Parentesco

A criatura peluda, lembrando um grande macaco sem cauda, mas caminhando orgulhosamente sobre dois pés, emergiu cautelosamente da floresta com um ramo de pequenos figos avermelhados nas mãos; aproximou-se de mim sem qualquer medo e depositou o ramo aos meus pés. Depois, sentou-se no chão, pernas cruzadas, me encarando com ar inquisidor. Era uma fêmea, não pude deixar de perceber. Virei-me para Suzan, que com ar divertido e filmadora na mão, assistia a cena sentada numa cadeira de lona dobrável junto à nossa barraca de campanha.

- Creio que é uma oferenda - avaliei.

- Claro que é - retrucou ela. - Você vai aceitar?

Acocorei-me à frente da hominídea hirsuta e peguei o ramo. Cheirei-o cuidadosamente. Os figos estavam quase maduros e deveria ser um sacrifício para ela trazê-los para mim; exceto que queria algo em troca, e provavelmente ficaria muito feliz em realizar o escambo se eu concordasse.

- O que vai ser hoje? - Inquiri.

- "My Way", Frank Sinatra - sugeriu ela.

Cruzei as pernas à moda da minha visitante, enchi os pulmões e comecei a cantar uma música que só seria gravada uns bons 4 milhões de anos no futuro. Da floresta, surgiram outros vultos peludos e foram se agrupando atrás da portadora do ramo. Sentaram-se do mesmo modo curioso e ouviram em silêncio, apenas os filhotes agarrados às mães fazendo algum ruído. Quando acabei de cantar, minha visitante bateu no ramo duas vezes.

- Acho que ela quer um bis - interpretou Suzan. - Que tal "The Long And Winding Road"?

- Não está achando esse repertório meio conservador?

- Cante o que eles gostam. Não ficaram satisfeitos quando você cantou Scorpions.

- "Send Me An Angel" dificilmente poderia ser considerado agressivo... - retruquei.

Minha visitante bateu novamente no ramo. Os recém-chegados remexiam-se, inquietos.

- A plateia vai pedir o dinheiro de volta - alertou Suzan.

Enchi os pulmões de ar e comecei a cantar Beatles à beira de uma floresta ensombrada, num local que um dia seria a Etiópia. Os hominídeos, ao me ouvir, grunhiam de satisfação. Ao fim da apresentação, peguei o ramo, pus-me de pé e fiz uma mesura. Inútil esperar aplausos, naturalmente.

Disciplinadamente, fêmeas à frente, o grupo começou a voltar para a floresta; minha visitante foi a última a se retirar. Ao chegar junto às árvores, virou-se para mim e - surpresa - curvou-se numa imitação da minha reverência.

- Por essa você não esperava - riu Suzan.

- Eles aprendem depressa - ponderei.

Sentei-me ao lado dela em outra cadeira dobrável e consultei o relógio de pulso.

- Vamos ser transportados de volta ao tempo de partida em 15 minutos. O que acha que essa nossa pequena experiência musical no Plioceno pode ter revelado?

- Muito provavelmente que nossos mais remotos antepassados já possuíam preferências musicais sofisticadas. Imagine que bom seria se a Humanidade houvesse evoluído com a capacidade de resolver disputas através da música...

Levei a mão ao queixo.

- Num certo sentido... lembrei-me dos programas de talentos musicais.

- Não neste sentido - ralhou Suzan.

- Bom... da próxima vez traremos Mozart e Bach e veremos se continuam com todo esse apuro musical - sugeri.

- Talvez não dê certo trazer música instrumental... creio que o que eles realmente gostam de ouvir é a voz humana.

- Parentes distantes, traços em comum - filosofei.

- Tenho esperanças de que ainda vou encontrar a minha turma - riu Suzan.

- [03-08-2018]