Mara e Milena

MARA E MILENA
Miguel Carqueija

(sequência de "Os Senhores do Fogo", conto publicado nesta escrivaninha em 10/10/2018)


Mara olhou em volta, pelo refeitório imaculado e iluminado por luzes artificiais que ela jamais avistara em sua vida. A própria mesa, de uma madeira escura por ela desconhecida, causou-lhe grande impressão.
— Nunca viu um lugar assim? — e Milena sorriu. — Sim, nós temos ainda muito luxo em meio à decadência...
Mara nada comentou; temia ser indiscreta ou indelicada. Milena conduziu-a até a mesa e fê-la sentar.
Duas mulheres tinham acabado de abastecer a mesa, muito compenetradas. Mara, desacostumada de luxos, resolveu que devia aproveitar com naturalidade o que lhe fosse oferecido. Observou os talheres de prata, os pratos de cerâmica, a terrina com sopa de ervilha fumegante.
Sentada à sua frente Milena indicou-lhe as fatias de pão, um tipo de pão que Mara não conhecia.
— Esteja á vontade, Mara.
— Obrigada... como vocês mantém tudo isso?
— Temos plantações internas.
— Uma vez eu li que a eletricidade precisa de água... vocês usam a desse fosso, não é?
— Nós temos um sistema complicado de cachoeiras artificiais. Você viu o castelo pela frente, nós temos uma vasta área nos fundos. É como um pequeno feudo...
— Então, a eletricidade só poderá surgir onde houver água em abundância?
— Não é bem assim. Antigamente havia fiações, cabos, redes de transmissão. Tudo isso acabou depois que as Guerras da Água destruíram a civilização. Note bem, não foi por causa da eletricidade que aconteceu tanta briga. Foi por causa da água para beber, mesmo. A água potável escasseou... enquanto a população crescia. Uma coisa horrível.
— Bem, eu suponho que a situação melhorou muito — se assim posso me expressar — depois que a maior parte da humanidade foi exterminada — Mara espetou uma rodela de pepino. Estava muito admirada com tanta abundância.
— Infelizmente é isso mesmo. As guerras pela água duraram quase dois séculos, a tecnologia foi destruída, os vampiros aparecerem e tiveram de ser combatidos a ferro e fogo.
Deu um suspiro e prosseguiu:
— Com a humanidade em decadência a natureza recuperou a sua exuberância em muitos locais. Assim, os mananciais foram se recuperando e os rios aumentaram de volume, muitos se recuperaram inteiramente. Mas, com certeza, em certa época a situação era crítica. E isso, Mara, pesou muito na decisão tomada pelos Senhores do Fogo, de açambarcar o segredo da eletricidade. Eles não queriam que a civilização voltasse a ser predatória.
— Contudo, devemos correr esse risco...
— Isso eu também acho. Podemos evitar repetir os mesmos erros do passado.
Mara estava apreciando muito a espessa sopa de ervilhas. Ninguém cozinhava assim na sua aldeia. A moça aprendeu a colocar migalhas de pão na sopa, como via sua anfitriã fazer.
— Quem cozinha aqui, na verdade?
— Eu e mais três mulheres.
— Preciso aprender mais de culinária... mesmo uma guerreira precisa saber essas coisas.
— Está bem, nós te ensinaremos. Você precisa se hospedar por aqui algum tempo, até que eu te ensine tudo sobre a eletricidade. Topa ficar?
— Eu acho que não tenho outro jeito. Contudo não quero demorar muito tempo. Os meus ficarão preocupados...
— Se o mundo já estivesse de novo ligado pela eletricidade, você poderia se comunicar com eles instantaneamente. Você sabe disso, não sabe?
— Nem me fale. Meu Deus! Precisamos agir com rapidez.
Nas horas seguintes Milena mostrou a Mara praticamente tudo o que havia no castelo: o cemitério dos Senhores do Fogo, a biblioteca, as hortas, o pomar, as criações de animais, a tecelagem. A criadagem era numerosa mas já não tinha muita função,com apenas uma pessoa para servir. Mara julgou entender porque a sua nova amiga ansiava para se retirar daquela prisão enrustida.
Mara nunca tivera criados e sempre tratara a todos de igual para igual. Impossível para uma Senhora do Fogo: através de gerações barreiras de convenção haviam sido erguidas entre os Senhores do Fogo e os demais mortais — inclusive os lacaios.
Milena, porém, estava algo curiosa a respeito de Mara:
— Você de fato veio das ilhas... mas a travessia marítima é tão difícil hoje em dia...
— Não sabe você da ponte natural que surgiu há dois séculos por força dos maremotos?
— Mas ela ainda fica abaixo da superfície do mar.
— Mas na maré baixa é possível atravessar a cavalo. A distância até a Coréia ficou muito curta.
— Olha, eu nem consigo imaginar essas distâncias. Mas você tem pela frente um trabalho de Hércules.
— Deus me ajudará. Ele pode mais do que Hércules.
Milena, deixando os talheres por ter acabado seu prato, fitou-a longamente.
— Que foi? — indagou Mara, encabulada.
— Fico pensando... você é tão jovem... como pode ter assumido uma missão sublime como essa?
— Se eu fosse uma velha, acha que poderia assumir?
— Boa resposta. Ah, temos uma sobremesa.
— Hein?
Milena destampou um recipiente e mostrou um pudim de ameixa. Mara confessou que não sabia o que era aquilo.
Milena cortou uma fatia e colocou num prato de sobremesa, onde havia uma colher pequena, e acrescentou caldo.
— Não teremos esse doce em nossa jornada, por isso aproveite enquanto pode.
A guerreira experimentou e gostou muito. Estava ficando preocupada: Milena abandonaria tudo aquilo?

..............................

Mais tarde, depois de ter dado uma atenção ao seu cavalo, Mara recolheu-se no quarto que Milena lhe reservara. Não tinha luxo excessivo ou muito ostensivo, mas era de todo superior a qualquer aposento onde a oriental já houvesse dormido.
Mara examinou a colcha, experimentou o abajur e afinal entendeu que deveria dormir: haveria muita coisa a fazer no dia seguinte.
Fez as suas orações, apagou a luz e se deitou, vestida com a camisola que Milena, sua nova amiga, lhe dera. E não tardou a adormecer.
.....................

Não se julgue que o sono de Mara fosse leve e superficial ou que, pela estranheza do ambiente, ela sofresse de nervosismo, ansiedade e insônia. Não; Mara era uma guerreira oriental e conhecia técnicas de relaxamento. Quando adormeceu, o seu sono logo se tornou profundo.
Isto porém não impediu que ela despertasse de imediato quando o quarto foi invadido. A sua audição era por demais aguçada e seletiva e tanto que, mesmo profundamente adormecida, ela não poderia ser pega de surpresa.
A porta fôra violada ou arrombada e a cimitarra vinha rapidamente em sua direção. Mara pulou da cama e buscou a sua espada, que sempre deixava ao alcance. Através da penumbra defendeu-se habilmente do seu adversário.
Atacar no escuro uma guerreira adormecida é fácil; acordada e de pé a coisa já é outra. O atacante rodeou a cama, erguendo sua enorme arma, porém a noite era de lua nova e os olhinhos apertados da oriental filtravam melhor os raios da pouca luz externa. Os ouvidos de Mara, por sua vez, eram treinados o bastante para sentir a arma branca cortando o ar. Movendo-se rapidamente no centro do quarto Mara desviou-se da cimitarra, que desceu com tanta força que chegou a desequilibrar seu portador, então a japonesa atacou com a katana, ferindo profundamente o ombro de seu adversário, arrancando-lhe um gemido raivoso. Aproveitando a vantagem Mara acertou aquela sombra recurva antes que o oponente se recuperasse. A cimitarra voou longe.
O invasor correu para a janela e Mara alcançou o interruptor, aquela novidade, pois decorara a sua posição na parede. O quarto inundou-se de luz.
— Pare! Não adianta fugir, já sei quem você é!
O homem se voltou. Era negro, corpulento.
— Abdul — declarou Mara.
— Você... como pode... não acreditava que uma mulher pudesse ser de fato uma guerreira.
— Quanto mais se vive mais se aprende, meu caro. Agora diga: por que tentou me matar?
A fisionomia de Abdul estava transtornada pela cólera ao responder:
— Todos nós vivíamos em paz nesta cidadela. Agora vem você, que surgiu do nada, e convence a nossa ama a fechar tudo, dispensar a todos nós e acompanhá-la não se sabe para onde... você iria destruir as nossas vidas.
— Meu caro, você está muito enganado. Sua ama ia reunir a todos vocês e esclarecer a situação. Temos toda a humanidade para ajudar, levando a ela o fogo elétrico que proporcionará o conforto que você goza aqui. Por que ser tão egoísta?
— Você irá levá-la para a morte! A Senhora Milena não está acostumada com o mundo exterior e muitos vão hostilizá-la, vão querer até matá-la, porque temerão o fogo elétrico...
Mara sorriu, sem abrir a guarda:
— Você é tão machista, Abdul, mesmo assim ama Milena e é leal a ela, não é?
— Eu sempre servi os Senhores do Fogo e ela é uma Senhora do Fogo, a última que restou — respondeu ele, com altivez.
A porta se abriu de supetão e Milena apareceu no limiar.
— Está enganado, Abdul. Mara é uma Senhora do Fogo, também. Agora ela já passou a ser.
O guardião ficou de boca aberta e afinal balbuciou: “Senhora!”
— Que vergonha, Abdul! Como se atreve a atacar a minha hóspede? Sabe que eu poderia expulsá-lo e para sempre?
O africano se ajoelhou, quando Milena se aproximou dele:
— Perdão, minha senhora! Fiz tudo pensando em defendê-la...
— Nunca precisei que matasse ninguém para me defender! O que você tentou fazer é uma infâmia!
E como Abdul continuasse soluçando, Mara se aproximou dele e observou com uma dose de ironia:
— Sabe que eu posso matá-lo, Abdul, e que o venci lealmente. O que tem a dizer?
— Mate-me então — respondeu o africano, encarando a guerreira amarela. — Abdul não tem medo da morte!
— Ainda vai tentar me matar?
— Não! Eu juro! Abdul foi vencido por uma mulher, só resta a ele matar-se...
— Isso é que que não! Você não é tão estúpido!
— Espere, Mara! — interrompeu Milene. E, dirigindo-se ao servo: — Levante, Abdul, não suporto que se ajoelhem diante de mim.
Ele obedeceu e Milene aplicou-lhe uma bofetada.
— Você aprendeu essas ideias na Abissínia? Não pode voltar a ser razoável? Eu lhe ordeno que não se suicide e que não ouse mais erguer a mão contra Mara!
— Sim, senhora. Eu obedeço — e Abdul baixou a cabeça.
Milene se voltou para Mara.
— Ele nos serve há muitos anos e sempre foi um bom servo. O que diz, Mara? Será possível confiar nele?
Mara sorriu.
— Sei facilmente quando alguém diz a verdade ou quando mente; tenho esse dom. E empenho a minha reputação em como ele diz a verdade. Abdul não tentará mais nada contra mim.
— Tem certeza?
— Esta minha habilidade pesou para que eu fosse escolhida na missão que me foi outorgada, Milena.
— Está bem.
Milena voltou-se para Abdul:
— Retire-se para os seus aposentos. Ficarei com a sua arma.
Depois que o negro se foi, Milena observou:
— Está tudo bem com você, Mara? Eu lhe peço milhões de desculpas...
— Não se preocupe, Milena. Diga... vocês, os Senhores do Fogo, eram caucasianos, não é isso?
— Sim, claro, mas... a que vem isso?
— Uma das minhas preocupações é que as pessoas se amem, independente de origem racial ou cor da pele. A escravidão voltou a ser praticada no mundo após as Guerras da Água, você sabe, pelas etnias locais dominantes. Abdul tem todo o jeito de eunuco, ele é isso?
— Ele já veio assim. Os Senhores do Fogo não escravizavam, mas tinham servos leais.
— Está bem. Terei de refletir um pouco sozinha, minha amiga.
— Se quiser pode dormir no meu quarto. Lá ninguém se atreverá a atacá-la.
— Acha que pode haver outro criado ciumento?
— É pouco provável, mas eu não previ esse...
— Então vamos deixar as coisas como estão. Se houver outro eu poderei identificá-lo.
Milena compreendeu que Mara falava com a segurança de quem conhece as próprias capacidades.

..............................................................................................

Ao tornar a se recolher — com a razoável certeza de que naquela noite não voltaria a ser incomodada — Mara ainda monologou em pensamento:
“Ele irá conosco. Milena é tudo o que esse homem possui, é tudo em que ele pode se apoiar. Não estava nos meus planos levá-lo comigo. Mas nem Milena estava, afinal de contas. Pelo jeito esta será uma jornada de surpresas.”



imagem pixabay