2024

Em um certo dia, um telespectador liga sua smartTV para acompanhar o noticiário que passa no canal do governo, o único canal disponível. A notícia fala sobre o ataque das forças armadas a uma comunidade carente que estaria abrigando guerrilheiros da resistência. A seguir, uma descrição dos comentários que o telespectador realiza enquanto assiste à TV.

Eu não acreditei que isso poderia acontecer, as estatísticas, os discursos, nada, nada falava do que estamos vivendo. Estou desesperado. Mãe, estou com medo. Há uma sombra de terror nos corações. Espero não ser tragado por essa escuridão que já engoliu muita gente, precisamos orar mais. Na TV: “Amanhã haverá um desfile, uma homenagem aos heróis de guerra”. É sério?

Eu sei que aquela comunidade não tinha nada a ver com a resistência. Como eles puderam? Centenas de corpos carbonizados. Meu Deus! Eu conhecia pelo menos cinco crianças que moravam lá, elas eram do projeto de música. Eu disse pra Alana que ela seria uma grande pianista um dia. Meu Deus! Por quê?! Ela estava tão feliz, amanhã iríamos apresentar a primeira turma que se formaria no projeto.

Eu tenho culpa? Não posso ter. Nunca imaginei que a coisa chegaria a esse ponto, nunca imaginei. Ai! Meu coração doí. Isso é um infarto. Será? Não consigo imaginar minha aluna sendo queimada viva enquanto dormia. Malditos! Como eles se acham heróis?! Não, não, impossível. Eles são o governo, eles não fariam isso. Tenho certeza que a resistência fez isso para culpá-los.

O presidente jamais faria isso, não, nunca. Seria loucura. Eles estavam atrás de terroristas. Ah, Jonas, perdoa o tio... nunca mais verei seu sorriso. Ele era um bom menino, mãe. Todo dia ele vinha me abraçar e falar que eu era seu melhor amigo. Eu sabia que o bichinho fugia de casa pra não apanhar do pai viciado. Mãe, essa dor no meu peito não passa. Meu melhor amiguinho tinha tanto futuro no violão. Suas mãozinhas mal seguravam o violão que a gente tinha, era muito grande pra ele. Mas ele sempre tava lá, sabe, batendo nas cordas, mesmo quando suas mãos doíam, era tão esforçado.

Mãe, eu vou deitar, não me sinto bem. Até amanhã.

No noticiário, a repórter do canal do governo cobria o presidente falando sobre a eficácia da sua ação firme de repreensão aos opositores, “vândalos”, segundo ele. No canto da tela, um gráfico subia vertiginosamente, era a pesquisa de satisfação do seu eleitorado.