Como Jonas na Baleia
O crepúsculo havia caído, quando um mensageiro numa bicicleta militar chegou ao Posto Avançado 4 e pediu para entregar uma correspondência ao Dr. Chan. Informou à guarnição que aguardaria a resposta, e, de fato, pouco depois Chan veio em pessoa, envergando um avental de couro preto sobre o uniforme branco.
- Você irá me conduzir ao local? - Indagou ao se aproximar do mensageiro.
- Vim para isso, senhor - confirmou o rapaz.
Chan virou-se para um dos guardas e pediu que lhe trouxessem uma bicicleta e o binóculo que guardava no laboratório. Enquanto aguardava, retirou o avental, que foi recolhido por outro guarda. Com a chegada dos itens pedidos, pendurou o binóculo no pescoço, montou na bicicleta e saiu pedalando atrás do mensageiro em direção à praia, cerca de 5 km distante.
- Como é o seu nome, rapaz? - Indagou, quando tiveram que desmontar das bicicletas e subir empurrando-as estrada acima, no trecho de colinas que marcava a metade do caminho.
- Kaz, senhor - replicou o mensageiro.
- E você viu quando chegou, Kaz?
- Na verdade, não, senhor; eu estava no alojamento dos mensageiros com os outros rapazes. Um dos patrulheiros da costa foi quem viu a coisa se aproximando e deu o alerta.
- E ela não chegou até a praia?
- Até a hora em que eu saí, não senhor. Parou no meio da baía, como se estivesse querendo manter distância de nós.
- E é possível que esteja, rapaz - ponderou Chan, enquanto montavam de novo nas bicicletas e tomavam o trecho em declive que os levaria por entre uma paisagem pontilhada de arbustos retorcidos até o mar.
* * *
Era noite, pontilhada de estrelas, quando chegaram às barracas da Patrulha Costeira, armadas em meio a uma floresta de coqueiros junto a uma praia de areias brancas e águas mansas. No meio da baía, imóvel, flutuava o motivo da ida de Chan até ali: uma grande massa escura e oblonga, com uma corcova em seu meio, sobre a qual piscava uma solitária luz vermelha. Cercado por patrulheiros armados de chuços de três pontas e mensageiros curiosos, Chan assestou os binóculos naquela direção e abanou a cabeça em desaprovação.
- Parece muito com um dos "sensuikan" de que falam os textos antigos - declarou finalmente. - Eram armas de guerra muito poderosas, carregadas com todo tipo de tecnologia letal, e capazes de navegar sob as águas para atacar o inimigo de surpresa.
- Mas por que ele resolveu emergir então, doutor? - Indagou Seiji, o comandante local da Patrulha.
- Essas coisas tinham que respirar, como as baleias - explicou Chan, baixando os binóculos. - Ou, pode ser que esteja cansada e pretenda passar algum tempo se recuperando em nossa baía protegida.
- Acredita que representa algum perigo real para nós, doutor? - Indagou Seiji.
- Desde que evitemos entrar na água enquanto ela estiver ali, não creio que o "sensuikan" nos crie algum problema. São conhecidos por atacar embarcações, não populações costeiras. De qualquer forma, é bom manter vigilância intensiva até que tenha partido de nossas águas.
E assim foi feito.
* * *
Pela manhã, um dos patrulheiros deu o alerta: havia movimento no topo da corcova do "sensuikan". Sob os raios do sol nascente, o grupo na praia viu três pessoas em uniforme surgirem próximo à haste que sustentava a luz vermelha que haviam visto piscar durante a noite. A luz agora havia se apagado. Acordaram o Dr. Chan, que correu para apreciar o espetáculo de binóculo.
- São escravos do "sensuikan" - informou. - Preparem-se, pois não sabemos o que querem.
Uma companhia inteira de patrulheiros entrou em formação sob os coqueiros. Os três egressos do "sensuikan" colocaram na água uma pequena embarcação, de um laranja muito vivo, e começaram a remar em direção à praia. Para surpresa de Chan, a pessoa sentada à proa, embora usasse o mesmo macacão cáqui das outras duas, era inequivocamente uma mulher de longos cabelos negros. Quando chegaram à uma distância que permitia que fossem ouvidos, ela ergueu os braços e gritou, em Língua Comum, mas com um sotaque estranho:
- Olá! Viemos em paz!
- O que acha? - Indagou Seiji para Chan.
- Não mandariam uma mulher se estivessem mal intencionados. Peça para abaixar os chuços enquanto falo com ela.
A embarcação furou a arrebentação e embicou na areia. Enquanto a mulher desembarcava e seguia rumo a Chan e Seiji, que aguardavam por ela, os dois homens, gigantes de cabelo cortado curto, aguardavam junto ao bote.
- Eu sou a Dra. Sylvia López, da Colônia Sargaço - apresentou-se ela, fazendo uma profunda reverência perante eles. Chan e Seiji também inclinaram-se.
- Eu sou o Dr. Chan, da Colônia Chukushima. Vocês são escravos do "sensuikan"? - Indagou Chan, apontando para a massa negra no meio da baía.
- Esse "sensuikan" nos pertence - declarou ela. - Nós o recuperamos e aprendemos a controlá-lo; hoje ele transporta o meu povo... ou o que sobrou dele.
Só então o Dr. Chan compreendeu que não estava diante de escravos, mas de náufragos. O "sensuikan" é que os mantivera vivos. E, diante de um fato tão excepcional, só lhe restava, como responsável pela colônia, dar-lhes as boas vindas e oferecer abrigo.
- [31-10-2018]