Olha só o que você fez
- Você já se apaixonou alguma vez na vida? - Indagou Zorava-Hava, quando saíram do ateliê da biomodeladora.
- Várias vezes! - Retrucou Raniva-Sur dando uma risadinha. - Por inteligências artificiais e biológicas, corpóreas e incorpóreas... todas baseadas em modelos humanos, é verdade. Chame isso de limitação, se quiser.
- Apaixonar-se requer um quadro de referências comuns... ao menos é o que eu penso - ponderou Zorava-Hava. - Não é estranho que queiramos experimentar o amor em termos humanos, já que culturalmente fazemos parte da sua sociedade. Mas e quanto a querer partilhar a vida com um humano?
- Você está falando de casamento, imagino - Raniva-Sur lançou-lhe um olhar maroto.
- Talvez não exatamente casamento... isso implica em burocracia, e talvez a parte biológica queira filhos.
Raniva-Sur fez sinal para um táxi-robô. O veículo parou à frente dela e a porta traseira levantou-se para que entrassem.
- Para onde, damas? - Perguntou o veículo.
- Torre do Eixo Norte - informou Raniva-Sur. E, em tom de cumprimento:
- Você é observador, para um táxi.
- Não é difícil imaginar que um robô num longo de seda queira ser tratado como algo que não seja uma mulher! - Exclamou o táxi bem-humorado.
- E você? Já se apaixonou alguma vez? - Indagou curiosa Zorava-Hava.
- Veículos como eu não perdem muito tempo com questões românticas - respondeu o táxi, entrando no trânsito de uma via expressa. - Alguns passageiros, humanos quase sempre, reduzem a coisa a fricção entre partes. Pessoalmente, não me parece muito divertido.
- "Fricção entre partes" me parece mais uma descrição de sexo do que de amor - retrucou Raniva-Sur.
- Muitos passageiros humanos parecem satisfeitos com essa definição. Mas, respondendo à pergunta da sua colega, ouvi tantas histórias, que acabei acessando sistemas de realidade virtual e interagi com outras entidades humanoides... biológicas ou não. Pareceu-me interessante, mas também estranho não ter que carregar passageiros dentro do meu corpo. E então, eu conheci uma garota... na verdade, não era uma garota de verdade, mas uma inteligência artificial personificada. E sabem o que aconteceu?
- Você se apaixonou por ela? - Questionou Zorava-Hava.
- Não exatamente - riu o táxi. - Ela me propôs que eu engravidasse.
- Você havia escolhido um corpo feminino? - Admirou-se Zorava-Hava.
- Não. Um corpo assexuado, na verdade. Mas a minha amiga virtual me sugeriu que adotasse uma forma feminina e então... engravidasse.
- E rolou sexo? - Inquiriu Raniva-Sur com malícia.
- Pulei essa parte - confessou o táxi. - Na verdade, meu interesse era carregar um outro ser dentro de mim, e, como estávamos num mundo virtual, realizar esse desejo foi fácil.
- Você deu à luz... - sussurrou Zorava-Hava extasiada.
- Gêmeos - a voz do táxi parecia agora comovida. - E sabem o que é mais bonito nisso tudo?
- Isso já foi muito bonito - ponderou Zorava-Hava.
- Pois ficou melhor... eu pus as consciências deles em uma ambulância e um veículo de manutenção da prefeitura. Volta e meia nos cruzamos pelas ruas da cidade... e me reconhecem como quem os trouxe à vida!
- Isso é realmente lindo - anuiu Zorava-Hava.
- Agora já sabe o que fazer caso o seu parceiro queira filhos com você - comentou Raniva-Sur, dando-lhe um toque com o cotovelo.
E, encarando o rosto metálico da amiga, acrescentou:
- Menos a parte da ambulância e do veículo de manutenção, claro.
- [06-08-2018]