Céu Cinzento
Vitória, Brasil, setembro de 2078
A capital do estado do Espírito Santo era gigantesca e, unida à sua região metropolitana, formava uma conturbação que ultrapassava os 20 milhões de habitantes. A Ilha de Santo Antônio, ponto inicial de Vitória, havia inflado nos últimos anos, crescendo para cima com a construção de inúmeros prédios, e para os lados onde podia – aterrando-se ao mar. Vitória possuía pouco mais de 1 milhão de habitantes e era ocupada por grandes empresas e por pessoas com alto padrão de vida, sendo imensamente desenvolvida tecnologicamente. As demais pessoas, as quais não possuíam elevado padrão de vida, loteavam as cidades da região metropolitana, que eram infladas e lotadas. Os centros de tais cidades eram razoavelmente desenvolvido e tecnológico, porém as periferias eram superpovoadas, pobres e marginalizadas, fazendo com que as pessoas dividissem o espaço com fábricas e lixões.
Tal cenário era comum em todo o país. O Brasil, em janeiro daquele ano, contabilizara exatos 1 bilhão de pessoas. O país estava lotado e, a cada ano, a riqueza, a comida e o espaço deveriam ser divididos por mais e mais pessoas. Isso fazia com que existissem verdadeiras megalópoles, resultado da união entre regiões metropolitanas diversas – e, às vezes, até longe uma da outra. No Espírito Santo, Vitória, Cachoeiro do Itapemirim e Linhares faziam a megalópole VICALI, ocupando grande parcela do território capixaba.
Neste cenário, vivia o jovem José. Morador da periferia da gigantesca Vila Velha, dividia o espaço de sua rua com o lado oeste do lixão São Francisco I, o maior da VICALI. O lixão era seu sustento do dia. À noite, José trabalhava como riati, uma espécie de prostituto para jovens do sexo masculino, que transavam com homens que não queriam transar com mulheres e engravidarem ou com mulheres que queriam perder logo a virgindade.
O governo do estado do Espírito Santo havia lançado, naquele 08 de setembro, um pacote de medidas para auxiliar as classes mais pobres a conseguirem emprego digno e, por consequência, diminuir o desemprego do estado, que atingia alarmantes sete por cento da população capixaba. Porém, tal pacote gerou imenso protesto que interditou a passagem dos veículos na Avenida Ministro Joaquim Benedito Barbosa Gomes, em frente ao Palácio Anchieta; protesto este formado por jovens e idosos, de classe abastada, que eram contra a política pública de inclusão social, pois afetava fortemente a meritocracia.
Naquele dia, José estava em Vitória. Havia saído da casa de prostituição e riati onde trabalhava à noite, após dormir, e iria voltar para o seu bairro trabalhar no lixão junto de seus pais. O Sol estava infernal e, tão logo saíra do estabelecimento, passara em um posto de protetor solar dentre os vários espalhados cidade afora e, após colocar uma moeda, recebeu parte do produto, espalhando-o pelo corpo.
José era maravilhado com a capital. Outdoors anunciavam as principais notícias do país ou da cidade. Ventiladores abafavam o imenso calor ocasionado pelo velho efeito estufa. Hologramas faziam as pessoas se comunicarem com pessoas em pontos longínquos. Alto faltantes avisavam questões importantes do dia a dia, como chegada de chuva ácida ou de Sol torrencial. E havia aquilo que mais incomodava José: os robôs, que trabalhavam como carregadores de compras, garis, guardas, lixeiros, e outros; as pessoas preferiam contratar robôs a seres humanos desempregados.
Os alto falantes avisavam sobre intensa movimentação e algazarra à frente do Palácio Anchieta e o Porto de Vitória, logo à frente. José sabia que era protesto. E, pelo anúncio na véspera da política do governo Azevedo, sabia que era a elite vitoriana que estava protestando.
Sabendo da necessidade de passar por ali para pegar o seu trem para Vila Velha, José respirou fundo e tentou passar despercebido. Dependendo da multidão que tomava a Avenida Ministro Joaquim Gomes, sabia que era necessário correr, pois poderia acabar apanhando dos revoltosos – mesmo estes sabendo que a legislação penal não era nada amistosa.
Ao adentrar no cenário, porém, José entendeu que a algazarra era originária por brigas entre os moradores de Vitória e os moradores das regiões metropolitanas. Além disso, obviamente a Polícia Estatal estava tentando apaziguar a briga, diminuindo os ânimos acirrados.
- Que merda! – acabou por soltar José – Agora que atravessar vai ser difícil!
Atravessou os trilhos magnéticos da avenida e caminhou em direção ao passeio do outro lado, próximo ao Porto. Deu alguns passos; porém, ouviu alguém às suas costas gritar:
- Não foge, covarde!
Assustado, José olhou para trás. Fitou um casal atrás de si, prontos para lhe golpear. Recebeu um primeiro soco do rapaz, direto em sua têmpora, derrubando-o no solo. Logo em seguida a moça chutou fortemente suas costas, fazendo-o urrar de dor. Após o primeiro chute, esta e o rapaz se unem para desferir inúmeros chutes nas costas do rapaz.
Rapidamente, dois jovens correm em direção ao casal e a José. Cada um empurra um dos atacantes do rapaz, jogando-os no chão. Contudo, o rapaz, ao cair no solo, bateu com a cabeça no trilho magnético, desfalecendo e fazendo jorrar bastante sangue.
Os jovens levantaram José.
- Vamos. – disse um deles, dando um pequeno tapa nas costas do rapaz. Este postou a correr, porém sentia as costas latejarem fortemente, impedindo-lhe de correr como necessário.
- O que foi? Está doendo bastante? – perguntou um dos jovens
- Sim. – disse José. Tentava, a todo custo, acompanhar os jovens, mas não conseguia. – Parece que minhas costas vão partir ao meio.
- Espera aí! – o jovem enviou a mão no bolso. Retirou um pequeno objeto metálico. Desdobrou-o seis vezes, demonstrando ser um aparelho móvel, quadrangular, metálico, de aproximadamente 12 polegadas. Ligou-o, apertou na tecla algumas vezes e um pequeno feixe passou pelo corpo de José, do pescoço ao final das coxas. Em seguida, o aparelho apitou.
- Seus ossos estão inteiros. É apenas uma luxação e algumas equimoses – em seguida, desligou o aparelho e postou-se a dobrá-lo novamente, antes de guardar no mesmo bolso de antes.
- Qual a marca do seu cellblet? – perguntou José – Estou querendo comprar um melhorzinho. O meu está meio velho, não é tudo que funciona.
- Ele é da marca Hink. – respondeu. José ficou surpreso. Sabia que Hink era a marca mais cara de cellblet.
- Ele é um lunático. – disse o outro jovem – Não pode ver tecnologia que adquire. Trabalhou duro na Lackt durante mais de um ano só para comprar este celblet.
- Entendi...
- E você? Trabalha onde? – perguntou o primeiro jovem
José ficou cabisbaixo. Não havia preconceito no país por ser riati, mas havia por trabalhar dentro dos lixões. Preconceito este que subsistia mesmo entre a própria classe mais pobre.
- Trabalho como riati no Clara´s Magpie – respondeu, apenas.
- Ah, sim. – respondeu.
Em seguida, o trio foi embora. José foi logo para casa. Com a morte daquele jovem que lhe atacara, sabia que naquela noite era arriscado perambular pelas ruas.
Era pouco mais de meia-noite. O céu limpo, sem nuvens, permitia a contemplação de inúmeras estrelas. José dormia de bruços, pois a região do cóccix havia inchado e, somado às dores nas costas, lhe impedia de dormir de outra forma. Não havia trabalhado naquela noite, pois sabia que as dores nas costas lhe impediriam de exercer seu ofício.
Mergulhado sobre o silêncio, três automóveis de cinco lugares e dois ímãs pararam alinhados um atrás do outro sobre o trilho magnético do meio da rua, próprio para os carros, próximos à entrada oeste do Lixão São Francisco I. Desceram cerca de quinze pessoas do sexo masculino armadas com semiautomáticas. Calçavam coturnos, vestiam calça comprida e jaqueta e portavam máscaras nos rostos. No antebraço esquerdo, havia uma faixa vermelha com os escritos ALP em dourado.
- Vamos! – disse um deles, fazendo sinal com a mão esquerda para os demais se dispersarem. E assim estes o fizeram. O grupo se dividiu em cinco pequenos grupos de três pessoas e foram para pontos diferentes da rua.
O primeiro grupo chutou uma porta. Um casal gritou no interior da pequena residência, assustado com o repentino derrubar da casa. Correram para ver o que havia acontecido e foram surpreendidos com uma rajada de tiros que lhe partiram ao meio.
A derrubada da primeira porta e os tiros fizeram cessar o silêncio que tomava conta da rua. Acordou os moradores mais próximos, incluindo José, seus pais e irmãos. Tiros e gritos passaram a ser ouvidos incessantemente no local.
- O que foi isso? – perguntou José, assustado. Levantou-se da cama, porém sentiu uma pontada pungente nas costas que lhe obrigou a voltar a deitar.
- Maninho, maninho! – correram um casal de pequenos adolescentes para o interior do pequeno quarto de José.
- Jorge! Marta! – disse José. – Venham. Escondam-se embaixo da cama. – continuou. Em seguida, pulou para baixo da cama, junto de seus irmãos.
Segundos depois, a porta de sua residência foi aberta à força. Um trio de jovens, altos e robustos, adentraram no local. Os pais de José tentavam fugir, mas não possuíam mobilidade nem força suficiente para tanto. Acabaram fuzilados na sala.
José ouviu tudo. Tampou os ouvidos dos irmãos para impedi-los de ouvir os últimos gemidos dos seus pais. Igualmente segurava as lágrimas para impedi-las de verter em quantidades generosas.
- Maninho, o que está acontecendo? – perguntou Jorge. José tampou sua boca e fez sinal para não falarem.
Passos podiam ser ouvidos em todos os cantos da residência. Os invasores haviam se dispersados dentro da casa, cada um indo para um canto. Um deles invadiu o quarto de José. Este congelou. Suava frio. Fez novamente sinal de silêncio com as mãos para os irmãos. O invasor caminhou até ficar ao lado da cama. Sentiu a espinha arrepiar em suas costas.
Tiros atravessaram a cama e acertaram as costas dos dois irmãos, que deram um grito agudo, antes de desfaleceram. José sobressaltou, tamanho o susto. Tampou a própria boca e ficou paralisado, enquanto viam a vida de seus irmãos pequenos saíram de seus corpos. Entristeceu. Ainda eram crianças, tinham ainda trinta ou quarenta anos pela frente.
Em seguida, os invasores saíram do interior da casa. José continuava ali, paralisado, estarrecido. Conseguiu ouvir os invasores gritarem na rua, em alto e bom tom, para todos ouvirem:
“Que isso sirva de lição para vocês não mexerem conosco, da Aliança Libertadora dos Povos, pois é isso que acontece”.
Logo após, os veículos foram embora. José continuava paralisado no chão de sua residência. Não conseguindo segurar o próprio choro, postou-se a se debulhar em lágrimas.
No dia seguinte, o atentado na Vila São Francisco I chamou a atenção das autoridades. A mídia, em sua maioria, informou, na manchete do dia: “Moradores da Favela São Francisco I são mortos após matarem e ferirem membros da Aliança Libertadora dos Povos no centro de Vitória”, dividindo a culpa com os moradores assassinados por supostamente terem matado o jovem que atacou José e entrado em conflito nos protestos em frente ao Palácio Anchieta, na tarde do dia anterior.
A Polícia Nacional havia determinado abertura de inquérito para investigação do atentado na Vila São Francisco I, porém a Assembleia Constitucional Nacional, representando o Legislativo Federal e utilizando de seu poder constitucional, vetou a abertura do inquérito, sob a justificativa de ter sido comprovado a primeira morte por parte dos revoltosos de Vila Velha. Vale lembrar que a Aliança Libertadora dos Povos possuía maioria nas duas casas da Assembleia Constitucional Nacional.
Enquanto isso, José tentava retomar sua vida, agora sem pai, sem mãe e sem seus dois irmãozinhos, que morreram ainda crianças.