Crueldade com animais
- Um animal selvagem é cruel... mas somente o ser humano dito civilizado, é impiedoso. Eu prefiro a companhia dos animais, não dos seres humanos - declarou Simpson, olho na mira telescópica do rifle.
Estávamos tocaiados num barranco, em meio a vegetação, às margens da rodovia abandonada. O mato já começara a crescer por entre as rachaduras do asfalto, mas, ainda assim, o caminho ainda era utilizado esporadicamente por patrulhas dos Saqueadores - embora o que de valioso havia no fim da estrada, certamente já havia sido levado muitos anos antes, logo após o fim da guerra.
- Creio que foi Freud quem disse isso - comentei, mantendo minha pistola .45 a mão caso visse algum movimento suspeito. - O que não deixa de ser irônico.
- Freud sabia do que estava falando - atalhou Simpson. - Vem vindo alguém.
Eu também já ouvira: um zumbido baixo, provocado pelo motor de uma unidade antigravidade dos Saqueadores. Instantes depois, o veículo prateado e de formas arredondadas, como uma gota d'água, surgiu na curva da estrada, vindo em nossa direção.
- Não atire - alertei.
Simpson não pediu explicações, pois também ouvira a mesma coisa. Não era um veículo isolado, mas um comboio. Contamos seis unidades, rumando para as ruínas da antiga represa.
- O que diabos estarão indo fazer lá? - Indagou Simpson intrigado.
- Talvez tenham encontrado algum núcleo da Resistência... embora eu nunca tenha ouvido falar de tropas nossas tão ao norte - ponderei.
- Nós estamos ao norte - atalhou Simpson.
- Nós não valemos o deslocamento de seis unidades para esse fim de mundo - retruquei sardonicamente. - Só atacamos veículos isolados, e nunca ficamos muito tempo no mesmo lugar.
- Pois é melhor irmos checar o que estes batedores estão fazendo por aqui - decidiu Simpson, pondo-se de pé. - Estou com um mau pressentimento.
- Então não seria melhor irmos na direção contrária? - Questionei.
- A informação pode ser mais valiosa... - Simpson ajeitou o rifle à bandoleira. - Mais até do que as nossas vidas.
Com tal argumento, não me restou outra opção senão acompanhá-lo mato adentro.
* * *
Cortamos caminho por uma trilha na floresta até um ponto elevado onde podíamos abranger a área da represa e do cânion do rio. Efetivamente, vimos as seis unidades paradas junto ao posto de controle, intacto mesmo após o impacto direto que abrira uma enorme fenda na barragem, inundando as cidades e vilarejos mais abaixo, matando instantaneamente milhares de pessoas inocentes no início da guerra.
- O que acha que estão fazendo? - Indaguei, enquanto Simpson analisava os arredores através da mira do rifle.
- Há muito entulho do dique de contenção no leito do rio... talvez estejam pensando em desobstruir completamente o cânion. Lembra sobre a discussão que havia antes da guerra, sobre os salmões subirem a correnteza na época da desova?
- Lembro... e construíram um canal pelo qual os peixes podiam passar, se bem me lembro.
- Pois me parece que agora vão voltar a ter o acesso totalmente livre - ele riu baixinho.
Sentei-me ao seu lado.
- Nós os chamamos de "Saqueadores", até por não sabermos como se denominam entre si... - comentei. - Mas esse é um termo incorreto, não acha? Eles, na verdade, não parecem muito interessados em saquear as nossas cidades e construções... apenas em destruí-las o mais metodicamente possível, para que a natureza possa retomar seu domínio. Ou, ao menos, é o que parece que estão fazendo.
Simpson desviou brevemente o olhar para mim. Depois, voltou à mira telescópica.
- A espécie humana sempre foi muito cruel consigo mesma, - arguiu - o que não dirá com outros animais. Que eles tenham vindo do espaço e nos tratado com o desprezo que devotamos a todos os que considerávamos diferentes ou menos do que humanos, talvez seja algum tipo de justiça poética.
A porta lateral de uma das unidades abriu-se para cima. Mesmo daquela distância, eu pude ver quando uma criatura amarelada pulou de dentro do veículo, abanando alegremente a cauda: um golden retriever, muito provavelmente.
- Se isso nos serve de consolo, eles gostaram dos nossos cães - declarou Simpson.
- E a recíproca parece ser verdadeira - retruquei.
- [21-09-2018]