O mundo está mudando

[Continuação de "Quem? (Perguntou ela)"]

- O mundo está mudando - declarou Noêmia Simões do alto do púlpito, encarando suas irmãs do Grande Conselho, reunido em semicírculo no anfiteatro abaixo dela. - É preciso que aceitemos isso, quer gostemos ou não.

Pela cara da maioria das presentes, a receptividade não estava sendo das melhores. "Melhor ir direto ao ponto", decidiu-se.

- Eu entendo perfeitamente as restrições que muitas de vocês levantam quanto ao uso de homens como Agentes de Mudança; na esmagadora maioria das realidades alternativas que monitoramos, o domínio masculino é sinônimo de morte, destruição e miséria. Este aliás, é precisamente o caso ora em análise. E porque estou propondo uma abordagem diferente, e, segundo algumas das irmãs, herética? É porque, pela primeira vez na História registrada, encontramos sinais de interferência de Agentes de Mudança que não foram designadas por nós... e desde uma antiguidade remota. Alguém... que não sabemos quem é, ou quais são as intenções... vem trabalhando para mudar a trajetória evolutiva deste mundo. O mais notável é que considera que homens podem ser instrumentos positivos neste processo, algo que sempre rejeitamos.

A plateia continuava fria e hostil, analisou rapidamente.

- A minha proposta, portanto, vai ao encontro do bem maior que é a nossa segurança comum. Em vez de utilizarmos uma das nossas equipes para infiltrar-se no mundo visado, destacaremos um dos seus próprios habitantes para realizar este trabalho por nós, sem que ele tenha consciência disso - prosseguiu, em tom vibrante. - Se houver uma reação negativa ou hostil da parte de quem quer que esteja por trás da interferência local, nenhuma de nossas irmãs correrá perigo. Caso a reação seja positiva, poderemos então decidir se um contato direto com estas nossas semelhantes seria o melhor caminho a trilhar, ou se devemos continuar nossa tarefa de monitoramento e ignorá-las.

A plateia começou a demonstrar sinais de aceitação da sua fala. Braços descruzaram-se, algumas das irmãs mais jovens balançavam a cabeça em concordância com seus argumentos.

- Antes que alguém pergunte: e se não forem nossas semelhantes? E se forem criaturas alienígenas imbuídas de algum propósito nefasto? Então, teremos que agir de modo duro e imediato, no interesse maior de nossa própria sobrevivência e dos mundos pacíficos que monitoramos. E, para este tipo de trabalho, nem preciso dizer que os homens são naturalmente melhores talhados do que nós. Utilizemos todas as armas que a Mãe nos deu... não tenhamos medo da mudança, vamos ao encontro dela!

Uma salva estrondosa de palmas lhe deu a certeza de que conquistara a simpatia de parte expressiva do Grande Conselho. Mas se isso converter-se-ia em votos favoráveis à sua proposta heterodoxa, era algo que precisava ainda ser provado.

* * *

Durante o curto percurso entre o pasto onde descera de paraquedas e a herdade de Noêmia Simões, o capitão Chase Dillon perguntou-se continuamente se estaria perdendo a sanidade. Num momento, ele estava pilotando a "Vesper", a astronave mais rápida construída pelo Homem, num ambicioso voo de circunavegação de Vênus... e no instante seguinte, estava caindo em queda livre sobre um planeta que identificara a princípio como a Terra... exceto que possuía duas luas! E aquela mulher estranha que lhe oferecera uma carona, vestida como se estivesse na década de 1950, dirigindo uma picape vinte anos posterior ao estilo das próprias roupas... e ouvindo música instrumental de meados do século XX pelo rádio FM do veículo. O que poderia atinar daquilo tudo?

- Chegamos! - Exclamou alegremente a motorista, quando cruzaram a porteira aberta da fazenda.

Havia trabalhadores rurais circulando por ali, percebeu ao descer da picape. Em sua maioria homens, de jardineira jeans, camiseta branca e chapéu de palha na cabeça. Algumas mulheres, lenços amarrados na cabeça encimado pelo mesmo chapéu dos homens, usando um curioso conjunto de vestido de mangas longas, barra pelos joelhos, sobre calças compridas. Todos pareciam ter um profundo respeito por Noêmia Simões, juntando as mãos como em prece e inclinando a cabeça ao vê-la. Ela respondia apenas com uma breve inclinação de cabeça.

Tinham estacionado atrás da casa principal, uma construção de madeira, dois andares, pintada de branco, e deram a volta para entrar pela frente, protegida por um amplo alpendre onde havia redes penduradas nas colunas, namoradeiras de dois lugares, vasos de plantas sobre o piso e pendurados das vigas de sustentação - e dois enormes mastins rajados que ergueram-se tão logo eles subiram os dois degraus que davam acesso à casa.

- Não se mexa, capitão - alertou Noêmia.

Os cães aproximaram-se e o cheiraram cuidadosamente. Dillon ficou imóvel enquanto durou o exame. Finalmente, deram-se por satisfeitos e voltaram a deitar-se junto à entrada, onde estavam antes.

- São inofensivos, desde que você não tome alguma atitude suspeita - explicou Noêmia, girando a maçaneta de latão da porta principal.

Dillon perguntou-se o que poderia ser caracterizado como "atitude suspeita" quando a porta foi aberta, revelando uma aprazível sala de estar decorada num estilo que não destoaria em uma sede de fazenda do sul dos EUA no início dos anos 1960. Uma jovem, recém-saída da adolescência, muito parecida com Noêmia, usando um vestido azul rodado, com uma fita da mesma cor prendendo o cabelo, surgiu descendo as escadas que levavam ao piso superior. Seus olhos brilharam ao ver Chase Dillon.

- Mamãe! Voltou cedo...

Aproximou-se de Noêmia e deu-lhe um beijo no rosto, sem desviar os olhos do capitão.

- Tive que resgatar o capitão Dillon... - explicou Noêmia, indicando seu acompanhante. Ele estendeu a mão para a jovem, que a apertou.

- Senhorita? - Indagou.

- Flora. Flora Simões - apresentou-se ela, sorridente.

- Bem, se não se importa, Sra. Simões, poderia agora me levar ao telefone?

- Claro que sim, capitão. Mas antes, creio que será necessário explicar-lhe algumas coisas...

Indicou-lhe uma poltrona de braços com forro de veludo vermelho e sentou-se com a filha num sofá em frente a ele.

- Capitão... - começou a explanar Noêmia, juntando as mãos num gesto de contrição. - Eu lhe devo desculpas. Foi por minha culpa que o senhor veio parar aqui.

* * *

A reunião do Grande Conselho acabara tarde. Com as chaves do carro na mão, Noêmia Simões desceu de elevador ao andar do estacionamento, já praticamente vazio. Havia acabado de abrir a porta do Mercury Cyclone prateado que usava na cidade, quando alguém começou a aplaudir atrás dela. Virou-se e viu a reverenda ministra Lúcia Sampaio, uma das integrantes mais velhas do Conselho, encostada numa pilastra, junto ao seu próprio carro, um Pontiac Executive verde, de quatro portas. Parou de aplaudir e a encarou com ironia.

- Parece que o seu show foi inútil, Noêmia. Nunca irão lhe dar autorização para levar a sua loucura adiante.

- Veremos - retrucou secamente Noêmia.

Lúcia tocou com o indicador a pálpebra inferior direita.

- Você pode enganar todas elas; a mim, não. Eu te conheço!

- Você não é minha mãe - rosnou Noêmia entredentes.

- Mas fui eu quem te criei - foi a resposta incisiva.

Noêmia achou que já tinha ouvido o suficiente; entrou no carro, bateu a porta e deu a partida. Ao dar ré para pegar a saída principal, teve que passar pelo ponto onde a reverenda ministra estava. Lúcia levou os dois dedos indicadores aos olhos, e apontou-os para ela.

Irritada, Noêmia fez a curva e saiu do estacionamento cantando pneu.

[Continua em "Insano"]

[15-04-2018]