Os Senhores do Fogo


OS SENHORES DO FOGO

Miguel Carqueija



Na paisagem selvática, eriçada por grandes rochas agudas e limitada por íngremes escarpas, sob a resplandecente luz do plenilúnio e o reverberar de relâmpagos na atmosfera seca, seguia a amazona em seu cavalo branco. Era uma jovem oriental, com seus característicos olhos repuxados, portava elmo e armadura peitoral, um pequeno escudo a tiracolo, bem como a aljava com arco e flechas, e a espada em sua cintura. Seus olhos negros eram penetrantes e seus cabelos esvoaçavam ao vento abaixo do elmo. O vestido azul, que lhe chegava às canelas, também esvoaçava um pouco ao vento e esparzia reflexos de luz das meias-luas e estrelas prateadas que ornavam o tecido.
Por detrás de uns robles surgiram alguns homens e algumas mulheres e crianças vestidos com andrajos, e aparentemente estavam empenhados em pastorear algumas aves dispersas pela campina, galináceos diversos. Um homem de longa barba branca, possivelmente o patriarca do grupo, aproximou-se da jovem segurando firmemente um cajado rústico:
- Quem é você, eu posso saber?
- Sou Mara Akiane, Cavaleira Livre. E quem é você?
O velho hesitou, segurando prudentemente o seu cajado que podia servir como arma, os cabelos sacudidos pelo vento que recrudescia e vinha
acompanhado por pesadas gotas de chuva. Talvez não estivesse acostumado a ser interrogado por garotas.
- Sou Peclat – respondeu finalmente. – Você disse Cavaleira Livre? Uma mulher?
- E que tem isso de mais?
- O que você procura?
- O Castelo Azul.
O homem estremeceu enquanto o resto do grupo se avizinhava, trazido pela curiosidade.
- O que você quer no Castelo Azul?
- Por que deseja saber, Senhor Peclat?
Uma mulher magra, de cabelos longos e soltos, acompanhada por três crianças que lhe seguravam o vestido, olhou firme para a amazona e apontou-lhe o dedo:
- É de você que falaram! Você é a guerreira escolhida!
- Cale-se, Piva! – gritou o velho, erguendo o cajado.
- Não, Peclat! É ela! Pergunte a ela!
- É você? – perguntou afinal Peclat.
Mara respondeu:
- Estou indo ao Castelo Azul para falar com os Senhores do Fogo, para levar a reivindicação dos povos espalhados pela Terra, de liberar o Fogo Corpuscular para que os homens possam utilizá-lo e para que a civilização do Passado renasça.
- Sabe você que eles a matarão?
- Os Senhores do Fogo? Isso é o que veremos. Desculpe-me, senhor. Devo ir agora.
- Que Deus a ajude! – gritou Piva. – Tome muito cuidado!
- É uma louca – observou um homem de longos cabelos louros, tocando o ombro de Piva. – Ninguém jamais pôde enfrentar os Senhores do Fogo. Eles são invencíveis!
Porém Mara já não o escutava. Tendo tocado a sua montaria, afastava-se rapidamente e sem olhar para trás. Logo subia a encosta por um pequeno caminho que seguia por estreito vale, povoado por milhões de cogumelos presos aos barrancos pedregosos. Ao passar uma curva do caminho viu-se diante de um panorama bem mais alargado, com vastos tapetes de vegetação e, ao longe sobre uma colina, um grande castelo ou fortaleza.
Por alguns momentos a moça permaneceu imóvel e silenciosa sobre o eqüino estacionado. Com os lábios cerrados e uma expressão decidida em seu olhar penetrante, ela observou o lendário e temido Castelo Azul, ainda a dezenas de quilômetros de distância, envolto por um nevoeiro acinzentado.
- Séculos e séculos – murmurou ela. – Dez séculos de barbárie, sem que o conhecimento se tenha perdido. Por que? Por que sonegá-lo à humanidade?
Olhou carinhosamente para o seu fogoso animal e murmurou:
- Vamos, Relâmpago. Vamos tentar resolver este assunto.
O cavalo começou a descer a encosta por um caminho que passava através de um verdadeiro boqueirão e depois tornava a se elevar, em meio a rica vegetação, em direitura ao castelo. Mara conservava uma expressão serena e destemida, as faces banhadas pela luz do luar.
A noite já ia bem avançada quando ela estacou a uns cinqüenta metros do castelo, pondo-se a observar aquela sólida e milenar construção que, dizia-se, já existia antes mesmo que as bombas calóricas se derramassem sobre os continentes, arrasando a civilização. Assistira à queda de toda uma cultura, onde carros moviam-se sem a ajuda de cavalos, carruagens deslocavam-se pelos ares e, a crer nas lendas, homens iam até o espaço cósmico.
Havia um clássico fosso rodeando o palácio e Mara deteve-se, pensando em como iria chamar a atenção. A porta principal, porém, se abriu e um homem negro e alto apareceu, dirigindo-se à moça em tom peremptório:
- Quem é você e o que deseja?
- Eu sou a Cavaleira Livre Mara Akiane, venho das ilhas do Oriente e desejo falar com o sensei que governa este castelo.
- Isto é impossível.
- E por que? Terá ele medo de uma mulher?
O homem fez uma careta de raiva. Era careca, estava sem camisa e seus braços eram muito musculosos. Um escravo? Um eunuco? Assim pensou Mara. A derrocada que a civilização conhecera após a terrível Guerra da Água trouxera entre outros flagelos o retorno da escravidão. Conforme a região negros, brancos, índios, mestiços ou amarelos estavam sujeitos à escravidão; ou a mesma era decidida por nível econômico e até contratos; havia pessoas que vendiam a si mesmas ou a seus filhos.
- Como se atreve a falar assim? – berrou o homem. – Meus amos saberão castigá-la!
- O que eu falei, falei franca e lealmente. E por que os Senhores do Fogo não podem me escutar? Diga a eles que eu desafio a qualquer guerreiro que os sirva, para ganhar o direito de ser recebida.
- Você é uma mulher! – e havia desprezo naquela voz.
- Sim, ainda bem que reconhece: eu sou uma mulher, mas não sei se você é um homem. Agora despache-se! Eu estarei esperando!
Furioso, o homem se retirou, fechando a porta. Mara pôs-se a aguardar, procurando imaginar o que estaria se passando lá por dentro.
Quinze minutos depois a porta tornou a abrir e uma moça loura de longos cabelos e longo vestido sem mangas apareceu e chamou-a com um gesto:
- Faremos baixar a ponte levadiça. Entre com seu cavalo.
- Obrigada – e Mara sorriu.
A ponte baixou e ela penetrou finalmente na famosa fortaleza dos Senhores do Fogo.
- Sou Mara Akiane – tornou ela a se apresentar. – E você?
- Milene Scida – respondeu a outra com uma estranha entonação na voz.
-Vim falar com o Senhor do Fogo, seja ele quem for. É importantíssimo.
- Serve uma Senhora do Fogo?
- Como diz?
Milene apontou para as luzes elétricas acesas por todo o vasto teto do suntuoso aposento.
- Não há mais ninguém. Uma doença insidiosa chamada hemofilia, que atinge apenas os homens, destruiu todos os varões do clã dos Senhores do Fogo. As mulheres também morreram, exceto algumas que foram embora e arranjaram uniões em países distantes. Apenas eu fiquei, com alguns criados fiéis como Abdul e alguns animais. O laboratório de reciclagem que ainda funciona garante a nossa alimentação. Vejo que está espantada, mas pense: há quantos anos ninguém se lembra de avistar algum dos lendários Senhores do Fogo?
Perplexa, Mara fitou a sua interlocutora:
- Eu sou uma guerreira. O sacerdote-mago de minha comunidade consultou o círculo de fogo e disse que eu era a pessoa escolhida para a missão de resgatar o fogo elétrico em benefício dos povos. Eu vim disposta a desafiar o titular deste castelo para um combate, se tal fosse necessário, pois eu devo resgatar a Eletricidade para a raça humana. Mas não previ ter de enfrentar uma mulher.
- Isto não será necessário. Os Scida foram um clã patriarcal; se as nossas mulheres tivessem voz esta situação já estaria resolvida há séculos. Infelizmente os chefes do clã temeram partilhar a usina, os nossos geradores, temeram ficar sem nada e se fecharam, defendendo o castelo com a fulminação elétrica que matou tantos dos nossos semelhantes. Depois, ninguém mais se atrevia a tentar. É incrível, não é? A humanidade empatada durante tantas gerações por uma única família... mas o que você não deve saber é que, em outras partes do mundo, já estão redescobrindo tudo. O que aliás era previsível.
- Então... a minha missão não será mais necessária...
A outra sorriu.
— Na verdade você tem um aspecto doce, e até usa sandálias e saia... isso de guerreira não combina com você.
- Mas eu sei lutar, se houver necessidade.
- Está bem. Você foi muito corajosa, vindo aqui sozinha e sem saber o que encontraria. Mas agora devo demonstrar a minha hospitalidade. Venha cear comigo; mandarei alimentarem o seu belo cavalo.
- Eu te agradeço e aceito, Milene. Mas como faremos então quanto à energia?
- Foi Deus quem te mandou, sem dúvida. Será preciso mediar com o povo, selecionar as pessoas que possam aprender a lidar com a corrente elétrica que é perigosa. Com a sua ajuda faremos isso. A minha vida passará a fazer sentido, pois agora eu poderei ajudar as pessoas. Darei liberdade a todos os criados e um dia, quem sabe eu te acompanho.
- Como disse?
- Se eu ficar neste castelo serei sempre vista como uma Senhora do Fogo, e quero esquecer essa sina. E uma cavaleira livre como você deve precisar de uma escudeira. Haverá outras missões, no futuro.
- Eu não sei ainda o que dizer... mas você me ensinará a usar o Fogo Corpuscular?
- Quanto a isso, não tenha dúvida.
- E será que poderemos forjar armas com este fogo... que disparem setas elétricas, por exemplo?
- Tenho certeza de que algo assim será possível. Você se tornará uma guerreira invencível... mas terá de usar tal poder com sabedoria.
- Eu o farei.
E Mara acompanhou Milene ao refeitório.

 

 

Rio de Janeiro, 7 a 18 de outubro de 2008.





imagem pixabay
 

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 10/10/2018
Reeditado em 17/07/2023
Código do texto: T6472509
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