Em chamas (2084)

Entre 2050 e 2080 a cidadezinha de Vale da Serra cresceu.

Não ordenadamente como seria de se esperar; foi algo mais parecido com uma ferida se enchendo de pus – as grandes massas de refugiados escapando das guerras nos arredores que a entupiram eram para muitos moradores dali os vermes que cobrem e se alimentam das brechas purulentas.

No início de 2084 o crescimento cessou tal qual uma ferida se infla, estoura e seca. Havia agora muitos mendigos pelas ruas disputando restos e os poucos espaços com os cães magricelas; sem tetos e vadios enxameavam vielas e davam dores de cabeça infernais aos gestores.

O índice de violência subia a níveis cavalares.

Era início de noite numa rua do subúrbio.

Um homem metido em trapos remexia latas de lixo. Um pensamento solitário ecoava nas paredes de seu crânio: “preciso comer e preciso de um abrigo antes que a noite caia”. Repetia-o silenciosamente enquanto as mãos ágeis tateavam latas de lixo e caixas de papelão, furavam sacolas e que vez ou outra se deparavam com pedaços de vidros que ele cautelosamente separava do restante do conteúdo e retomava o trabalho. Em alguns instantes chegava a afundar os braços até os ombros dentro de algumas latas. O estomago roncava furiosamente.

Atrás dele um carro da polícia passou lentamente. Os propulsores que o mantinham no ar zumbiam levantando nuvens de poeira pelas laterais da rua. O giroflex criava sombras fantasmagóricas em diversas cores na rua sem iluminação. Uma voz robótica anunciava: ATENÇÃO! O TOQUE DE RECOLHER INICIA AS 20 HORAS. VADIAGEM SERÁ PUNIDA COM PRISÃO! ATENÇÃO! O TOQUE DE RECOLHER...

De tão ocupado com as latas de lixo o homem sequer olhou para trás. Aquele tipo de veículo era autônomo. Não era preciso apertar os olhos tentando ver através dos vidros escuros para saber que ninguém o pilotava. Não havia urgência ou preocupação. Conhecia-os bem afinal, ele era um pouco mais que um simples pedinte.

Encontrou um pedaço de hambúrguer enrolado em plástico; tocou as marcas de mordidas no pão, girou nas mãos olhando de diversos ângulos e por fim lançou-o para um vira-lata que dormia ali perto. O pedaço de sanduíche acertou num dos ossos da anca que despontava ameaçando furar a pele como a ponta de uma faca. O bicho levantou o focinho farejando aquele estranho objeto e o abocanhou. O homem apanhou um pequeno aparelho do bolso que lembrava um telefone celular e sussurrou algumas palavras rápidas. Por fim saiu caminhando pelas ruas com um passo firme e incomum para alguém naquelas condições.

Aproximou-se de uma Mercedes 2050 estacionada ali perto e passou a arrancar os trapos que o cobriam. Retirou o capuz revelando um cabelo loiro e bem cuidado. Trajava um belo terno e sapatos bem lustrados por baixo. Tocou com um dedo no vidro e aguardou um pequeno ponto de luz verde acender no painel. A porta abriu com som de “shuuuu” e o cheiro de estofamento novo encheu suas narinas. Um homem surgiu repentinamente as suas costas e ele não se espantou. Parecia aguardá-lo.

- como vai Jorge? – perguntou abrindo um largo sorriso ao vê-lo enquanto lançava os trapos no interior do veículo.

- vou bem senhor Richard – respondeu ele numa voz robótica, porém mais humana que a voz vinda do carro de polícia que passara há pouco; através dele era possível ver o outro lado da rua. Seu corpo era transparente como um fantasma (seres que há tempos foram provados como algo que não passava de lendas). Isso se dava por que ali não estava o verdadeiro Jorge, assistente pessoal de Richard no setor de criminalística de Vale da Serra e sim um holograma em tamanho real. (Última novidade em tecnologia de comunicação! Gritavam os anunciantes na tevê) – percebo que tem estado ocupado senhor.

- Você também. Do contrário não estaria aqui para me convocar seja lá para o que for...

- co-como soube senhor?

Richard preparava-se para entrar no Mercedes:

- seu tom de voz e seus olhos, mesmo não sendo você realmente aqui na minha frente. Sinto que há urgência na maneira como você fala e duas vezes virou os olhos para o lado, um gesto quase imperceptível, mas que demostra o quanto está alarmado, como se esperando alguém entrar na sala onde você está – pausa - Ou temendo alguém entrar.

- bem, e está certo senhor, hoje...

Ele o interrompeu com um gesto:

- sei que não consegue sentir o cheiro desse lugar, mas eu sinto. E sinceramente adoraria que pudéssemos sair logo. Podemos conversar enquanto dirijo até ai, afinal, você – ou quem seja que ordenou – precisa de mim aí, certo?

O rapaz-holograma apenas assentiu.

Atravessou Richard e o veículo e acomodou-se no banco. Este ficou assistindo um pouco abismado em como era possível fazer tudo aquilo: “Num instante ele era imaterial, como um espectro e de repente sentou-se no banco como se tivesse adquirido um corpo sólido”. Ambos acomodados o veículo começou a levantar-se do chão. Richard apenas passou o endereço por comando de voz e o piloto automático encarregou-se de encontrar o local mais apropriado ao veículo em meio tráfego intenso que já voava pelas ruas e partiu.

De dentro do Mercedes a cidade era um show de luzes correndo rapidamente pelas laterais do veículo: fachadas luminosas de lojas, grandes letreiros em néon (alguns em cores variadas que confundiam os olhos), prédios com varandas acessas (em dois deles luzes de boate piscavam enquanto um som eletrônico pôde ser ouvido rapidamente). Tudo ia ficando para trás numa rapidez estonteante.

Lá dentro o Jorge-holograma conversava naquele tom contido e preocupado:

- dois prédios públicos foram atacados agora a noite senhor. O setor de finanças municipal e uma secretaria não sei bem-de-que. Vândalos, mascarados e tinham aquele corte de cabelo retrô sabe? Uma grande tira no meio da cabeça e as laterais raspadas. Portavam coquetel molotov, quebraram as grades, arrombaram e puseram fogo. Os seguranças foram rendidos. Estão vivos, mas foram violentamente espancados. – Richard ouvia-o com atenção apesar de manter um olhar distante. A sua frente o volante girava sozinho quando necessário realizar uma curva – Houve também um ataque a uma delegacia. Em vale dois. Os quatro policiais que estavam dentro...

- não eram três? – interrompeu Richard.

- quatro. O caso dos três foi em Serra Preta lembra-se? O recruta mais jovem matou dois veteranos e se matou. Descobriram drogas escondidas no banheiro e ligações dele com alguns traficantes, enfim, nem foi em nossa jurisdição senhor.

- é verdade. Me confundi Jorge. Devo ter lido sobre esse caso e misturei-o com tantas coisas que tenho mantido guardadas aqui.

- bem – continuou o rapaz: o caso é que os quatro foram mortos. Carbonizados. A polícia foi chamada bem a tempo de pegar alguns deles ainda no local assistindo ao fogaréu que transformou a pequena delegacia numa grande bola de fogo. Soube que alguns estavam acendendo cigarros de maconha sintética nas chamas. Os policiais chegaram atirando e apenas um sobreviveu. Saldo: quatro mortos, seis ou setes fugiram e um está conosco numa sala espelhada, algemado aguardando interrogatório, gritando e se debatendo como um alucinado. Talvez seja efeito da droga que tenha usado, mas ele parecia bem lúcido ao falar sobre facções, seitas e alianças entres grandes líderes do governo e esses chefes do tráfico. Após algumas investidas sem sucesso de alguns agentes, Lorenzo convenceu o chefe que o senhor seria a pessoa ideal para interrogar o sujeito, sabe? – ele tocou o dedo na têmpora e mais uma vez Richard sentiu aquela impressão de materialização da imagem holográfica.

- Sei. Eu entendo – pensa que o sujeito pode ser louco, um doente mental ou não. E sabem que sou mais indicado a interroga-lo da maneira certa e arrancar daquela cabeça pirada a verdade: estarão frente a um alucinado falando em conspirações ou um drogado falando em conspirações e coisa do tipo? – o veículo deu uma leve guinada para a direita e os bairros mais pobres e congestionados foram deixados de lado. Seguiram por bairros bem iluminados e cercados por ambos os lados de grandes edifícios que apontavam para o céu como dedos longos.

Nas varandas viam grandes jardins. Richard abaixou os vidros. O ar fresco lhe encheu os pulmões.

- senhor – perguntou o rapaz-holograma – o que fazia naqueles bairros, metido em roupas velhas?

- não estava brincando de detetive Jorge, se é o que pensou – sorriu brevemente – Sou curioso sabe? Desde muito garoto. E há uma necessidade voraz em mim em saciar essa curiosidade. É como uma ulcera me corroendo por dentro e se a ignoro ou deixo de molho, bem, ela aumenta ao ponto de me matar. Na última vez me peguei pensando cada vez mais sobre essa quantidade incalculável de mendigos, pedintes e vadios que temos por aqui. Consegue imaginar quantos são ao todo? - o outro sacudiu a cabeça negativamente e Richard prosseguiu: quase trinta e três mil. Não lembro o numero completo, mas isso foi fácil. Bastou-me procurar nos censos. A segunda questão era mais profunda e está tão enraizada no fundo da minha mente que mal consigo explica-la. Quando tento externa-la tudo que vem é um vislumbre dela e o que posso lhe adiantar Jorge é: Como funciona a mente de um pedinte, mendigo, sem teto? Com o que se preocupa, o que teme? – O GPS anunciou que estavam a menos de um quilômetro – tem medo de algo ou vive de maneira livre? E é isso que venho tentando responder. Trajo-me como tal e vago pelas ruas rasgando sacos de lixo, me expondo aos riscos... e espero em breve poder lhe explicar melhor sobre...

O rapaz estava boquiaberto e um tanto confuso. Richard não esperava reação diferente; pretendia continuar falando quando foi interrompido:

- um minuto senhor, parece que...

O holograma desapareceu.

O GPS anunciou quinhentos metros e mesmo a essa distância Richard pôde notar algo incomum: o prédio inteiro estava em chamas. Um grande helicóptero de dois rotores voava próximo despejando pesados projéteis.

A voz distante do GPS anunciou: chegamos ao seu destino.

O carro foi baixando para o chão.

A grande máquina de guerra virou-se para ele.

Wenderson M
Enviado por Wenderson M em 09/06/2018
Código do texto: T6359592
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