2084: Atentado à Fixação Científica
Protegidos dos raios solares cancerígenos e dos gases nauseabundos abundantes na atmosfera, por seus trajes de espuma impermeável e por mascaras de fibra acrílica recém desenvolvidos e lançados no mercado, os cidadãos de diferentes pontos da velha e carcomida Terra saíram de seus abrigos para mais um dia de convivência harmoniosa. Corria o ano de 2084, centenário da data imortalizada pelo célebre escritor George Orwell, conforme alguns sítios eletrônicos recordavam ocasionalmente.
Essas e milhares de outras informações eram acessadas por todos os cidadãos através das lâminas gelatinosas que carregavam com si, do tamanho dos antigos documentos de viagem, chamados passaportes. Enquanto se locomoviam, como se estivessem caminhando, sobre os corredores de energia antigravitacional, à pequena altura do solo, adultos, adolescentes e crianças contemplavam suas respectivas lâminas, inteirando-se de tudo quanto ali se divulgasse. Não faltavam notícias dos mais recentes produtos à disposição dos consumidores, das variadas criações artísticas, de estudos ou debates em tempo real, enfim, dos nascimentos, vidas e mortes do cotidiano.
As lâminas permitiam, igualmente, que pais, filhos e vizinhos tivessem notícias mútuas e soubessem o que passava pela mente de alguns deles. De modo geral, as ideias e sentimentos eram comuns. Raramente havia diferenças, pelo menos do tipo que ensejasse debates assemelhados aos que os sítios informativos transmitiam, restritos aos Pensadores, qualificados como tais. O saber tornara-se, há muito, sinônimo de receber e guardar conhecimento, sem maior necessidade de questionamento. Todos conheciam os principais Líderes do Planeta, os Pensadores, os Artistas, os Atletas e tudo mais de que necessitavam saber, graças às prodigiosas gelatinas portáteis. Tais artefatos representavam a última geração dos telefones celulares surgidos décadas atrás. Última, não. Penúltima, pois as grandes Corporações continuavam a investir pesadamente na pesquisa e desenvolvimento de versões aprimoradas das lâminas.
A civilização humana finalmente se havia expandido e estendido a todos os cantos do Planeta e à totalidade dos seus componentes. O mais importante é que o gradual e progressivo avanço científico, apoiado por estadistas de visão altruísta e universalizante, contribuíra para gerar, entre os seres humanos, a igualdade, que até então parecia mero sonho, acalentado desde os longínquos tempos da Revolução Francesa. Todos os cidadãos dispunham e beneficiavam-se das lâminas propagadoras do conhecimento. Todos desfrutavam, ademais, de plena liberdade para acessar os diferentes sítios informativos disponíveis. Como consequência, reinava ampla fraternidade entre os cidadãos, irmanados por objetivos, direitos e deveres comuns.
Um dos deveres, naturalmente, consistia em caminhar o mais que pudessem durante as horas do dia, a fim de manter carregadas de energia solar suas respectivas lâminas. Chegava a ser tocante ver a perfeita sintonia de todos, a caminhar em imensos cordões e a fitar suas lâminas com absoluta devoção, ampliando e aperfeiçoando seu nível de informação.
O apreço pelo conhecimento ajudou a fazer superar as angústias outrora ditadas pela busca do enriquecimento próprio ou pelas questões relativas à amizade e ao amor. Ninguém mais sofria porque sua casa era mais pobre do que a do vizinho ou porque fora traído por outrem. A comunhão de situações e a fraternidade reinante puseram fim aos angustiados sofrimentos da gente. Mais uma vez, as lâminas desempenharam papel relevante nesse processo, ao reduzirem a necessidade (e os riscos resultantes) do contato físico entre as pessoas. Cumprimentos, saudações, beijos e abraços passaram crescentemente a serem trocados pela via virtual, graças aos avanços da ciência. Em 2084, o auge dessa evolução refletia-se no comportamento exemplar dos adultos, que compareciam às unidades da Saúde Reprodutiva, sempre que chamados através de suas lâminas. Ali, os homens cediam seu sêmen e as mulheres submetiam-se à inseminação artificial, sob cuidados científicos que asseguravam partos bem-sucedidos, para felicidade geral. Em regime de total transparência, pais, mães e filhos tinham completo conhecimento do processo da gênese e partilhavam, como toda família, a evolução da infância à fase adulta, por meio das lâminas interativas.
Além do campo médico-hospitalar, predominava maior segurança no meio social com a quase completa extinção dos crimes. Os poucos Centros Correcionais subsistentes continham, segundo dados oficiais, número relativamente baixo de detentos. Em sua maioria, tratava-se de rebeldes contumazes, inconformados com a nova era da humanidade, ou de cidadãos sob investigação, por haverem danificado suas lâminas de modo reincidente, o que gerava suspeita de possível pendor para a rebeldia. As imagens disponíveis do momento em que ocorrera o dano eram repassadas seguidas vezes pelos Investigadores, na busca de eventuais indícios de intencionalidade.
Transcorria assim, em ordem e quietude, o ano de 2084, até aquela tarde inesperada, quando tudo começou a alterar-se. Alexandre Ribeiro da Costa, conhecido como ARB12032041 (os números correspondiam à sua data de nascimento), caminhava como sempre, a mirar sua lâmina ininterruptamente até perceber um feixe de luz vermelha que atingiu o aparelho e o fez explodir. Mal teve tempo de assustar-se. As lâminas de outros caminhantes próximos também explodiram ao serem atingidas por feixes luminosos provenientes de várias direções. “O que foi isso? O que aconteceu?” As vítimas perguntavam-se as razões do incidente. Uma mulher ao lado de ARB, que aparentava também estar na faixa dos quarenta anos, foi a primeira a conjeturar que se tratara de um ato de ataque. Alexandre, desconcertado pelo ocorrido, tocou-lhe o ombro e quis saber se ela pensava em uma ação de rebeldes. Enquanto ela olhava em sua direção e procurava articular uma resposta, ele sentiu algo diferente, como que uma súbita atração por aquela mulher que julgava jamais ter visto antes ou contatado por meio da sua lâmina. Seu pensamento foi interrompido por uma criança que lhe puxou o outro braço e, com ar assustado, indagou do “moço” o que devia fazer, já que não podia comunicar-se com os pais ou os irmãos. Alexandre também apreciou o contato com aquele menino e orientou-o como se fosse parente seu.
Em pouco tempo, uma roda de cidadãos formou-se, a intercambiar opiniões diretamente ao vivo. Alguns decidiram dirigir-se à unidade de vigilância mais próxima e registrar a ocorrência. ARB coincidiu com essa providência, mas preferiu perguntar a Júlia (assim se chamava a mulher que conhecera) se ela não gostaria, antes, de tomar um café para que ambos se recuperassem melhor do susto. Ante a resposta favorável, lá se foram e acabaram por passar bom tempo a saborear mais de um café, conversando olhos nos olhos, como há muito nenhum dos dois se lembrava haver feito. Em rápida olhada pelo local, verificaram que eram os únicos a conversar sem o auxílio das lâminas. A sensação de diferençar-se dos demais aumentou o prazer daquele contato, que se converteu no ponto de partida para novos encontros futuros.
A destruição dos aparelhos de informação não foi caso isolado. Em outros pontos, registraram-se ataques semelhantes, o que levou a imediatas videoconferências entre os Líderes para saber como reagir. Decidiram reforçar a vigilância, nos Centros de Correção, sobre os principais rebeldes, suspeitos de dali mesmo comandar adeptos, por algum método desconhecido pelas autoridades. Entre tais rebeldes, figuravam, embora em número jamais revelado, ex-Pensadores e Cientistas, capazes de haver desenvolvido sua própria técnica de comunicação com o exterior.
Enquanto prosseguia o esforço infrutífero de identificar os responsáveis pela aparente insurgência, o pior ainda estava por vir. Passados alguns dias do primeiro ataque, os Líderes deram-se conta de que diversos cidadãos, mesmo após receberem novas lâminas gratuitamente dos Centros Fornecedores, deixaram de usá-las como anteriormente e recorriam, cada vez mais, aos contatos pessoais com parentes, vizinhos e amigos. Os Líderes tiveram conhecimento, inclusive, de que cidadãos, como Alexandre e Júlia, haviam retomado a prática das relações carnais, ignorando as recomendações da Saúde Reprodutiva.
A rede de comunicação via lâminas viu-se subitamente contaminada de informações e de questões polêmicas de forma crescente. Revelou-se tardia a tentativa de contra-atacar esses sinais de rebeldia mediante apelo aos usuários para que não levassem em consideração tais informações e questões, continuando a ater-se aos procedimentos informativos “seguros”. A ampla maioria dos cidadãos ainda não liberados do uso permanente das lâminas comportava-se, na verdade, com uma beatitude nada propensa a reprimir os que circulavam sem os aparelhos de comunicação. Somente grupo mais reduzido se mobilizou na defesa das diretrizes dos Líderes e começou a admoestar os aparentes rebeldes, o que gerou cenas de discussão e de agressão mútua, antes impensáveis. As discussões e pancadarias eventuais serviram para interromper a concentração dos demais cidadãos no circuito informativo habitual e reclamar-lhes maior atenção ao que se passava na sua proximidade. O incremento dos casos de violência levou emérito Pensador a levantar a hipótese de ressurgimento de uma “guerra civil”, o que lhe valeu pronta ameaça de reclusão em Centro de Correção.
O caos instalou-se de vez, com a destruição cada vez mais frequente e intensa das lâminas informativas, cuja reposição imediata acabou por inviabilizar-se, e a adesão crescente de cidadãos às hostes rebeldes.
Após participarem de novo e bem-sucedido ataque a um lote de lâminas, Alexandre e Júlia, que agora atuavam sob os codinomes de Gavião e Águia, faziam seu relatório à Base da Rebelião por um sistema paralelo e secreto de comunicação. O valoroso Gavião estava a ponto de concluir que a missão se achava sob controle quando observou que um grupo dos cidadãos recém liberados da tirania das lâminas reuniu-se em roda e, tomando-se as mãos, começaram a bradar loas à Divindade e a implorar sua graça.
- “Alô, Base! Reconsiderando a situação, creio que vamos necessitar de reforços!”
In “Traços e Troças”
Ed. Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP, 2015