Chamou, Mestre?

[Continuação de "Desordem"]

E quando as portas do gigantesco elevador de serviço se abriram no nível residencial da Cidade Operária, dele desceram três passageiros que por direito não pertenciam àquela realidade: uma jovem mulher, Maria, e os dois filhos que tivera com Freder Fredersen, os gêmeos Till e Lotte. Ela desembarcou conduzindo as crianças, uma em cada mão, para o lugar onde nascera e vivera até tomar a decisão que mudara não somente a sua vida, mas a de toda Metropolis: mostrar a um grupo de filhos de operários como viviam seus irmãos e irmãs da Elite, no paraíso artificial dos Jardins Eternos, centenas de metros acima da superfície. Ao chegar à praça principal, no centro da qual erguia-se um imenso gongo usado para alertar sobre grandes catástrofes, ela agachou-se para falar aos gêmeos na mesma altura destes, apontando para um dos monótonos blocos de prédios ao redor.

- A mamãe vivia aqui, antes de conhecer o papai... antes de vocês nascerem - explicou ela.

As crianças olhavam tudo com estranheza, acostumados que estavam com a luz do sol. Aqui, nestas cavernas escavadas pela mão do homem, a iluminação provinha de enormes lâmpadas fixadas num teto de rocha. Quando a noite caía lá fora, a iluminação era diminuída nos subterrâneos, mas nem tanto que criasse uma completa escuridão, por razões de segurança. E no lusco-fusco reinante, as janelas iluminadas dos prédios residenciais revelavam notas de cor que tornavam o ambiente menos soturno.

- Eu brinquei muito nesta praça... - relembrou Maria. - Depois das aulas, vínhamos para cá. Não havia muito o que fazer, é verdade, mas havia muito espaço para correr... a Cidade Operária inteira, praticamente. Nada de carros, nada de trânsito pesado como lá em cima. Somente algumas bicicletas, triciclos de entregas...

Maria animou-se ao ver sair dos prédios próximos meninos e meninas de várias idades, e se aproximarem deles, encarando-os com curiosidade; visitantes da superfície ali eram raros. Lembravam-lhe dos seus alunos, que certo dia levara na mais extraordinária aventura de suas vidas, centenas de metros acima do solo sobre suas cabeças.

- Olá, crianças! Eu sou Maria... eu morei aqui! E estes são os meus filhos, irmãos de vocês!

Sentou-se no chão da praça, os gêmeos aninhados contra o seu corpo, os filhos dos operários ao seu redor, como se ainda fosse uma professorinha com uma ideia revolucionária na cabeça.

- Eu conheço você - disse uma menina de cerca de 10 anos, parando em frente à ela. - Eu era pequena e você me tirou da água e me levou lá para cima.

E apontou as portas dos elevadores que levavam para a superfície.

- Você devia ter a idade que os meus filhos têm hoje - disse Maria, acariciando o rosto da menina. - Aquele dia nunca será esquecido... a Cidade Operária quase foi inundada!

- Se a água tivesse invadido tudo, podíamos ter ido morar lá em cima? - Indagou a menina. - Como você e os seus filhos?

Maria encarou a menina, pensativa.

- Eu gostaria de dizer que sim, mas na verdade o Mestre da Cidade não pretende abrir espaço para que vocês subam. E isso é triste, porque ele é o pai do meu marido. O que eu tenho tentado fazer, desde aquela época, é melhorar as condições de vida aqui embaixo. Foi por isso que vim hoje e trouxe meus filhos: para que jamais esqueçam de onde a mãe deles saiu, e como vivem seus irmãos e irmãs.

- Sempre pensei que, quando você voltasse, seria para levar as crianças com você, lá para cima - declarou a menina.

Maria soltou os gêmeos e abraçou a menina, apertando-a contra o peito sem nada dizer.

* * *

O rosto barbado de Ezechia surgiu na tela do videofone instalado em frente à imponente escrivaninha de Joh Fredersen, Mestre da Cidade, no luxuoso gabinete que ocupava o último andar da Torre Fredersen.

- Yannick concluiu a programação do primeiro protótipo, senhor - anunciou ele com satisfação.

- Mostre-me - comandou Fredersen, aprumando-se em sua cadeira reclinável.

Ezechia virou-se para um homem mais jovem, que aguardava atrás dele. O ângulo da câmera mudou e viu-se que o técnico estava ao lado de uma bancada, sobre a qual jazia uma grande figura humanoide, metálica. Yannick moveu chaves num painel ao lado da bancada e a corrente elétrica fez com que os olhos do homem mecânico se acendessem.

- Ele está pronto para receber a ativação, senhor - disse o técnico.

Um vago sorriso desenhou-se no rosto do Mestre da Cidade. Ele entrelaçou os dedos sobre o tampo envidraçado da escrivaninha, e encarando o videofone, inquiriu:

- Homem mecânico, eu sou o seu mestre, o Mestre da Cidade de Metropolis, Joh Fredersen. Responda, se me entendeu.

O colosso ergueu o torso e sentou-se na bancada. Em seguida, girou a cabeça na direção do videofone, seus olhos fotoelétricos iluminados.

- Chamou, Mestre? - Indagou com voz profunda.

[Continua em "Fábrica de abominações"]

- [21-08-2018]