3002 - A Torre Branca

Igor e Bruno sobem à montanha.

Enxergam a Torre Branca ao longe, muito acima do local onde estão.

Quem os observa a alguma distância com certeza imagina se tratarem de dois mendigos.

Se ainda existissem mendigos. Se ainda houvesse civilização.

Os dois vestem farrapos e andam cautelosamente, pois o local é infestado de matilhas de cães selvagens.

Ninguém imaginaria que quinhentos anos antes aquele havia sido o centro comercial de São Paulo.

São tão diferentes na compleição física como em sua personalidade.

Igor é magro e tímido, tem cabelos e barbas negras como à noite. Veio da nova capital do Brasil.

Bruno é louro e expansivo. Seus olhos são azuis sua barba rala e é um homem alto e musculoso, sempre morou na selva.

Não existem mais calendários, mas se existissem aquele seria aproximadamente o ano três mil!

- Acho que ouvi alguma coisa... – o rapaz sussurra baixinho.

- Deve ser seu estômago.

O louro sabe que aquilo não é verdade, pois também escutou o ruído característico e se apressa em colocar uma flecha no arco.

Olha novamente para a Torre e pensa em como ela deve ser enorme.

A imensa construção é cônica e o topo aumenta em formato de funil.

Da distância em que estão não dá para se perceber janelas ou outro tipo de abertura qualquer.

- “Começou”. – pensa Bruno.

Diversos cães de muitos tamanhos e raças diferentes começam a atacá-los.

O rapaz moreno abre sua sacola de pano, suando muito com o sol de fevereiro.

O homem musculoso, retesa seu arco e atira uma flecha que atravessa a cabeça maciça de um mestiço de Fila, matando-o imediatamente.

Igor tira um aparelho com aparência de um controle remoto, aperta o gatilho apontando contra os cães.

Tudo que se ouve é um “Clic”. Um enorme Pastor Alemão salta sobre o jovem tímido que vem ao chão largando a estranha arma.

Uma flecha atravessa o ar, acertando as costas do animal.

O grande Pastor cai ganindo.

Igor lança um olhar agradecido a Bruno e agarra sua arma.

Mexendo rapidamente em alguns botões aponta novamente a arma e dispara.

Um jato de luz avermelhada varre o chão tocando fogo em meia dúzia de cães mestiços e em uma árvore que está no caminho.

O restante da matilha foge, ganindo assustada.

- Muito bom... Quando funciona, claro! – Bruno coça a barba rala.

Igor fica em silêncio. Ofendido.

- Ei! Não se chateia. Pelo menos nós não vamos precisar caçar hoje...

O jovem da cidade ri, pois pensa que ouvira uma piada. Seu riso morre na garganta no momento em que vê o seu guia começar a rasgar o couro do animal mais gordo com uma faca.

- Eu não vou comer isto!

Bruno encara seu cliente, meio entediado:

- Cê que sabe. Pode dar um rolê por aí e caçar outra coisa ou experimentar isto aqui!

Com um saco cheio de sal e ervas, tempera a carne do cão e o assa em uma fogueira improvisada.

Meio a contragosto Igor come e descobre que não está tão ruim como parece.

Claro que não se compara a comida na capital do país, a cidade do Novo Rio de Janeiro.

- O que você sabe sobre a Torre?

Bruno olha para a Torre Branca que ao entardecer fica com uma aparência sobrenatural.

- Bem... Desde pequeno me dizem para evitar o lugar, que ele é assombrado. Coisas assim... – responde o louro mastigando de boca cheia.

Igor não diz mais nada, fica apenas matutando a razão pela qual Bruno foi o único guia que concordara em levá-lo até lá.

- Vamos acampar aqui esta noite.

Começam a desmontar os equipamentos.

Em volta do acampamento improvisado ele coloca uma cerca elétrica capaz de matar até um elefante.

A noite cai sem nenhum incidente.

Mal o guia se deita, cai no sono. O rapaz de cabelos negros fica algum tempo acordado.

Ainda é madrugada quando Bruno se levanta, recolhe a cerca e a cabana e acorda o rapaz.

-... Hum? Putz! Que bosta! Eu ainda tava dormin...

A boca de Igor é tapada com força.

- Silêncio. Tem um Grot´s passando! – sussurra o louro.

O rapaz nem imagina que bicho seria esse, mas mesmo assim fica bem quieto.

Algo imenso passa lentamente, cada passo faz um enorme barulho na mata.

Eles ficam quietos alguns minutos e logo começam a arrumar suas coisas silenciosamente.

- Que diabos é um “Grot´s”? – pergunta Igor espanando o pó da roupa.

- E eu é que sei? Só sei que essa porra é grande pacas!

Bruno puxa o outro rapidamente para longe dali.

Os dois começam a subir um caminho onde ainda aparecem traços de cimento em alguns lugares.

Em uma placa de trânsito de plástico carbono semi-derretida ainda se pode ler:

Rua Augusta.

- O rei do Brasil só pode estar variando para mandar alguém aqui! – resmunga o grande homem.

Igor começa seu discurso:

- Esta pesquisa tem de ser feita! É muito importante para o Reino saber o que existe dentro da torre! Ela é a única coisa que sobrou do grande cataclismo!

- Por isso mesmo! Ela foi feita pelos Deuses. Não é um lugar para nós, seres humanos! – Bruno replica.

- “Ignorante”. – pensa o jovem.

Os dois sobem cautelosamente a rua, pois Bruno avisara de antemão que ali já estão em pleno território dos Paulistanos.

Os Paulistanos fazem parte de um povo que retornara à condição selvagem.

Igor ouve um ruído, suspira aliviado ao perceber que era só um canto de passarinho.

- Merda! Eles nos cercaram! Anda devagar.

Dezenas de pessoas, nus apesar do frio, começam a sair de dentro do mato.

Todos armados com arcos e flechas ou porretes, pintados com listras negras.

Igor treme. Bruno já acostumado aos encontros com Paulistanos, estufa o peito e espera a aproximação do líder deles.

Vestido apenas com um short´s preto, um homem barbudo de quarenta e poucos anos vem em direção aos dois.

Ele tem uma touca de lã branca manchada do São Paulo Futebol Clube e uma gravata preta contra o peito cabeludo.

- E aí gente? Eu sou o chefe Sergio. Que comanda essa galera aí!

O guia responde sem demora:

- Sou o “Andante” Bruno e estou levando esse senhor, Igor, até a Torre Branca.

O chefe cai na gargalhada e todo o povo ri também.

Bruno sorri, pois conhece os costumes daquela gente.

O outro rapaz fica ofendido e fecha a cara.

O chefe abraça o homem louro e o puxa de lado, falando baixinho.

- É amigo... Faz tempo que você saiu de nossa tribo...

- Faz tempo...

Bruno já imagina o que vinha pela frente.

- Nós estamos precisando de alguma coisa boa! Chega de espelhinhos e pentes! E aí?

Os olhos azuis do guia se estreitam como se ouvissem algo divertido.

- Tenho umas coisas boas. Pode começar o teatrinho!

O líder da tribo se afasta alguns passos, pigarreia bem alto e em atitude teatral começa a proclamar com imponência:

- Vocês forasteiros, invadiram nosso território, mas estou bonzinho! Por isso vocês vão pagar um leve pedágio para atravessar nossas terras!

Bruno abre uma das sacolas e fala também daquele jeito combinado, quase teatral, para a surpresa de Igor que sempre o viu como um sujeito durão.

- Paulistanos! Agradeço à sua generosidade e trago presentes valiosos para vocês!

O louro emborca a sacola repleta de cubos de calor.

Estes cubos após acionados soltam um calor de quarenta graus, suficiente para aquecer a tribo por uma semana.

Nas cidades grandes, os cubos são vendidos por um preço irrisório, na selva, porém são de grande utilidade e valor.

As vistas daquilo todos os selvagens Paulistanos dão vivas e urras e em troca do presente, lhes dão comida e abrigo por aquela noite.

No primeiro momento que os dois se encontram a sós, o rapaz moreno reclama com seu guia:

- Você é louco? Entrega todos os nossos cubos! Quem é aquele cara? Parece te conhecer, mas só te sacaneou!

- Aquele “cara” é meu irmão!

Igor fica muito espantado.

- Seu irmão? Seu irmão? E por que ele exigiu presentes então, porra?

O louro tenta se manter o mais calmo possível.

- Ele é o chefe da tribo. Tem uma reputação a zelar...

O guia se vira para dormir encerrando assim o assunto.

- “Maldito povo da floresta”! – pensa Igor muito contrariado.

A noite passa tranquilamente e o dia chega mais frio do que o anterior.

O povo da floresta fornece casacos e comida para que os dois continuem a viagem.

- Se vocês tão doidos o suficiente para ir até a Torre, levem estas roupas! – insiste o chefe Sérgio.

- Pra que servem? – pergunta o jovem estudioso meio desconfiado.

- São roupas mágicas! Quando chegarem ao cinturão branco em volta da Torre Branca, vistam-nas, se este cinto começar a uivar é bom vocês saírem correndo!

- Por quê? – Igor examina o macacão laranja.

- Não sei. Só sei que os homens que ficaram dentro do cinturão branco sem o traje ou muito tempo após as roupas uivarem... Morreram dolorosamente...

Apesar do jeito teatral, Sérgio está muito sério.

O jovem olha para Bruno com espanto.

Os dois se despedem da tribo e voltam a caminhar subindo a Rua Augusta.

Antes de sumirem em uma esquina coberta de arvores o chefe grita:

- Cuidado ao passarem pela Avenida Paulista próximo do Buraco do metrô Brigadeiro! Nossos vigias avisaram que têm alguns “Grot´s” por lá!

- Estou preparado para eles. – resmunga o guia baixinho.

Os dois viajantes acenam e continuam a subir.

O vento zune entre os dois. Eles estão silenciosos e atentos.

Apesar do vento nada de anormal se mexe entre as arvores.

Passam pela Avenida Paulista com a respiração presa.

Muitas quadras depois respiram aliviados nada acontecera.

Caminham calmamente quando Igor vê o rabo de uma cobra.

Sem querer incomodar seu guia, tira da bolsa uma pequena faca e após mirar acerta bem no corpo do réptil perfurando-a.

- Hah! Matei!

Antes que o homem de olhos azuis possa perguntar o que, os dois se assustam com o imenso urro que parte detrás deles.

Centenas de aves levantam vôo e uma grande cabeça peluda aparece sobre a copa das arvores.

Algo naquela cabeçorra lembra um urso.

A “cobra” que o jovem acertou é na verdade a ponta da cauda do bicho.

O imenso animal vira o focinho de um lado a outro cheirando ruidosamente.

Igor, em pânico, vira-se para fugir, mas é detido por Bruno.

- Não se mova! Ele é cego! E evite fazer barulho! – murmura ao ouvido do companheiro.

O bicho mede oito metros. De pé alcança a altura dos prédios em pedaços.

Joga as imensas patas para frente e abaixando das alturas fica cara a cara com os dois homens apavorados.

A fera descomunal tenta ouvir algum ruído, pois vira a cabeça nas duas direções.

Silêncio.

Igor sente seu coração bater fundo dentro do peito.

O Grot´s urra cobrindo-os com pequenos pedaços de carne apodrecida.

As calças do rapaz da capital enchem-se de um líquido quente.

Bruno põe o dedo na frente da boca implorando silêncio.

É então que acontece o imprevisto:

AAAATCHIMMMM!

O guia espirra alto e o animal que já está quase levantando para ir embora se volta para baixo.

- Corra! – grita o louro.

Igor não espera uma segunda ordem e os dois começam a correr feito louco através das árvores.

O grande animal não os pega de imediato, pois volta e meia esbarra em alguma grande árvore.

Mas ele não desiste da caçada.

- Ele vai nos pegar! – o moreno está desesperado.

- Vamos nos separar! Assim o Grot´s só vai poder ir atrás de um de nós!

O jovem já está resfolegando por falta de costume de correr.

- E se ele vier atrás de mim?

Os olhos do guia se estreitam.

- Aí azar o seu!

Em um cruzamento qualquer da Avenida Paulista os dois se separam.

Talvez por dó de Igor o louro começa a chamar o feroz animal para que este o seguisse.

Quando o Grot´s começa a perseguir Bruno na outra direção, o jovem da capital vira-se bestificado de ver o amigo ser perseguido.

Trezentos metros adiante do guia o terreno ruíra décadas antes, deixando uma imensa cratera com quilômetros de profundidade.

Na borda do abismo Bruno se vira para encarar a morte de frente.

O Grot´s avança derrubando pequenas árvores no caminho.

Sem demonstrar medo algum diante do ser horrendo o homem louro saca uma arma e aponta para o olho cego do animal.

A arma é uma pequena besta e a flecha está presa à cintura do guia por um comprido fio de nylon.

Ele usa esse artifício para pescar nas águas do Tietê ou para atingir os grandes pombos carnudos que voejam sobre as ruínas da Catedral da Sé.

O monstro não parece sentir a flechada.

Urrando, a fera descomunal avança sobre o homem indefeso.

Por um golpe de sorte o bicho tropeça em um punhado de troncos apodrecidos e passa rolando por Bruno que precisa apenas se desviar.

O Grot´s ia cair na cratera, mas se agarra na borda urrando muito.

Bruno ri e acena para Igor ao longe.

O louro procura sua faca para cortar o fio de nylon, só então percebe que perdeu a arma em algum lugar da corrida.

-“Merda!”

Um barulho chama a atenção do guia.

O concreto em volta das garras do animal começa a rachar.

- Ah merda!

Bruno tenta quebrar o fio resistente.

É tenta, pois no ano de dois mil e quarenta e quatro, a Sports Trender Ltda. criou essa fibra para ser inquebrável.

O animal colossal tenta escalar a parede íngreme. Quando sua cabeçorra aparece, o chão não agüenta, atirando-o ao fundo do abismo.

O fio de nylon não se parte com nada e o rolo de sessenta metros de fio começa a desenrolar rapidamente à medida que o Grot´s cai.

Um grosso filete de sangue escorre da mão de Bruno e ele continua tentando partir o fio.

O rolo está quase no fim e Bruno desiste. Encara Igor com seus determinados olhos azuis e grita:

- Não desista! Chegue a Torre!

O tranco do fio tira as pernas do guia do chão. Ele é arrastado cratera abaixo.

- Nããããooo!

O jovem moreno está sozinho.

A Torre Branca está a alguns quilômetros. Ele pode ver mais próximo agora que ela não tem janelas.

Após chorar por algum tempo Igor volta e recolhe os equipamentos perdidos na fuga e segue caminho.

Sua missão é entrar na Torre, custe o que custar.

Volta e meia o rapaz se assusta com vultos na mata ou nos destroços de antigos prédios.

Mas são apenas animais inofensivos.

Não consegue deixar de se lembrar como Bruno foi puxado pelo fio de nylon.

Sumindo na sua frente.

A expressão do rosto do amigo o assombra.

Após dias de caminhada, o edifício colossal está mais próximo.

Pelos seus cálculos deve ser enorme.

À tarde cai, e Igor apressa o passo, pois quer chegar ao cinturão branco antes do anoitecer.

Alguns quilômetros à frente, nota que a vegetação está mais rala e escassa.

Horas depois ele chega ao “cinturão branco”.

A terra calcinada segue mais ou menos um quilômetro até a Torre Branca. Imensa, sob o sol poente.

O chão brilha suavemente, radiativo.

Igor veste o traje oferecido pela tribo dos Paulistanos.

Começa a andar entre esqueletos humanos e animais, que cobertos por uma fina camada de pó radiativo, brilham.

O jovem, por desconhecer o que é aquilo, imagina tratar-se de magia.

Evita tocar nos esqueletos circundando-os cuidadosamente.

A sombra gigantesca da Torre o cobre e mesmo tão próximo não consegue ver abertura alguma.

De perto pôde conferir que a construção não é branca, mas sim de um amarelado sujo.

Evita olhar para cima, pois a imensidão da Torre o deixa com náuseas.

Após um instante de hesitação toca a parede da Torre Branca.

Uma fina camada de poeira radiativa se desprende, deixando marcado o local onde tocou.

Igor circula em volta da Torre procurando uma entrada. Demora quatro horas nessa empreitada.

Acaba por encontrar uma fissura na parede.

Uma seta indica a seguinte mensagem:

- “Insira cartão de acesso e aguarde”.

Igor seria considerado no século XX como um semi-analfabeto, mas no tempo em que vive é chamado de cientista e visto pelos seus como um sábio.

Reconhece a palavra “acesso” e tirando a bolsa das costas retira de lá uma relíquia.

Um cartão de acesso à Torre Branca!

Aperta a pequena peça de plástico-carbono com as duas mãos e reza para que dê certo.

Passa o cartão de acesso desajeitadamente pela fissura.

Fica por alguns segundos observando esperançosamente. Espera algo acontecer.

Uma luz verde pisca e a porta se abre deslizando sem ruído algum.

O rapaz não sabe o que fazer. Essa situação é extraordinária!

Passados alguns momentos de hesitação Igor toma coragem e põe um pé para dentro.

Vendo que nada acontece, entra finalmente.

O aposento asséptico onde está é levemente iluminado.

Uma melodia de boas vindas soa.

- [Boa tarde General Humberto. São exatamente oito e trinta e cinco da noite, dia vinte e cinco de julho de três mil e dois. Há algo especial que gostaria de fazer hoje?].

A voz é mecânica e sem inflexão.

O jovem cientista tem vontade de dizer que não é o tal general, porém tem medo de que algo ruim aconteça.

- Hã... Não. Não. Quero ir para meus aposentos...

Reza para Deus para não ter dito nada errado.

- [O senhor não tem aposentos no tribunal de justiça. Gostaria de ir para seu escritório?].

O rapaz apenas concorda.

Outra porta se abre sem ruído e um pequeno triciclo aparece e para ao lado do desconfiado moreno.

- [Suba General. Permita-me levá-lo].

Igor preferia ir andando, mas para não levantar suspeita sobe no confortável veículo.

Atravessa diversas salas vazias onde telas de computadores processam informações sem parar.

O jovem está maravilhado com o automóvel, na capital do Brasil, haviam inventado o “Andante”.

Um carro de madeira e ferro fundido com propulsão a vapor.

Porém o tal “andante” trepida tanto que mais parece um cavalo, sendo que aquele triciclo é silencioso e macio.

- [Chegamos Senhor]. – avisa a voz mecânica do computador.

O rapaz moreno desce em frente a uma grande sala, dentro têm um refrigerador, alguns móveis e um grande computador.

Igor senta e nem imagina por onde começar sua tarefa.

É quando nota na CPU do computador uma fissura, idêntica aquela na entrada da Torre, onde volta a inserir o cartão de acesso.

A tela se abre e uma mensagem piscante aparece:

- [Boas vindas General, gostaria de acessar programação? Tecle ENTER].

O jovem da capital procura no teclado e encontra a tecla correspondente, aperta e diversas telas aparecem.

Ele não consegue escolher um campo, após apertar todas as teclas, toca no mouse e descobre uma seta que ao ser clicado abre as telas.

- [Relatório dos prisioneiros].

Ele lê baixinho.

O relatório diz que desde o ano do grande cataclismo, 99% dos prisioneiros morreram no primeiro mês.

Apenas um deles, considerado “especial” ainda sobrevive, pois está preso em uma cela criogênica.

- “Então isto era uma prisão... Quem será esse?” – pensa Igor.

Assusta-se com a súbita mensagem do PC.

- [Deseja libertar prisioneiro?].

Uma euforia insana toma conta do jovem. Talvez ele possa oferecer ao soberano do Brasil algo mais do que informações!

Talvez possa entregar um homem da era anterior ao cataclismo!

Um homem que viveu muitos séculos atrás!

Podiam descobrir o que levou o planeta ao colapso e evitar o mesmo destino.

Sem pestanejar aperta o Enter.

Para o susto do moreno o computador apita uma mensagem de alerta:

- [Aviso! Prisioneiro classificação 06. Deseja realmente libertá-lo?].

Igor não tem como saber que o nível de classificação 06 é a de um condenado sem condições de controle. Extremamente perigoso.

Ele acessa a confirmação.

- [Dentro de quarenta e oito horas ele será despertado].

Subindo novamente no triciclo o jovem cientista pede:

- Gostaria de ir até o prisioneiro.

A voz no alto falante faz com que ele tenha um sobressalto:

- [Perfeitamente General. Será levado até lá imediatamente].

O veículo desliza por diversos corredores, sobe em um elevador (o que causa uma angustia tremenda em Igor).

Minutos depois entram em um longo corredor. Cela após cela o moreno vê esqueletos dos prisioneiros mortos.

Uma porta maciça de aço inoxidável abre sem ruído e em uma sala circular o rapaz da capital dá de cara com um homem de aparência estranha.

Ele aparenta não mais de vinte anos e, congelado, parece estar em sono profundo.

Igor espera ansiosamente seu despertar. Quer saber tudo sobre o passado.

Como era a vida quotidiana, como acontecera o cataclismo e se ele o ensinaria a utilizar os equipamentos da Torre.

Uma indagação atravessa sua mente por fugidios instantes:

- Por que será que ele foi preso?

Passa os dois dias percorrendo os corredores labirínticos da Torre.

Ao fim dos dois dias, ele volta para ver o progresso do descongelamento.

O homem tem uma cor arroxeada inclusive os lábios, que pouco a pouco vai clareando.

Provavelmente fora congelado com nitrogênio líquido.

Ele tem longos cabelos escorridos escuros como a noite.

É um indígena, mas o rapaz da capital não tem como saber disso.

Ele abre os puxados olhos negros derrepente e tosse.

Quando aspira, parece querer respirar todo o ar do mundo.

Move-se com dificuldade após séculos de imobilidade. Seu corpo inteiro estrala ao menor movimento.

É com dificuldade que fala em uma voz gutural:

- Quem... É... Você..?

- E - Eu s-sou Igor. Sou um cientista da capital e... Libertei você. – diz ele hesitantemente.

O rapaz de longos cabelos lisos e negros reflete por um instante.

- Hmmm... Obrigado. Meu nome é Saturno. Agora o mais importante: onde está o general Humberto?

O cientista fica embaraçado em lhe explicar o que aconteceu.

- Eu... Eu acho improvável que ele esteja vivo... De qualquer modo faz tanto tempo desde o cataclismo que...

O jovem recém liberto interrompe Igor.

- Morreu? Que pena! Queria eu mesmo tê-lo trucidado com minhas mãos! Mas... Que cataclismo foi esse? Em que ano estamos?

Novamente o cientista fica hesitante:

- Eu... Eu acho que você ficou congelado por muito tempo...

Derrepente Saturno está colado a Igor encarando-o profundamente.

O jovem moreno se espanta. Não vira o rapaz se mover.

Está ficando amedrontado.

Quando resolve dizer algo o olhar do rapaz de longos cabelos negros o faz calar.

- Meu Deus! O mundo foi destruído!

Igor não sabe o que dizer, mas já não acredita ter sido uma boa idéia descongelá-lo.

- Vem comigo! – ordena o índio.

O moreno segue o rapaz estranho e eles vão até o computador do general.

Aparentemente o estranho descongelado é habituado com computadores e Igor fica maravilhado com a desenvoltura dele.

- [Acesso satélites.] – digita o rapaz de longos cabelos negros.

A resposta vem de imediato.

- Hum... Apenas um dos dez está operante...

- [Situação dos satélites?] - digita rapidamente.

- [Seis completamente destruídos, três a espera de Auto-reparo.]

O índio digita a seqüência de auto-reparo.

- [Auto-reparo estimado em 4.320 horas] – avisa o computador.

Finalmente Saturno se vira para o estático Igor.

- Sente. – pede com voz enérgica.

Um tanto incomodado o rapaz moreno senta. O indígena conversa com ele digitando ao mesmo tempo.

- Quero conhecer seu presidente. Quando ele pode vir até aqui?

Igor sorri.

- Presidente? Ah sim! Você deve estar falando do Rei! Talvez seja melhor irmos até ele, pois sua segunda cabeça real não se dá muito bem com o frio!

Saturno o olha com incredulidade.

- Você disse duas cabeças?

O cientista enrubesce.

- Sim... Seqüela do cataclismo...

Finalmente o índio entende ao que ele se refere.

Mutações.

Mutações geradas pela radiatividade.

- Sei que você deve estar imaginando qual meu “dom”, por assim dizer... Mas você é apenas fisicamente perfeito, pois também lê mentes. Ou isso era normal no passado?

Saturno parece ficar sem jeito.

- Eu... Desculpe. Estou acostumado com a vida como era há quinhentos anos atrás. Não quis ofendê-lo...

O rapaz faz um gesto indicando que concorda com as desculpas e afasta uma mecha de cabelo castanho da testa.

Horrorizado, o índio vê um olho sem pálpebras, e aparentemente cego, pois não tem íris.

- Fascinante! Você consegue enxergar algo com ele?

-Apenas sombras... Ele até incomoda se tento usar os três ao mesmo tempo...

Nesse instante um alarme soa alto, fazendo com que os dois se sobressaltem.

- O que é isso? – pergunta Igor.

- Um alarme de perímetro. Alguém ou algo muito grande está se aproximando! Câmera! Aproxime o intruso!

As câmeras de vigilância que ainda operam dão um zoom, aproximando o rosto de um homem louro no monitor.

Igor parece tomar um choque.

- Meu Deus! É o Bruno! Pensei que ele tivesse morrido!

- Vai salvá-lo? – quer saber o índio.

- É claro! Ele é meu guia! Me salvou de um animal enorme que nos perseguiu e pensei que ele tinha morrido junto com o bicho!

O rapaz de longos cabelos negros bate os olhos de relance na tela do monitor.

- Sabia que um simples humano não poderia ativar o alarme... Acho que seu amigo está sendo seguido...

O Jovem cientista olha para a tela também e fica pálido. O Grot´s está a alguns metros do louro.

- Acabou... Ele não vai conseguir fugir...

- E nem precisa.

Bruno encara a imensa criatura de frente, pronto para morrer.

Saturno acessa o comando de um canhão laser e mira na cabeça da fera.

O animal prepara-se para desferir seu bote, quando um facho de luz avermelhada parte da Torre e em menos de um segundo o atinge.

Com o crânio atravessado o Grot´s tem uma morte instantânea.

Cai pesadamente. O estrondo pôde ser ouvido até dentro do edifício.

O guia olha para os lados sem entender o que o salvara.

- Agora vamos! – chama o índio.

Os dois vestem o traje de proteção para atravessar o cinturão branco.

Saturno não precisa, pois apesar de saber que seu corpo vai se regenerar rápido, não quer experimentar uma dose de envenenamento radiativo que é muito doloroso.

Em alguns minutos chegam até o Bruno que está sentado exausto ao lado do corpo inerte do Grot´s.

- E agora? Só temos dois trajes mágicos!

- Vista ele com meu traje e o leve para dentro, depois venha me buscar! Caso o traje não agüentar outra viagem fiquem lá dentro! – ordena o índio.

- Tudo bem...

Após a partida dos dois homens Saturno demonstra seu verdadeiro desejo de estar sozinho.

Se farta com o sangue fumegante do animal morto que jorra em profusão.

Mais forte espera o retorno de Igor.

O cientista volta o mais rápido que pode.

- Ei! Você está com a boca suja de sangue! O que aconteceu?

- Eu... Eu... Estava comendo! Era de uma religião que bebia sangue! – mente descaradamente o indígena.

- Nossa! Que coisa! Bem, veste a roupa mágica e vamos atravessar o cinturão branco!

O rapaz de longos cabelos negros repara que Igor carrega um rifle laser muito gasto.

Uma súbita revoada de pássaros deixa os dois alertas.

Logo outro barulho, de algo muito grande se aproxima.

- Ah não! Outro Grot´s! Vista-se! Rápido! –implora o moreno.

Não há tempo. A cabeçorra do bicho aparece entre as árvores centenárias.

O gigantesco animal se aproxima de sua fêmea morta cheirando-a.

É duas vezes maior que ela.

Igor faz menção de fugir, mas é contido por Saturno.

- Use seu rifle! Mire na cabeça! – sussurra o jovem.

Tremendo muito o cientista faz mira e atira um grande facho avermelhado que atinge a cabeça do Grot´s.

A fera colossal urra e logo, ferida, dirige sua atenção para os dois pequeninos seres abaixo.

O raio apenas lhe causou uma queimadura.

- Me dá essa merda! – Saturno toma a arma.

Checa a carga e descobre que o laser está quase esgotado.

- isto não dá nem pra fazer churrasco! Você tem uma faca?

Devolve o rifle para Igor.

- Tenho, mas...

- Mas nada! Dá aqui e corre!

Igor não acredita no que vê. Nos olhos do índio se acende um brilho vermelho e seus dentes caninos crescem de repente em um sorriso sádico.

O Grot´s localiza os dois pelo cheiro e os ataca com a cauda.

Saturno pula com uma agilidade extrema e Igor é acertado em cheio.

O cientista voa três metros no ar caindo quinze metros dentro do cinturão branco, e levanta uma nuvem de pó radiativa.

O moreno agradece a seu Deus por estar vestido com a roupa mágica.

Vê a luta do estranho com o Grot´s, impressionado.

O homem se move com a graça de um felino. Sua velocidade é impressionante, mas a faca não ajuda muito.

A pelagem da fera é espessa não deixando a arma cortar fundo.

Quando o Grot´s acerta uma patada Saturno é arremessado contra as pedras e Igor tem medo que ele esteja morto.

Enquanto o animal se aproxima o índio levanta chacoalhando a cabeça.

Gargalha ferozmente. Parece possuído por todos os demônios do mundo.

- “Ele é louco!” – pensa Igor.

O indígena fica parado enquanto o Grot´s o pega entre as garras enfiando-o goela abaixo.

- Não!

O moreno balança a cabeça tristemente com os olhos cheios de lágrimas. Está tudo acabado.

Escuta uma espécie de ganido vindo do animal.

Olha para a fera e nota que ele balança a cabeça em desespero.

A pelagem acastanhada do imenso pescoço do Grot´s se tinge de vermelho.

Um talho gigantesco aparece e Saturno sai de dentro do pescoço do monstro.

O colosso se debate e o índio volta para dentro.

Em poucos minutos o Grot´s jaz morto no chão ao lado de sua fêmea.

Igor fica feliz de ver o habitante da Torre vivo, mas ainda acha que não deveria tê-lo despertado.

- Vamos para dentro do Palácio da Justiça, antes que apareça outro destes!

Saturno está imundo de sangue.

O jovem da capital nunca ouvira ninguém chamar a Torre Branca assim.

Os dois atravessam o cinturão radiativo, após o índio ter vestido o traje laranja.

Bruno espera sentado em uma poltrona.

Saturno percebe que ele está muito ferido, o braço virado em um ângulo impossível, quebrado com uma fratura exposta.

Os dois colocam o guia em uma maca e seguindo as orientações do rapaz de longos cabelos negros que conhece o prédio de cima a baixo, correm com ele para a enfermaria.

Procuram alguns anestésicos, mas só encontram soro, faixas e ataduras vencidas há muitos séculos.

Saturno separa o material em melhores condições.

Desinfeta os cortes e feridas, passa ataduras e dá rápidos pontos onde os cortes são mais profundos.

Cada ponto é um grito do louro.

Finalmente chega a hora do braço quebrado.

- Não temos nada para a dor... – avisa Igor.

Arfando, Bruno responde corajosamente:

- Eu agüento!

Triste por ter que fazer aquilo, Saturno desinfeta a faca afiada com saudade de seu antigo punhal.

Corta fundo uma cruz no braço do loiro, abre a pele e afasta os músculos.

Dos olhos azuis do guia, lágrimas de dor escorrem, e, com os dedos crispados ele agüenta tudo sem dar um gemido.

Quando seu osso é colocado no devido lugar com um estalo seco Bruno desmaia de dor.

Saturno costura o braço inerte do louro e consegue algumas bolsas de sangue congelado há quinhentos anos, para fazer uma transfusão.

Para Bruno parece que foi apenas uma noite cheia de sonhos e pesadelos, mas uma semana inteira se passou até ele acordar.

Vê Igor e um estranho a sua frente.

- Quem é você? – pergunta o guia.

- Saturno. Vocês me descongelaram, serei eternamente grato...

- “Eternamente” é muito tempo, só o fato de você me salvar do Grot´s já é muito!

Para o índio o eternamente vale, pois ele é imortal.

Ele é um vampiro.

Os dois ajudam o louro a se sentar.

- O que é você? Uma pessoa comum nunca mataria um Grot´s daquele jeito!

O cientista está encafifado.

- Você não cheira como um humano...

A essa afirmação de Bruno, o filho-da-noite silencia e cheira as costas das mãos se perguntando como ele percebeu.

- Meu “dom” especial é ter sentidos tão aguçados como os de um animal... – a voz do guia ainda está fraca.

O vampiro pensa alguns momentos e se resolve pela verdade.

- Tem razão. Vou contar o que sou.

Ele conta o que eram os vampiros, como eram transformados. Que alguns eram bons e outros maus.

E de como serviu ao governo do Brasil até ser preso por um general rebelde que queria o poder a qualquer custo.

Os dois fazem centenas de perguntas sobre o passado e o vampiro satisfaz a curiosidade deles, em conversas que duram dias e dias.

- Gostaria de saber uma coisa. Como você escapou do Grot´s, sendo apenas humano?

Igor também se volta para o companheiro de viagem, curioso.

Bruno suspira e começa a relatar o seu calvário.

- Após atirar a flecha no olho do desgraçado, me desviei e ele cai na cratera. O carretel começou a desenrolar e eu procurei minha faca para cortar o fio, mas ela tinha sumido. Tentei partir o nylon-carbono com as mãos e tudo que consegui foi este corte!

O louro mostra a mão enfaixada.

- Após cair, arrastado pelo monstro, rasguei minha calça soltando o fio e escalei mesmo com o braço quebrado. Só não sabia que o Grot´s tinha sobrevivido e seguido meu rastro...

Eles ficam mais alguns dias na Torre Branca e quando Bruno está em condições de viajar eles partem.

Ao atravessar o cinturão branco Saturno passa muito mal com a radiatividade, mas não deixa os outros perceberem nada.

Quando caminham entre as florestas do Pacaembu, Saturno lança um chamado mental a todos os vampiros no Estado.

A mensagem deve ter sido ouvida por muitos, mas apenas um consegue responder.

- “Eu sou Miguel e estou na nova capital do país, a cidade do Novo Rio de Janeiro, quanto à companheira de Saturno, a última vez que soube dela, ela estava na Argentina...” – avisa mentalmente o outro vampiro.

Saturno combina de se encontrar com ele no Novo Rio de Janeiro.

Casualmente olhando para alua nota que falta um pedaço de nosso satélite natural.

- “Será que as colônias humanas em Marte e na Lua sobreviveram?” – pensa o imortal.

Seus pensamentos são interrompidos por rosnados. Uma matilha de cães ferozes os cercam.

Aproximam-se cada vez mais.

O vampiro dá um passo à frente e rosna.

Seus olhos vermelhos brilham na noite.

Os cães enfiam o rabo entre as pernas e fogem.

Sabem que ele é um inimigo que não pode ser intimidado e nem vencido.

Saturno está de volta.

Fim.

Humberto Lima
Enviado por Humberto Lima em 04/09/2007
Código do texto: T638882
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