Papel ou plástico

[Continuação de "Robota"]

- Irmãos!

No púlpito da Catedral de Metropolis, Nicomedes, um monge de hábito negro, cabeça tonsurada, ergueu os braços num gesto dramático, chamando a atenção para si. As centenas de presentes, todos de pé, pois não havia bancos, voltaram-se imediatamente para ele em silêncio. A prédica iria começar.

- Nosso amado irmão, Desertus, não caminha mais entre nós! - Exclamou ele. - Mas suas palavras ainda ecoam nestas paredes, onde as ouvi pela primeira vez! E o que nos dizia ele? Vejam Babilônia, a Grande Meretriz, a Mãe de Todas as Abominações! E quem, irmãos, é Babilônia?

Fez uma pausa, mãos crispadas no púlpito. Em seguida, ergueu lentamente o braço direito, apontando para cima.

- Metropolis! - Declarou, dedo em riste.

Baixou o braço e encarou o mar de rostos que o encaravam, em expectativa. Aquele discurso não era novo, todos o sabiam de cor. O notável é que estivesse sendo trazido de novo à baila, cinco após a Grande Revolta, que mudara efetivamente as relações entre dominantes e dominados na principal megalópole tecnológica do planeta.

- Estivemos muito próximos de derrubar a Grande Meretriz, encarnada na abominação conhecida por Futura, a mulher-máquina! Mas Joh Fredersen é incrivelmente astuto e nos convenceu de que poderíamos aceitar a convivência com o Mal, em troca de algumas poucas benesses. Seu filho e herdeiro, Freder Fredersen, teve participação ativa neste acordo, mas não devemos depositar grandes esperanças no papel que possa ter na definição dos planos imediatos de seu pai. O que o Mestre da Cidade tem feito, desde 2026, é ganhar tempo. Enquanto nos desmobilizamos, iludidos por nossa vitória aparente contra o poder que nos oprime, ele continuou a trabalhar em silêncio, planejando novas atrocidades contra os trabalhadores dos níveis inferiores!

Analisou as expressões dos espectadores mais próximos e, ao menos entre os jovens, o sentimento mais visível parecia ser de incredulidade.

- Cinco anos é um tempo muito curto, - prosseguiu ele - e embora quase todos vocês lembrem-se de como eram duras as condições de vida antes da Grande Revolta, muitos devem ter assumido que a existência que levam hoje, onde o papel que recebem como pagamento lhes permite comprar uma vida de plástico, artificial, está garantida. Nada está mais longe da realidade! A verdade é que Babilônia se alimenta de sacrifícios humanos, e estes não tem sido feitos com a regularidade com a qual ela estava acostumada. Babilônia tem fome!

E agarrando as laterais do púlpito, lançou um olhar fulminante sobre a plateia:

- Em breve, ela voltará a comer como antes!

* * *

Joh Fredersen, que apreciava a vista da megalópole pelas amplas janelas envidraçadas do seu gabinete, no alto da Torre Fredersen, também conhecida como "a Nova Torre de Babel", voltou-se para a porta de entrada quando seu assistente pessoal, Slim, por ela ingressou.

- E então, há algum fundamento nos boatos?

Slim, um homem alto de aparência inescrutável, aproximou-se e parou em frente à escrivaninha do Mestre da Cidade.

- Nada conclusivo, senhor. Nossos agentes, infiltrados entre o público que frequenta a Catedral, relataram que o monge Nicomedes fez uma peroração na qual alertou para a suposta fragilidade dos acordos firmados com os trabalhadores em 2026, e na possibilidade de que "Babilônia" - como eles chamam Metropolis - voltasse a exigir sua quota de sacrifícios humanos.

Fredersen ouvia Slim de braços cruzados, testa franzida.

- Então não acredita que algo concreto, relativo aos nossos planos para a fábrica da Cidade Inferior, tenha vazado?

- Improvável, senhor - ponderou Slim. - Se Nicomedes ou um dos seus tomou conhecimento de alguma coisa, não iria revelá-lo no púlpito, sabendo que teríamos homens nossos infiltrados ali. Entendo que tratou-se de mais um dos seus avisos genéricos, sobre o mal, e a corrupção etc.

- Bem... - Fredersen descruzou os braços, expressão relaxada. - Pelo menos, pararam de me chamar de Anticristo?

- Esta palavra não foi usada em momento algum, senhor - respondeu Slim diplomaticamente. - Mas reconhecem que é um adversário astuto e temível.

Fredersen permitiu-se um sorriso sardônico.

- Esta imagem parece-se mais comigo, Slim. E les têm mesmo razão em me temer...

E, apoiando as palmas das mãos no tampo de vidro da escrivaninha:

- Avise a Ezechia que farei uma inspeção na fábrica no fim deste mês... e que espero que tudo esteja correndo dentro do planejado.

- A matéria-prima tem sido entregue conforme o cronograma - informou Slim. - Não creio que teremos atrasos, senhor.

- Ótimo! Quanto antes entrarmos em produção, melhor.

E, parecendo lembrar-se de algo importante:

- Sei que já deve ter providenciado isso, mas reforce a vigilância sobre Nicomedes e seus principais seguidores. Pelo menos, até termos uma quantidade de homens mecânicos suficientes para equipar os principais postos nas Casas de Máquinas.

- Naturalmente, senhor... mas, e depois que estes postos estiverem supridos?

- Então, chegará a hora de realizar a profecia dos Góticos e colocar abaixo a Catedral de Metropolis.

Perante o olhar de assombro que o assistente lhe dirigiu, acrescentou:

- Provavelmente, haverá pelo menos uma vítima fatal nesse trágico evento: Nicomedes.

[Continua em "Replicantes"]

- [05-06-2018]