O MUNDO PARALELO

O MUNDO PARALELO – CONTO.

UM E-MAIL INTERESSANTE.

Acabara de chegar ao escritório, liguei o servidor da internet, esperei estabilizar o

DSL e liguei o notebook. Abri os e-mails, entre muitos recebidos, deparei com um cujo autor me era totalmente desconhecido. Abri, não sem antes acionar o antivírus, e a mensagem dizia:

“Bom-dia, Senhor!

Peço escusas por invadir o seu espaço, mas eu o conheci como escritor, lendo os seus contos na internet. (Tece alguns elogios sobre os meus escritos etc.). Se não for abusar de sua paciência, gostaria que o senhor reproduzisse, em forma de conto ou romance, os fatos que tenho a narrar, se o permitir, naturalmente. Posso lhe afirmar que tais ocorrências são muito estranhas, e até mesmo fantásticas, e lhe asseguro que os fatos que tenho a relatar aconteceram realmente como foram escritos. Obviamente, espero que o senhor dê as narrativas uma forma que seja de mais fácil intelecção, pois reconheço que não tenho o traquejo que o senhor tem na arte de escrever.

Assinado “Fulano de Tal.”

Ao terminar a leitura, cliquei em responder e-mail e escrevi:

“Caro Fulano de Tal!

Será com grande satisfação que lerei o seu trabalho e analisarei as suas narrativas. Quanto à produção literária como conto ou romance, dependerá do conteúdo que apreciarei. Se achar interessante, certamente chamarei o tema para a produção de um texto. Portanto, pode enviá-lo.

No dia seguinte, lá estava o e-mail do senhor Fulano de Tal, que dizia:

“Senhor Escritor! Os fatos que passo a narrar, como já havia dito anteriormente, são eivados de acontecimentos sobrenaturais, chegando às raias da loucura, aparentando ser imaginação de uma mente insana. Mas, ratifico o dito anterior: tudo é a mais pura e cristalina verdade.

Tudo começou quando eu trabalhava com informática. Tinha um escritório onde, com um sócio e mais três empregados, produzimos programas de computador, uma espécie de gerenciador de negócios. O nosso produto tinha boa aceitação no mercado, e nossa empresa ia bem. Eu, na época, tinha meus trinta e três anos, ainda não havia achado a minha cara-metade, tivera diversos relacionamentos, mas todas as mulheres as quais havia me relacionado, nenhuma me estimulou ao ponto levá-la ao altar.

Uma manhã, já perto do meio-dia, saí do escritório e me dirigi ao restaurante onde costumava almoçar. A rua estava calma, trânsito normal, como é característico da pequena cidade. Ela fica na zona metropolitana, que dista a pouco menos de setenta quilômetros de Porto Alegre. Eu caminhava pela calçada quando, ao longe, a umas três quadras, vira grande movimentação, numa rua transversal, pela qual caminhava. Esta rua constituía o principal acesso ao centro da cidade, e, por isso, tinha uma grande movimentação de carros.

Avistei carros da polícia com suas luzes oscilantes, vermelhas e amarelas. Gente correndo, ambulância chegando em disparada.

Cheguei ao final da quadra, desci o meio-fio, atravessei a rua, parei e olhei para ambos os lados, olhando para o chão que começava a atravessar a rua. Quando estava no meio da rua, levantei a cabeça, para continuar olhando a grande movimentação, e nada vi. Fiquei perplexo. Passaram-se alguns segundos sem ver a grande movimentação e agora tudo está completamente calmo, como se nada tivesse acontecido. Avancei célere até chegar ao entroncamento onde ocorrera o tumulto avistado. Nada, tudo estava dentro da normalidade, muitos carros circulando, gente caminhando. Atravessei a rua e me dirigi a uma ferragem, que fica bem próxima de onde teria visto a grande movimentação. Adentrei na loja, cumprimentei o atendente e lhe perguntei:

- Por favor, me diga, houve algum acidente aqui nas últimas horas?

- Não, tudo normal. Posso saber por que pergunta?

- Por nada, tive a impressão, quando vinha para cá, de que havia alguma movimentação anormal, mas devo ter me enganado. Um bom dia para o senhor.

Saí, parei, olhei para todos os lados, e não entendi o que havia acontecido. Pensei: “Será que eu criei uma ilusão de ótica? Seria tudo fruto da minha imaginação. Não, não é possível, ou andei quase uma quadra olhando e vendo tudo o que estava acontecendo, a ambulância, a caminhonete da polícia, tudo estava lá nitidamente. Será que estou ficando meio maluco? Vou deixar isso pra lá e vou almoçar.”

Após o almoço, retornei ao escritório e trabalhei a tarde toda, sem sequer me lembrar do estranho ocorrido. Absorto em meu trabalho, mal vi quando as dezoito horas chegara. Desliguei o microcomputador, fechei o escritório, e fui para o meu apartamento, que ficava num edifício ao lado do escritório.

No dia seguinte, estava no escritório, devia ser perto das onze horas, passei a ouvir sirenes de ambulância e corpo de bombeiros, saí do escritório para ver o que havia acontecido, fui até a esquina, o que vejo? Exatamente a cena que havia visto no dia anterior. Apressei o passo e cheguei ofegante ao local do sinistro. Um caminhão havia derrubado um poste com um transformador, que, ao bater no solo, havia explodido e pegado fogo. No local, devia haver mais de dez carros batidos, carros que vinham de ambos os lados e foram surpreendidos com a queda do poste. Confesso que não sou o tipo heroico, não tenho coragem de lidar com acidentes, olhei de longe e após ver que o fogo havia sido dominado e as vítimas estavam sendo atendidas, retornei ao escritório. Não sabia o que pensar, mas tinha a mais absoluta certeza de que eu tinha visto no dia anterior o mesmo acidente.

No final da tarde do mesmo dia, cheguei ao apartamento, troquei de roupa, colocando um abrigo para fazer uma caminhada e logo saí, rumo à praça municipal.

Na rua, me dirigindo à praça, recordei do estranho acontecimento, e em meu pensamento conjeturava:

“Eu vi realmente todas aquelas cenas, não posso ter imaginado. Tudo mudou quando passei a olhar por onde andava. Se tivesse continuado a olhar talvez eu chegasse até lá.”

Assim, pensando, cheguei à praça, e comecei a empreender a minha caminhada. A praça tem a extensão de uns cento e cinquenta metros em cada lado; uma volta completa pelo seu entorno dá uns seiscentos metros. Já havia dado seis voltas, ora caminhando, ora correndo, quando o sol se escondia no ocaso e as penumbras começavam a se transformar em escuridão. Dei mais duas voltas e a iluminação do dia dera lugar à iluminação elétrica. O movimento, tanto de carros como de pedestres, havia diminuído consideravelmente. De repente, não mais que de repente, o dia estava claro e o movimento de carros era intenso. Confesso que, desta feita, fiquei transtornado, mais por não haver entendido o que havia ocorrido. Em um momento, eu estava caminhando à noite, quase sem movimento de veículos, e, de repente, era dia claro e o movimento era intenso.

Fiquei em estado de choque, não sabia o que pensar, por isso me sentei em um dos bancos da praça. Reconstituí em pensamento tudo o que havia ocorrido naquele dia. Tinha certeza absoluta de que havia saído para caminhar, às dezenove horas, aproximadamente, que vira o sol se esconder. Como poderia, no momento seguinte, ser dia claro, com o sol brilhando no horizonte? Fechei os olhos e pensei: “Estou sonhando e logo acordarei desse pesadelo.”

Ledo engano, quando abri os olhos nada havia se modificado, o dia estava claro e o sol brilhava no céu azul. Retornei para casa. Quando adentrei na portaria do edifício, dei bom-dia ao porteiro, que me disse:

- Como foi de viagem, seu Fulano de Tal?

Por não saber o que responder, disse-lhe apenas que estava tudo bem. Peguei o elevador e subi até o terceiro andar onde tinha o apartamento. Introduzi a chave, abri a porta, adentrei e fui logo olhar o relógio de parede, que marcava onze horas e quarenta e cinco minutos. Conferi com o meu relógio pulseira que, naquele momento, marcava dezenove horas e cinquenta minutos. Tomei um banho, vesti roupas de trabalho e saí para o almoço ou janta. Fosse como fosse, eu estava com fome. Desci pelo elevador e, ao abrir a caixa de correspondência do meu apartamento, me deparei com ela simplesmente abarrotada de correspondência. Peguei os dois maços de cartas e contas para serem pagas e voltei ao apartamento. Sobre a mesa, passei a ordenar a correspondência, por ordem de data de postagem. A mais antiga tinha sido exatamente no dia que tudo acontecera. A mais recente, possivelmente, era do dia anterior. Constatei que a diferença de data, mais antiga e a mais nova, era de quarenta e cinco dias. Saí para almoçar e depois fui para o escritório.

Lá chegando, passavam das treze horas, o pessoal ainda não tinha retornado do almoço.

Abri o meu computador, a caixa de e-mail estava lotada, não parava de baixar e-mails. Nesse momento, chega o meu sócio e ao me ver diz:

- Homem! Por onde andaste? Podias ao menos ter me telefonado.

Confesso que não tive palavras para lhe explicar o que tinha acontecido. Disse-lhe apenas que algo muito estranho tinha me acontecido. Que, possivelmente, teria ficado internado em algum hospital, pois não me lembrava de nada. Ele simplesmente me respondeu:

- Você é quem sabe da sua vida! Posso te dizer que os trabalhos não sofreram solução de continuidade. Respondi-lhe que ficava muito grato pelo trabalho e pela tolerância.

Entrei de cabeça no trabalho, tinha muita coisa atrasada, contas para serem colocadas em dia, e-mails para responder, contatos com clientes a realizar.

Nas próximas semanas, não tive tempo de analisar o que teria me acontecido, mergulhei no trabalho até altas horas da noite. Coloquei todos os meus serviços em dia, ao cabo de duas semanas.

Agora podia analisar o que havia me acontecido. Após muita reflexão, cheguei à conclusão de que eu, simplesmente, sem saber como tinha acontecido, havia dado um pulo no tempo, fato este que poderia novamente voltar a acontecer. Conjecturava que, à primeira vez, teria sido por alguns segundos, já na segunda vez, quarenta e cinco dias, e, se houvesse uma terceira, quanto tempo saltaria? Resolvi falar com o meu sócio e lhe disse:

- Cicrano! Quero que você me escute, mas antes você irá me prometer que não me interromperá e fará um grande esforço para acreditar no que lhe vou contar. Contei tudo nos mínimos detalhes.

Terminei lhe dizendo que estava preocupado, pois poderia, de repente, sumir para sempre. E, por esse motivo, queria lhe passar uma procuração universal para ele gerir os nossos negócios, se isso acontecesse. E que, pelo sim e pelo não, iria apurar o máximo de valores que pudesse, com a venda dos meus bens, para carregar comigo, pois, se passado muito tempo, poderia ficar sem nada, para prover a minha existência. Ouro, o metal precioso, seria o meu investimento, que colocaria em um lugar ermo e que somente eu soubesse onde se encontraria, podendo acessá-lo em que tempo estivesse.

Mais uma semana passara, tudo estava pronto, o ouro, fruto da venda de diversos imóveis, estava guardado em lugar que eu pudesse alcançá-lo, se estivesse em outro tempo. Estava preparado para um acontecimento que me projetasse no futuro.

Fui chamado pelo meu pai, que se encontrava doente, há vários dias, em um leito do hospital.

Lá chegando, vi meu pai que logo me reconheceu e me chamou, dizendo:

- Chega mais, meu filho, que eu desejo falar contigo.

Aproximei-me dele e segurando a minha mão, me disse:

- Sei que muitas coisas estranhas estão acontecendo com você, meu filho.

- Como sabe, meu pai, se eu apenas contei ao meu sócio? Por acaso ele teria contado ao senhor?

- Não, nem cheguei a conhecer o teu sócio. Está chegando a minha hora, meu coração está no fim, eu confio que você tenha feito tudo o que deveria ser feito neste momento, por isto, morro em paz.

Ele me alcançou uma pequena agenda e disse:

- Filho, aqui há diversas anotações que fiz, guarde-a e quando em sua vida não souber o que fazer, em alguma situação, procure a solução nesta agenda. Mas apenas se isso acontecer. No mais, deixe-a sossegada, leve-a sempre contigo, nunca se separe dela, excepcionalmente, nos próximos meses.

Ele expirou pela última vez. Os aparelhos que controlavam os sinais vitais começaram a sinalizar a falta de batimento e da respiração. Acionei a campainha, chamando o enfermeiro, que, ao chegar, examinou os sinais vitais e concluiu que meu pai estava morto.

Passei quase que vinte e quatro horas velando o meu pai, e o acompanhei até a sua última morada.

Uma pergunta não cessava de passar pela minha cabeça: “como meu pai sabia que coisas estranhas estavam acontecendo comigo? ”

Essa era mais uma coisa inexplicável, que ficaria perturbando a minha mente. Peguei a agenda, que trazia no bolso do casaco, ela estava amarrada por um elástico preto, bem apertado, e, para abri-la, teria que cortar o elástico. Talvez ali estivesse a solução de tudo o que estava acontecendo, mas eu havia prometido que não a abriria a não ser nas condições que ele havia imposto.

Toquei a vida para frente, na esperança de que nada de anormal viesse a acontecer novamente. Os dias passavam na maior normalidade, até que um dia estava eu caminhando por uma das ruas da cidade, quando, de repente, notei que tudo estava mudado: a cidade estava menor, poucos carros trafegavam pelas ruas, os prédios mais vistosos não existiam, em seus lugares, havia casas antigas, o asfalto das ruas dera lugar a calçamento de paralelepípedos. Concluí logo que dera um novo salto no tempo. Porém, tudo indicava que teria voltado no tempo ou, como das outras vezes, que tinha avançado.

Segui caminhando até atingir a rua principal, totalmente descaracterizada. Pude ver os dois cinemas, com salas amplas, para mais de mil pessoas. Procurei uma banca de revistas e jornais, peguei o jornal do dia e vi a data: vinte e dois de maio de 1966, tinha retroagido no tempo em quarenta e dois anos. Eu podia me intitular “viajante do tempo”, mas continuava a não saber como isso acontecia.

UM NOVO TEMPO

Num tempo diferente do meu, estava sem saber o que fazer, e, nesse caso, o mais razoável era tentar raciocinar e verificar a real situação em que me encontrava. Havia nascido em 1975, portanto apenas nascerei daqui a nove anos. Neste tempo, os documentos que tenho não terão nenhum valor, pois a data do nascimento é em um ano que ainda não chegou. Lembrei-me do ouro que havia escondido, mas logo me dei conta de que somente teria valor se eu tivesse avançado no futuro, pois no passado ele não existia. Sentei na praça solitário, não tinha nenhum dinheiro com valor no ano em que me encontrava, pois a moeda havia mudado por diversas vezes. Talvez, por extinto, levei a mão ao bolso, apalpando a pequena agenda que meu pai me havia dado, e logo pensei: “ Realmente, estou em uma situação que não sei o que fazer. Portanto, devo recorrer à agenda do meu finado pai.”

Rompi o elástico e abri-a na primeira página. Lá estava escrito:

“Meu filho, sei que, neste momento, você está no ano de 1966, sem dinheiro e sem documentos. E sem saber o que fazer. Por isso, eu lhe orientarei, faça o seguinte: “Vá até a barranca do rio. Lá encontrarás as barcas que carregam seixos e areia para construções. Lá haverá trabalho, trabalho duro, mas não lhe perguntarão se tens documentos. Receberás por tarefa, dará o suficiente para prover a tua alimentação. Diz ao dono da barca que não tens onde ficar, ele permitirá que durmas na barca. Assim, terás abrigo nas noites e trabalho de dia. Por enquanto é isso, o resto da agenda deve permanecer sem que tomes conhecimento, até que tenhas uma real necessidade.”

Verifiquei que as folhas seguintes estavam com as pontas coladas. Fiz o que fora recomendado por meu pai. Realmente, consegui o trabalho, sem que me perguntassem o meu nome e se tinha documentos. O trabalho consistia em carregar o carrinho de mão, do porão, por cima de pranchas de madeira, até o rebaixo no cais, onde a areia era depositada, para após ser transportada por caminhões. O trabalho era duro, mas eu sempre me exercitava diariamente em corridas e caminhadas. A maior exigência era na musculatura das pernas para subir as pranchas de madeira do porão até o rebaixo do cais. Após uma tarde de intenso trabalho, recebi o pagamento, perguntei ao proprietário da barca se não se importaria que eu dormisse na cabina de comando. Ele me respondeu que seria ótimo, pois a molecada costumava invadir as barcas, à noite.

O pessoal que trabalhava na mesma atividade eram pessoas de baixa escolaridade e vida desregrada. Trabalhavam de dia para beber à noite. Sem chance de me misturar com eles, passei a trabalhar os dois turnos. À noite, descansava na cabina de comando. Assim, passaram-se seis meses. Até que um dia o dono da barca, ao efetuar o meu pagamento, disse:

- Estou precisando de um novo comandante para uma barca nova que quero encomendar, as que tenho não estão dando conta do recado. As vendas estão além da minha capacidade de transportar. Você não gostaria de aprender a dirigir uma barcaça?

- Sim, com toda a certeza.

- Mas tem uma condição, para aprender não precisa mas, para ser comandante de barco, terás que ter documentos e carteira profissional.

Respondi-lhe que perdera os meus documentos, mas que daria um jeito de reavê-los, possivelmente retirar novos. O aprendizado não durou mais do que um mês. Eu estava dirigindo a barca como tivesse feito aquilo toda a vida. Fui chamado pelo patrão que disse:

- Bem! Agora terás que providenciar teus documentos. A barca nova chegará dentro de trinta dias. Respondi-lhe que teria que juntar algum dinheiro para providenciar os documentos. Ele me disse:

- Veja de quanto necessitas, posso te dar um adiantamento.

Mais uma vez não sabia o que fazer, seria impossível tirar novos documentos. Com toda a cultura que possuía, alegar que não fora registrado daria margem a grandes especulações.

Pensei por três dias e não obtive nenhuma solução para o meu problema. Restava-me apenas recorrer à agenda de meu pai. Peguei a pequena agenda, introduzi uma lâmina da parte colada da folha e a abri. Lá estava escrito: “Vejo que necessitas de documentos.Pois bem, vai a São Leopoldo, encontrarás na praça da rodoviária um pintor de quadros, aqueles pintores que pintam retratos ou fazem caricaturas. Pergunta-lhe como podes obter documentos novos.”

Isso era tudo o que havia escrito na página, as demais estavam lacradas.

O homem me disse que os documentos que eu queria, ou seja, certidão de nascimento, carteira de identidade e carteira profissional, custariam CR$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos cruzeiros), que era a moeda da época. E que eu deveria providenciar meia dúzia de fotos três por quatro.

Solicitei o adiantamento e providenciei as fotos. Escolhi um nome, uma data de nascimento; como na época tinha trinta e três anos, minha data de nascimento seria em 1934.

Com os novos documentos, passei a ser empregado efetivo da empresa Navegação do Sul Ltda.

Já fazia mais de um ano que estava no comando da barca Gilda II, quando, ao retornar de viagem, fui convidado pelo patrão para ir no domingo a sua casa comer um churrasco.

Coloquei a minha melhor roupa e, às nove horas, me dirigi à casa do patrão. Um casarão antigo, numa das principais ruas da cidade.

Apertei a campainha, no portão lateral da esquadria de ferro. Logo o patrão veio atender, cumprimentou-me e convidou-me a entrar. Dirigimo-nos para um amplo anexo, na lateral direita da casa, construído entre estrondosas árvores. Havia uma mesa para doze lugares, um refrigerador, uma pia ao lado de uma grande churrasqueira, e, em um dos cantos, uma sala com um enorme sofá e duas poltronas. Nesta sala, via-se uma prateleira com diversos livros, sendo o lugar decorado com motivos gauchescos, com um lombilho e outros arreios pendurados nas paredes.

O patrão, que pouco falava com os empregados, mostrou-se receptivo e muito falante. Ele tinha uma ótima prosa, sempre que ia iniciar um novo causo, colocava o dedo indicador no centro do bigode virado para cima e quando concluía a estória, juntava ambas as mãos pela ponta dos dedos e fazia movimentos de afastar e unir os dedos uns contra os outros.

A conversa estava animada enquanto ele preparava as carnes a serem levadas ao fogo. Na porta aparecer uma bela moça que, parando na porta, disse:

- Bom-dia, como está o churrasco? A salada já está pronta!

Quando ela se aproximou, ele se adiantou e disse:

- Esta é minha filha, este é o comandante da Gilda II.

Confesso que nunca antes tinha ficado embaraçado na presença de uma mulher. Essa foi a primeira vez que não sabia o que dizer ou fazer. Ela estendeu a mão e eu a apertei, apenas podendo dizer um simples como vai.

Nossos olhos se cruzaram, algo estranho havia acontecido, meu coração parecia que queria sair pela boca.

Ela disse:

- Esteja à vontade, sei que em conversa de homem mulher não deve se meter.

Pegou a toalha que estava sobre a mesa e a estendeu. Logo pegou pratos e talheres no armário e os distribuiu sobre a mesa. Ao sair disse:

- Por favor, me chamem quando o churrasco estiver pronto.

O patrão preparava mais uma caipirinha, tomava-a num só gole, uma vez que eu lhe havia dito que não bebia.

O churrasco ficou pronto e ele bateu um sino para chamar a filha, que logo veio trazendo uma travessa de saladas.

Durante o churrasco, o patrão tomou duas cervejas, e após, sentou no sofá. Eu o acompanhei enquanto a filha recolhia os pratos.

O patrão foi se acomodando e logo estava dormindo, escarrapachado no sofá.

A filha, que terminara de recolher os pratos, trouxe um bule com café e três xícaras. Colocou tudo sobre a mesinha de centro, ocupou uma das poltronas e olhando fundo nos meus olhos disse:

- Então você é o Fulano de Tal. Homem enigmático, como diz o meu pai, mas muito trabalhador e cumpridor de seus deveres. Sabe? Meu pai aprecia muito, disse-me que você é uma raridade nos dias de hoje.

Respondi-lhe que eu era um homem comum, mas que alguns acontecimentos teriam me colocado em uma situação embaraçosa, que, talvez, algum dia eu lhe contasse toda a minha história.

Enquanto conversávamos, nossos olhos se procuravam e quando se encontravam pareciam que ficavam parados, atraídos um pelo outro.

Quebrando o silêncio perguntei:

- O patrão dorme aqui mesmo, ou está dormindo só porque eu estou aqui?

- Não, todos os domingos ele gosta de tomar a sua caipirinha e cervejas e dorme sempre aí. Mas, veja bem, ele somente bebe nos domingos.

- Sim, eu percebi, pois jamais o vi beber antes. Mas, conte-me, sobre você, é solteira?

- Não, sou casada, mas separada do marido. Sabe como é, casei muito nova e não soube escolher o consorte. Nós nos separamos há mais de dez anos. Vivo com o meu pai, desde então, pois minha mãe faleceu e como ambos estávamos sozinhos, resolvemos morar juntos.

Daquele momento em diante vimos que um necessitava do outro para continuar vivendo.

Ela me disse:

- Você acredita no amor?

- Sim, embora confesso que não cheguei a casar, pois não havia encontrado uma mulher que me levasse a cometer tal loucura.

- Conhece a história do amor?

- Não, nunca ouvi contar.

- Conta a mitologia que, a tempos atrás, viviam duas crianças, um menino e uma menina, que tinham entre quatro e cinco anos de idade. O menino chamava-se Amor e a menina, Loucura.

O Amor sempre foi uma criança calma, doce e compreensiva. Já Loucura era muito emotiva, passional e impulsiva, enfim, do tipo que jamais levava desaforo para casa. Entretanto, com todas as diferenças, as crianças cresciam juntas, inseparáveis, brincando, brigando...

Mas houve um dia em que o Amor não estava muito bem, e acabou cedendo às provocações de Loucura, com a qual teve uma discussão muito feia. Ela não deixava nada barato, estava furiosa como nunca com o Amor. Começou a agredi-lo, mas não só verbalmente, como de costume. A menina estava tão descontrolada que agrediu o garoto fisicamente e, antes que pudesse perceber, arrancou os olhos do Amor.

O Amor, sem saber o que fazer, chorando, foi contar à sua mãe, a deusa Afrodite, o que havia ocorrido. Inconsolada, Afrodite implorou a Zeus que ajudasse seu filho e que castigasse Loucura.

Zeus, por sua vez, ordenou que chamassem a garota para uma séria conversa.

Ao ser interrogada, a menina respondeu, como se estivesse com a razão, que o Amor havia lhe aborrecido e que foi merecido tudo o que aconteceu. Embora soubesse que não fora justa com seu amigo, a menina, que nunca soube se desculpar, concluiu dizendo que a culpa havia sido do Amor e que não estava nem um pouco arrependida.

Zeus, perplexo com a aparente frieza daquela criança, disse que nada poderia fazer para devolver a visão do Amor, mas ordenou que Loucura estaria condenada a guiá-lo por toda a eternidade, estando sempre junto ao Amor, em cada passo que este desse.

E até hoje, eles caminham juntos, onde quer que o Amor esteja com ele estará a Loucura, quase que fundidos numa só essência. Tão unidos que, por vezes, não se consegue definir onde termina o Amor e onde começa a Loucura.

E é também por isso que se usa dizer que o Amor é cego; mas isso não é verdade, pois o Amor tem os olhos da Loucura...

- Muito interessante, como você soube dessa estória?

- Eu sou aficionada por mitologia grega.

A conversa foi animada, parecia que nos conhecíamos de longa data. Muitas afinidades de gosto e de atitudes. Lá pelas quatro horas da tarde, o patrão acordou.

Achei que era hora de ir embora, me despedi dele, a filha disse que me acompanharia até o portão. Lá chegando, eu lhe disse:

- Posso vê-la de novo?

- Sim, podemos ir ao cinema hoje à noite, o que achas?

- Eu a apanho às sete e meia, está bem para você?

- Está ótimo.

Assim, passei a frequentar a casa do patrão e a namorar a filha dele. E, a seu convite, passei a tomar parte nos negócios. Certo dia lhe disse:

- Está cada vez mais escasso conseguir trabalhadores para descarregar areia e seixos. Poderíamos comprar um descarregador de duas conchas.

Ele me respondeu que já estava em tratativas da compra de um. Em trinta dias, o descarregador estava instalado, uma espécie de duas conchas com acionamento hidráulico. As conchas eram lançadas sobre a areia; em se fechando, se enchiam e a lança erguia e girava quarenta e cinco graus, despejando a areia no cais.

Dois anos de namoro e contraímos matrimônio. Poderíamos ter casado antes, mas eu, receoso de que poderia desaparecer repentinamente, fui adiando, até que não pude resistir aos encantos da filha do patrão e casei.

Estávamos no ano de 1972, quando o patrão estava descarregando uma das barcaças. O eixo, que fazia o guindaste girar radialmente, rompeu, caindo sobre a barca que estava sendo descarregada. O patrão, que estava na cabina de comando, caiu com ele, e sofreu um esmagamento de crânio, faleceu na hora.

Com a morte do meu sogro, passei à frente dos negócios, juntamente com minha esposa. No ano de 1976, nasceu o nosso filho, resolvi dar-lhe o mesmo nome que tinha antes da minha transferência para o ano de 1966. Agora, a minha felicidade estava completa, com o nascimento do meu filho. Amava imensamente minha esposa e por ela era correspondido. Meu filho foi crescendo e, quando ele tinha sete anos, passei a notar algo que me deixou muito preocupado, fatos que até então haviam passado despercebidos por mim. Notei que sabia tudo o que iria acontecer com meu filho, pois era exatamente o que recordava da minha infância. Os brinquedos, a ida à escola pela primeira vez, eu estava presenciando tudo o que havia vivido, quando tinha a mesma idade dele, só que desta feita o protagonista era meu filho. Passei propositadamente a prever os acontecimentos da vida do meu filho, e por incrível que parecesse tudo estava minuciosamente correto. Preocupei-me com isso e busquei uma explicação para tais fatos.

Após muito raciocinar e muito analisar, cheguei à conclusão de que eu era pai de mim mesmo, e que, naquele momento passara a viver simultaneamente duas vidas. Mas eu precisava ter certeza de que estava certo. Foi quando lembrei da agenda de meu pai.

Abria e lá estava escrito:

- Você está certo, o pai e o filho são a mesma pessoa, em tempos diferentes. Não deves revelar nada a teu filho, ou a ti mesmo, na vida paralela, pois fiz diversos estudos sobre viagens no tempo, dás varias teorias que existem, embora nenhuma tenha sido comprovada. No entanto, todas com grande probabilidade de serem acertadas. Se você revelar a seu filho o que está acontecendo, poderá quebrar a harmonia do tempo e causar transtornos irreparáveis.

As demais folhas da pequena agenda não estavam escritas, portanto, esta era a última ajuda que receberia de mim mesmo no futuro.

Segui as instruções recebidas e nada revelei a mim mesmo nas vidas paralelas.

Cheguei à conclusão de que eu estava preso num ciclo, que se repetia sem parar, embora não soubesse quantas vezes tinha ele acontecido. Tinha uma única certeza de que quando eu morria como pai, tudo era esquecido, pois como filho teria que percorrer um caminho completamente desconhecido.

Senhor Otrebor! Deixei de revelar nomes de todos os envolvidos, pois, se o fizesse, estaria colocando em risco todos os acontecimentos, que, se revelados, poderiam quebrar a harmonia do tempo e causar prejuízo a muitas pessoas. Saliente que tudo o que escrevi na agenda que dei ao meu filho continham apenas informações nas quais os eventos principais poderiam sofrer modificações que poderiam alterar a roda do tempo. Estou lhe escrevendo, no final da minha existência, pois devo morrer nos próximos dias, após haver chamado o meu filho para me despedir dele, ou seja, de mim mesmo. Afinal, somos pai e filho, a mesma pessoa.

rocado
Enviado por rocado em 24/10/2018
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