanidade.