Fractal

Uma nova explosão de energia surge na borda exterior do universo, iluminando-o com cores brilhantes de vermelho, azul e amarelo. Eu observo a criação de uma nova galáxia da escotilha recém-consertada da minha nave enquanto começo mais um turno de reparos no tecido do espaço-tempo. “Uma xícara de café quentinho é a melhor maneira de começar mais um dia solitário nas fronteiras do espaço conhecido”, é o que dizia meu pai.

Meu trabalho não é dos melhores, costurar tecido de realidade é um serviço tão aquém do que eu realmente gostaria de fazer, que era explorar as zonas externas, mas é o que sobrou para um dos cinco últimos fractais do universo desde que a praga alcançou minha civilização. Penso que não deveria estar aqui porque não sou o mais inteligente dos fractais... minhas notas na academia eram péssimas e de longe eu teria que me ocupar de uma função importante para os milhares de seres que ocupam o espaço.

Pi! Pi! Pi!

O bip do alerta de segurança apita, imagino que ainda preciso verificar as condições do tecido residual que se soltou quando um ser interdimensional tentou rasgá-lo ontem. Que droga! Essas criaturas tiram minha paz. Digito o velho código e...! O computador de bordo liga fazendo uma varredura completa do espaço criando um mapa holográfico que indica pontos probabilísticos de um incidente ou outro. Um deles faz a cor do mapa ficar vermelha, é a localização da zona morta da borda interna, um espaço de confinamento para o planeta Fractal, meu lar.

Imagino que Solafta deveria estar responsável por esse setor. Será que somos apenas quatro agora? Não é possível, ela é uma das veteranas que restaram da colônia de Júpiter no quadrante da Via Láctea. Bem, de qualquer forma só poderei ficar em paz com o alerta se verificar a causa dele.

– Computador, ligar propulsores para hipersalto, seguir coordenadas da nave de Solafta. Destino: planeta Fractal!

Minha nave range com a propulsão dos motores de matéria escura. Parece que a carcaça da velha Gideon não vai aguentar muitos saltos pelas realidades. Por isso é melhor reduzir os ciclos para 109. Dessa forma não correrei o risco da minha nave se desintegrar na reentrada da realidade. O computador de abordo anuncia com sua voz mecânica que o salto está pronto e aguardando pelo meu comando.

– Hipersalto liberado!

A nave se desloca a 300 mil quilômetros por segundo antes de perfurar o tecido da realidade. Na dimensão de passagem, há apenas um borrão de cores, estou viajando entre as eras espaciais. O rangido da estrutura aumenta consideravelmente. O salto durará 45 segundos, tempo suficiente para que alguns parasitas de matéria corram atrás da nave. Computador, ligue o campo de energia. Eu não quero que nosso combustível acabe no meio da viagem. Os parasitas são um perigo para qualquer viajante do espaço. As esguias criaturas deslizam pelos propulsores, e com aquelas ventosas eles consomem toda matéria que serve de combustível. Quando pequeno, meu pai ficou preso na dimensão de passagem porque sua nave foi infestada de parasitas.

Perigo! Perigo!

– O que houve computador?

Choque iminente! Perigo! Perigo!

Como esqueci disso, eu não liguei o simulador de colisões hoje. Que droga! Qual a chance de impacto, computador?

85% - 90% - 95% - 100%!

Boom!

O borrão da dimensão de passagem dá lugar a uma infinidade de pedaços de metal retorcido e fios.

– Computador, qual a situação?

Realizando varredura... pós-choque!

Computador inútil, isso eu sei. Abro a escotilha da janela da sala de navegação. Lá fora há uma nave partida ao meio. Centenas de seus pedaços flutuam pelo espaço. Não há planeta próximo, sequer há sinal de galáxia. Como é possível que haja outra raça que viagem entre as bordas? Seria Solafta? Computador, faça uma varredura.

Procurando forma de vida... confirmado!

O alerta da Gideon soa outra vez. O velho pi, pi irritante. Qual o diagnóstico, computador?

Forma de vida baseada em caborno...

Respiração celular...

Risco iminente de vida.

Não acredito que pus a vida de alguém em risco. Computador, envie a direção para meu traje de costura.

A interface holográfica mostra uma ampulheta girando com a seguinte mensagem abaixo:

Enviando dados...

10% - 20 % - 30% - 40% - 50% - 60% - 70% - 80% - 90% - 100%

Upload completo.

Saio da sala de navegação e corro para o compartimento de exploração. Passo por um corredor interminável de tubos de resfriamento. A Gideon é uma nave industrial, não é nada confortável morar nela. Entro no vestiário com os trajes pendurados. Coloco primeiro o capacete inteligente, verifico se todas as conexões com a Gideon estão funcionando. Tudo certo. Coloco o resto do traje, um tipo de tecido sintético escuro. Minha roupa foi desenhada para suportar o frio das bordas do espaço. Estou pronto. Sigo para a saída. Abrir escotilha, computador.

A nave range e algumas luzes piscam, será que houve baixa de combustível? Dou um salto e... pronto. Estou flutuando no espaço. Olho no visor do capacete a trajetória até achar a forma de vida. A coisa está atrás de uma pilha flutuante de destroços. Vou me aproximando e desvencilhando de obstáculos. Sinto que estou suando por causa disso, o que irei encontrar, afinal? Quando me desconcentro um pouco, um pedaço de carcaça vem em minha direção. Sinto o metal bater nas minhas costas. Sou empurrado com o impacto.

Meu traje avisa que estou fora da rota. Uso minhas mãos para girar em torno do objeto que me acertou e volto a flutuar tranquilamente. O visor do capacete mostra que estou a 50 m – 45 m – 30 m – 25 m – 20 m – 15 m – 10 m – 5 m – 1 m – cheguei.

Um corpo humanoide flutua preso a uma poltrona ejetada da nave destruída. Aproximo-me e solto seu cinto. A cadeira daquele astronauta segue flutuando pelo espaço. Amarro seu corpo em volta do meu e retorno para minha nave pedindo para que o computador prepare a sala médica. O retorno é relativamente tranquilo, consigo reduzir minha atenção dos destroços. A escotilha da Gideon se abre lentamente, posso vê-la.

O capacete redondo e o traje branco não são conhecidos do meu catálogo de raças exploradoras. Sem perda de tempo eu sigo para a sala médica. Os equipamentos de suporte à vida estão ligados conforme minha ordem ao computador. Ponho o corpo sobre a mesa, preciso remover seu traje. Retiro o capacete do visitante. Não é possível! Fico assustado com o que vejo: uma humana de cabelos castanhos desmaiada. Pego minha lanterna médica e abro um dos seus olhos. Sua posição revirada indica inconsciência por trauma físico.

Pi! Pi! Pi!

– Droga! O que foi, computador? Essa joça não responde nada direito.

Pi! Pi! Pi! Alerta, alerta.

Informe o ocorrido, computador. Sem resposta, preciso voltar à sala de navegação. Deixo a humana na sala médica e volto correndo para a sala de navegação. As luzes da nave passam de brancas para vermelhas. A voz mecânica do computador avisa que a Gideon entrará em modo de segurança. O que poderia estar acontecendo?

Chego na sala de navegação e começo a digitar comandos no painel de controle. O computador abre sua interface holográfica, o pi, pi do alerta de segurança é ensurdecedor àquela altura. A escotilha da janela vai abrindo lentamente. Dou de cara com algo estarrecedor, lá fora, o tecido do espaço-tempo está se desfazendo como papel em chamas. É possível ver galáxias sendo puxadas pelo vácuo do exterior. Computador, qual o diagnóstico?

Rasgo do tecido do espaço-tempo irreversível.

Impossível! Eu saí apenas por alguns instantes. Sento em minha cadeira que por anos testemunhou meu trabalho ininterrupto e curvado apoio minha cabeça sobre minhas mãos para pensar.

O computador de bordo avisa com sua chata voz mecânica: alerta de intruso! Alerta de intruso!

Dou um salto da cadeira e observo a humana passando pela porta, ela chega perto de mim e em sua língua primitiva, diz:

– Desculpe-me pelo o que aconteceu.

Relaxo os ombros e a convido para perto de mim. Ela caminha lentamente enquanto a Gideon dá solavancos. Nos viramos para a janela e, amedrontados pelo o que estamos vendo, choramos silenciosamente juntos pela morte do espaço.