UMA HISTORIA PRA NÂO SER ESQUECIDA!!!
Thiago foi a cozinha e retornou com um vidro de pasta de amendoim. A mãe, o pai e a irmã tomavam o desjejum. Clima ameno em Berlim. O pai, Ernest, era banqueiro. O progenitor pegou o chapéu, a maleta e a bengala. Despediu-se de todos e foi trabalhar. - " Lembre-se, querida Anne, de nossa viagem pra Zurique. Compre malas novas." A esposa sorriu. -" Certo! Vou ao centro da cidade com a tia Francine. Bom trabalho." Thiago e Sofie abraçaram o pai. Thiago voltou o olhar para o apetitoso pão italiano, as rosquinhas de nata, o queijo com furinhos e o bolo de nozes! Queria um pouco de cada coisa. Tinha treze anos e estava em fase de crescimento. Teria de andar sete quadras até a escola. Encheu a lancheira com rosquinhas, balas e pirulitos. Pensava na sopa deliciosa da hora do recreio. Os doces da cantina. As frutas que trocava com os amigos de sala de aula. Abriu a geladeira e viu o pudim de leite, a maçã caramelizada e a garrafa de suco. Quanta fome!!! A rica família iria de trem pra Zurique, em poucos dias. Thiago estivera naquela cidade suíça havia dois anos. Lembou-se dos chocolates artesanais e outras guloseimas. O trem tinha vagão dormitório e refeitório. Que frango assado delicioso serviam com salada Cesar e suco de uva. Uma viagem inesquecível. Thiago lembrava-se de tudo, dos gostos, sabores e aromas. Tinha saudades até das bolachas duras que a avó fazia. Rabanadas ela sabia fazer bem. Jonas, o tio, era pianista e alegrava as noites em volta da lareira. Sofie era quatro anos mais velha que ele. Ela amava estrogonofe e sopa de ervilhas. Quanta fome!!! Sorvete. Salada de frutas. Thiago salivava. Queria dar um forte abraço em Sofie. Abriu os braços. Sofie estava na sua frente. -" Thiago... pare de pensar em comida!!!" Ele sorriu. -" Isso me mantém vivo. Um fio de vida mas estou vivo. Eu acho!!! Eu..." A imagem de Sofie desapareceu no ar. Juntou a neve nas mãos. Nem ligava mais para o frio de dois graus abaixo de zero. Pra mais nada nem ligava, nem para o mau cheiro dos cadáveres ao seu lado. Os lábios rachados sangravam. Olheiras profundas. Podia contar as costelas. Em nada lembrava aquele garoto obeso e bochechudo de Berlim. Fazia um ano que seu primo Isaac trouxera a notícia que seus pais tinham sido fuzilados em Auschwitz. A última vez que vira o pai, ele apanhava de um soldado alemão antes de entrar no trem. Separaram os filhos de seus pais. Sofie morrera há duas semanas na câmara de gás. Estava careca e esquálida...Ele acenou pra ela, separados por cinquenta metros e pelo arame farpado das cercas.Sofie fizera amizade com Anne Frank. Thiago estava tuberculoso, com piolhos e cicatrizes. Um esqueleto andante. Deixado na beira da estrada com dezenas de prisioneiros pra morrer. Era o único vivo mas sentia a chegada da morte. Um barulho de jeep com dois soldados. Thiago deixou o corpo cair. Fingiu-se de morto. Nem precisava fingir pois parecia mais morto que vivo!!! O uniforme listrado do campo de concentração. O número 65008 tatuado no pulso. Os soldados chutavam os corpos. Thiago nem sentiu o golpe em sua perna. Anestesiado pela fome, pela dor na alma. -" Mortos, todos!!! Vamos embora, Alfred!!!!" Gritou um dos soldados nazistas. Thiago dormiu. Sem forças. Sem perspectivas. Sem nada. Seis horas depois foi recolhido por um caminhão da Cruz Vermelha e por soldados norte americanos. Pesava vinte e um quilos. Abriu os olhos num hospital de campanha. Pensou que estava no céu. Escutava ao longe a música, as conversas em outros idiomas e o som de aviões. Falou seu nome ao doutor. Apenas isso. Calado por semanas. Era um sobrevivente do holocausto!!! Era um milagre!!! Filho de judeus, sofrera todo horror dos campos nazistas. Dois meses depois engordara vinte e dois quilos. Foi embarcado num navio pra Irlanda, onde seria adotado por camponeses. Com vinte e quatro anos quis vir para o Brasil. Montou uma alfaiataria em Americana, São Paulo e casou-se com Joaquina. A negra sabia fazer uma feijoada dos deuses. Thiago agradecia sempre por estar vivo e ter encontrado uma ótima esposa. Joaquina deu-lhe duas filhas, Luana e Ester. Manteve seu passado bem guardado, apesar do sobrenome Steinhberg. Gostava de caminhar pela Avenida Brasil, de saborear os pastéis do Mercadão e de levar os netos ao Zoológico. Jamais retornara a Europa. Thiago tinha 83 anos quando os netos Raul e Saulo, de quinze e dezessete anos, respectivamente, faziam o dever da escola na mesa da sala de jantar. Thiago e Joaquina assistiam televisão. -" Esse debate está ganho, Saulo! Jamais houve o holocausto!!! Tudo mentira." Disse Raul. Joaquina, entrou na conversa. -" Meus pais eram filhos de escravos. Escutei um homem dizer que jamais houve escravidão, Raulzinho!!!! Cada coisa!!!" Raul e Saulo se entreolharam. -" Apenas quem sentiu na pele pode dizer, vovó!!" Disse Saulo!!" Thiago verteu uma lágrima. Ele se levantou e sentou-se com os netos. Abriu os livros de história. Fotos de valas com montes de cadáveres de judeus mortos. Era doloroso ver aquilo. Chorando, arregaçou as mangas do pijama e mostrou-lhes o pulso com a tatuagem 65008. -" Desculpe-me, Joaquina. Minhas cicatrizes não eram de brigas de rua mas dos campos de extermínio da Alemanha." Joaquina, os netos, estavam estupefatos. Surpresos, Saulo e Raul tocaram aquele número impresso na pele do avô. As filhas de Thiago chegaram naquele momento. Joaquina pediu pra elas se sentarem. Thiago contou sua verdade, seu passado, por duas horas. Ele foi acarinhado por todos. Todos aos prantos. Thiago estava aliviado. Raul e Saulo levaram Thiago ao debate da escola. O anfiteatro escolar estava tomado por alunos de todas as séries. Professores atentos. Saulo, em seu momento oportuno, chamou Thiago ao palco. Durante uma hora ele narrou os horrores da segunda guerra. Guardara seu segredo por décadas. Tiraram-lhe tudo mas jamais tiraram a liberdade de sonhar. Agora celebrava a vida. A platéía escutava emudecida. O professor Leandro puxou as palmas. Aplaudido de pé, Thiago era a prova viva do holocausto. O diretor encerrou o debate. Sua história ganhou os jornais, programas de televisão e a internet. Recebeu medalhas do prefeito e vereadores locais. Thiago voltou para a Alemanha com a esposa, filhas e netos. A casa onde nascera ainda estava de pé. No memorial do holocausto viu as fotos com os nomes dos pais, dele e de Sofie. O mesmo número de seu pulso estava numa placa como identificação de desaparecidos judeus e de outras minorias. Saulo publicou um livro sobre a vida de Thiago, um sobrevivente dos campos de concentração, intitulado= Prisioneiro 65008. Uma história pra não ser esquecida!!!! (Marcos Dias Macedo)