O Diálogo dos Mudos
[História anterior: "Memórias do corpo"]
A figura humanoide que emergira da pseudo-"Celestial" possuía cerca de dois metros de altura - pelo menos 20 cm mais alta do que a mulher que lhe servira de modelo - e parecia inteiramente feita de argila. A cabeça era apenas uma esfera irregular, com depressões onde deveriam estar os olhos, nariz, ouvidos e boca. Sobre o tronco, braços e pernas, a cor do material de que era feita lembrava o cáqui dos uniformes da companhia, com uma mancha preta à altura do peito, onde deveria estar o nome da tripulante e seu tipo sanguíneo. As mãos, com apenas dois dedos grossos e um polegar, e a cabeça, eram de uma tonalidade alaranjada. A criatura não possuía pés: erguia em sequência uma das pernas do solo, enquanto a outra permanecia mergulhada nele, como se precisasse ficar em contato constante com o meio do qual fazia parte, o que lhe dava um caminhar trôpego e lento. Finalmente, parou no limiar do simulacro de rampa da pseudo-"Celestial", enquanto os tripulantes do veículo verdadeiro recuavam cautelosamente para o abrigo da sua própria rampa.
Quebrando o silêncio que se seguiu, ouviu-se a voz do capitão Wang Luoyang, em órbita de Baragon, a lua terrestroide do gigante gasoso NR-416, ressoar nos receptores de rádio auriculares que a equipe de desembarque portava.
- O que está acontecendo aí embaixo?
- O senhor está vendo as imagens, capitão? - Sussurrou o oficial de ciências Bedyw Pryce.
- Fiquei louco ou essa criatura está representando a Itzel? - Indagou o capitão.
- O senhor não está louco, capitão. Todos estamos vendo a mesma coisa - replicou Pryce.
A figura humanoide continuou imóvel, parecendo aguardar pela reação dos tripulantes da "Celestial".
- A Companhia tinha esperanças de que a criatura fosse inteligente - Avaliou Luoyang. - Essa demonstração de mimetismo, embora impressionante, não parece condizer muito com a expectativa.
- Desde que possam encontrar um meio de explorar comercialmente o que quer que isso seja, pode ter certeza de que a Companhia ficará satisfeita - retrucou Pryce. - O que nos leva à grande pergunta: como vamos levar uma amostra disso à bordo, se sequer sabemos do que se trata?
- Por que não pergunta à ela? - Atalhou a navegadora Rebecca Martínez, que até então acompanhara a conversa dos dois oficiais em silêncio. Pryce a encarou com estranheza.
- Perguntar... à criatura? Ela sequer possui boca para responder! Acredita que irá falar conosco?
- Talvez ainda haja um pouco da Itzel ali... - comentou a co-piloto Kamile Umbraite reforçando a fala de Martínez.
- Nada de correr riscos - reforçou o capitão pelo rádio.
- Não vou chegar muito perto - informou Martínez, dando alguns passos à frente. Parou a meio caminho entre a rampa da "Celestial" e a da contrafação, onde a criatura permanecia imóvel, braços caídos ao longo do corpo, cabeça baixa.
- Você me entende? - Indagou Martínez em voz alta, apontando para ela.
A criatura ergueu a cabeça, como se estivesse prestando atenção. A falta de fisionomia dificultava saber se havia sido compreendida. Finalmente, levantou o punho direito fechado e balançou-o à frente do corpo, para cima e para baixo. Pryce e Umbraite entreolharam-se.
- Você é Itzel? - Gritou Pryce.
A criatura elevou novamente o punho direito à altura do peito e ergueu um dos dedos, baixando-o e erguendo-o algumas vezes.
- Viu isso, capitão? - Indagou Pryce.
- O computador da nave está analisando os sinais com base na experiência passada de Itzel, que é o que supomos que a criatura está emulando - respondeu comedidamente Luoyang. - Se isso realmente for uma forma de comunicação e não meramente gestos aleatórios...
Inatantes depois, sua voz retornou mais animada.
- O computador encontrou uma possível correspondência... não vão acreditar: linguagem de sinais americana!
- Faz todo sentido - ponderou Umbraite. - Itzel tinha um irmão surdo.
- O primeiro gesto foi um "sim", e o segundo, um "não" - prosseguiu Luoyang.
- Ela nos entende mas não é Itzel - analisou Martínez.
- Precisamente - replicou Luoyang. - E agora seria interessante que você lhe perguntasse o que ela é.
Martínez verbalizou a pergunta do capitão. A criatura, a princípio, deixou os braços pender ao longo do corpo. Depois, ergueu o braço direito e fez um gesto abrangente com a mão, batendo o dorso da mesma contra a palma da mão esquerda, deixando pender novamente os braços ao longo do corpo.
- Capitão? - Indagou Martínez.
- Tudo - respondeu Luoyang. - A resposta foi "tudo".
* * *
Os sete tripulantes do cargueiro classe M "Nan-Shan" estavam em seus postos na ponte de comando da nave, pouco antes de deixarem a órbita de Baragon para retornar as profundezas do espaço sideral.
- Acredito que a Companhia irá ficar desapontada com o desfecho da nossa história - avaliou o oficial de ciências.
- Não deveria - retrucou o capitão. - Afinal, não só não perdemos nenhum tripulante, como fizemos contato pela primeira vez na história da humanidade com uma inteligência alienígena.
- Uma inteligência alienígena que é "tudo" - desdenhou Pryce. - A Companhia não está interessada em "tudo", só em unidades discretas que possa reproduzir em laboratório e vender por um bom dinheiro para fazer a alegria dos acionistas.
- Ainda assim creio que irão deslocar alguns cientistas de verdade para cá - retorquiu sardonicamente Luoyang. - Ter a criatura como interface de comunicação irá facilitar muito o trabalho deles. E, por falar nisso, vamos mudar o status de Itzel no sistema.
Diante dos olhares curiosos dos demais tripulantes, explicou:
- Em vez de morta, vamos declará-la apenas como "desaparecida".
E para a navegadora:
- Martínez, pelo bom trabalho aqui e lá embaixo, você acaba de ser aprovada em seu estágio probatório!
- Grata, capitão! - Respondeu Martínez juntando as mãos e inclinando a cabeça.
- E agora, nos tire de órbita... temos uma refinaria para rebocar em Gliese 581!
- É pra já, capitão! - Replicou Martínez, acionando os retrofoguetes e fazendo o cargueiro girar sobre seu eixo.
E quando os propulsores gêmeos Rolls-Royce N62 Typhoon foram acionados, uma inesperada aurora boreal brilhou sobre o pólo norte de Baragon.
- Adeus, Itzel - murmurou Kamile Umbraite, enquanto o cargueiro ganhava velocidade para adentrar o hiperespaço.
- [15-01-2019]