Resolvemos isso em três gerações

[Continuação de "Tentações"]

Caíra a noite, e ainda não chegara a hora da ceia, quando a diretora do colégio interno mandara avisá-la de que tinha uma visitante à sua espera, numa das salas de estar reservadas para conversas particulares e/ou sensíveis. A primeira nevasca do inverno ainda não havia caído, portanto ela sabia que não se tratava de sua tutora ou de alguém enviado por ela para buscá-la.

- Quem é? - Indagou para a serva que viera chamá-la.

- É uma pessoa importante - desconversou a serva, uma mulher de rosto vermelho e cabelos grisalhos, usando uma touca branca e o tradicional vestido cinzento longo das funcionárias do colégio, encimado por um avental cor de ameixa. E, sem maiores delongas:

- Eu vou te ajudar a se trocar.

A serva escolheu um vestido de tafetá de lã lilás e prendeu os cabelos castanhos dela num rabo-de-cavalo, com uma fita vermelho-escura. Levou-a ao espelho de corpo inteiro do quarto e deixou que se admirasse por um momento.

- Está perfeita! - Declarou. E, pegando-a pelo braço, acrescentou:

- Vamos!

Saíram do quarto privativo que a jovem ocupava no colégio - uma distinção que poucas alunas tinham - e seguiram por um corredor deserto com piso de tábuas corridas enceradas, ladeado por portas fechadas que conduziam a outros quartos e dormitórios. Aquela era uma ala basicamente residencial, e ao fim do corredor, desceram por uma escadaria para um amplo salão de piso de granito polido, adentrando depois numa pequena sala de estar que se abria para o salão. A lareira do aposento estava acesa, e pelas janelas, podia-se ver a estufa do jardim de inverno lá fora. Apreciando a paisagem, de costas para a entrada, estava uma mulher alta, vestida num longo drapeado de seda verde-pálida, mangas longas, uma trança castanho-dourada caindo-lhe pelas costas. Ela voltou-se ao ouvir a porta sendo aberta, e deu um imenso sorriso ao ver a jovem à sua frente.

- Minha senhora - disse a serva, dobrando ligeiramente os joelhos numa saudação. - Ei-la, conforme solicitou.

A jovem também dobrou os joelhos, numa saudação protocolar. Não precisava que a mulher se apresentasse para saber o que ela era. Quem era, descobriria depois.

- Grata, Duília. Deixe-nos a sós - ordenou a mulher num tom calmo, de quem estava acostumada a dar ordens sem ser contestada.

- Com sua licença, reverenda ministra - respondeu a serva. - Se precisar de mim, puxe o cordão da sineta.

Duília retirou-se, fechando a porta atrás de si. Agora que estavam sós, a visitante estendeu a mão direita, branca e esguia, para a jovem:

- Aproxime-se, Noêmia. Deixe-me vê-la de perto.

Ela assim o fez, sentindo-se estranha como se já houvesse encontrado aquela mulher muitas vezes antes. Não somente encontrado, aliás: como se a conhecesse intimamente. A visitante colocou ambas as mãos nos ombros dela e a encarou, no fundo dos olhos.

- Deusas... como você se parece com ela! - Sussurrou.

E, em seguida, a abraçou forte.

* * *

- Muitas mulheres não acham relevante revelar quem são os pais de seus filhos, e isso é perfeitamente aceitável - explicou a visitante para Noêmia, enquanto ambas estavam sentadas frente à frente, em confortáveis poltronas estofadas de veludo cor de musgo junto à lareira.

- Eu imagino que minha mãe não teria escolhido um homem qualquer para me gerar - ponderou Noêmia com altivez. - Embora eu talvez gostasse de saber quem ele é...

- Sua mãe nunca lhe contou quem era por uma razão simples, mas secreta: ele não existe.

E, diante do olhar atônito que lhe foi lançado, declarou com emoção:

- Você não nasceu da união de um homem e uma mulher. Você é uma criatura muito, muito especial.

- Eu... tenho apenas mãe? - Indagou Noêmia, tocando no próprio peito.

- Sim - admitiu a reverenda ministra. - Sua mãe utilizou-se de um encantamento extremamente poderoso e, devo acrescentar, de uso proibido pelo Grande Conselho, para ter você. É um feitiço partenogenético, e envolve manipulação de cristais... entre outras coisas.

- Então... eu sou algum tipo de clone? - Inquiriu Noêmia, assustada.

- Não! - Retrucou com veemência a visitante. - Você não é uma cópia exata da sua mãe, embora contenha apenas o material genético dela... ela teve você, como o segundo passo do seu projeto mais ambicioso. Ainda que tenha morrido, foi bem-sucedida, e você é a prova.

Embora confrontada com a declaração de que devia sua própria existência a uma obscura manipulação de magia proscrita, Noêmia sentiu-se orgulhosa. Mesmo na morte, a mãe enganara todas aquelas que a haviam perseguido. Não pôde evitar abrir um sorriso sardônico.

- Até o sorriso é igual ao dela! - Admirou-se a visitante, embevecida.

- Se eu sou o segundo passo... como será dado o terceiro? - Indagou Noêmia, recobrando a fleuma habitual.

- Através de você - declarou a reverenda ministra. - Quando chegar o momento, você dará à luz uma filha, da mesma forma que sua mãe teve você. E somente quando este momento chegar, será iniciada a fase final do plano concebido por sua mãe.

- Três gerações para atingir um objetivo? - Questionou Noêmia.

- Ninguém disse que seria simples - retrucou a visitante.

- [Continua em "Leis da Atração"]

- [28-07-2018]