O LONGO CAMINHO PARA O NORTE
" O mundo havia continuado desde então. O mundo havia se esvaziado"
STEPHEN KING
A torre Negra Vol. 1 - O pistoleiro.
A luz de energia da bateria acendeu-se no painel e o carro começou a perder velocidade.
Ele não tinha ideia do quanto tinha andado naquele dia, senão que tinham sido muitos quilômetros, talvez mais de mil. Em todo o trajeto não vira um único sinal de civilização; vira ruínas, se é que isso poderia ser chamado de sinal de civilização. Uma civilização morta, um povo que não existia mais.
Olhando para fora tudo o que conseguia ver era o deserto. O deserto era gigantesco, cobria toda a extensão do infinito horizonte e ia além. Até onde ia o deserto? Era uma pergunta para a qual não existia resposta. Ele estava procurando a resposta, mas até então tudo o que encontrou foi areia.
Os últimos sinais de civilização tinham sido deixados a centenas de anos para trás, no início da guerra. O último resquício da humanidade tinha sido mandado para Marte e era lá que a humanidade tivera uma nova chance. A Terra se tornou um cemitério, mas os ossos estavam cobertos por dezenas de metros de areia. Em alguns lugares a camada de areia tinha mais de cem metros de profundidade. Mas ali não, ali, onde ele estava, dava para ver os restos do que um dia fora uma estrada, e ele seguia por ela, mesmo que ela não o levasse a parte alguma, de qualquer forma não havia lugar algum para ir naquele planeta devastado.
Ele ainda se lembrava dos horrores da guerra, uma luta ferrenha entre andróides que simplesmente devastou o que sobrara da Terra. Ele sobrou, ele estava ali para contar a história. O problema é que não havia ninguém para ouvir.
Depois que a guerra acabou, depois que ele acabou com ela, descobriu que precisava sair dali. Ele precisava ir para Marte. O portal de teletransporte em Thera estava destruído, ele mesmo o fizera assim que mandara Nathaly e a garota para Marte. Ele precisava encontrar outro portal, se é que existia outro, e foi o que ele passou a fazer. Entrou naquele carro e saiu pelo mundo à procura do portal.
A busca durou mais do que ele pensara. Já faziam 75 anos que ele dirigia sempre indo para o norte; 75 anos desde que vira o rosto de Nathaly pela última vez; 75 longos anos.
Ele poderia dirigir 24 horas por dia, sem parar, a fadiga que ele sentia era apenas uma ilusão, ele era uma máquina, e tudo o que sentia fora implantado em sua mente. Mas mesmo assim ele parava em algum lugar ( quando dava para parar ) , sempre ao pôr do sol, fazia uma fogueira, esquentava um tablete de EDP que era lubrificante de andróide e que tinha gosto de frango ( quando fugira de Thera levara consigo um grande estoque de EDP ), e comia geralmente lendo algum resquício de livro ou revista que achava no deserto, eram os tesouros do deserto.
Ele não precisava comer, mas fazia aquilo para se parecer o máximo possível com um ser humano. Uma parte dele ainda não tinha aceitado aquela ideia de ser um andróide. No ínicio ele também tomava água, mas ao longo dos dias a água passou a fazer mal aos seus circuitos e ele parou.
Depois dormia, e quase sempre sonhava. Eram as memórias que tinham, sido implantadas em sua mente. Havia sonhos com Ana e com Caroly e a cabana de madeira naquela pequena cidade inexistente do interior. Mas também havia sonhos com Nathaly e esses não eram memórias implantadas, eram as lembranças de alguém que existira.
Era improvável que depois de todo aquele tempo ela ainda estivesse viva. Ele não sabia quanto tempo poderia durar um ser humano híbrido, mas achava que não era muito mais do que um nascido.
75 anos. Depois de um tempo o estoque de EDP acabou e ele não tentou comer mais nada, afinal não precisava, era um andróide, um tipo especial, mas ainda assim não era um ser humano.
Ele ainda fazia suas paradas mais para economizar a bateria do carro.
A bateria durou 75 anos, e agora, finalmente, a luz acendeu- se no painel e não havia lugar para recarregar.
75 anos e ele ainda estava no deserto. O planeta inteiro era um deserto.
Ele não entendia porque ainda continuava a sua busca por um portal. Precisava fazer aquilo, talvez para honrar a memória de Nathaly, a quem ele amava.
As últimas palavras dela ainda ecoavam em sua mente: Eu amo você Fernan.
E ele também a amava. Ele era um andróide que podia amar e se perguntava a cada dia o que poderia ter acontecido se tivesse ido com ela para Marte. Talvez aquele sonho da cabana em uma pacata cidade do interior pudesse ter se tornado realidade, eles poderiam ter criado a menina como filha deles e ter lhe dado o nome de Ana.
Agora estava fora de alcance, não havia um portal para Marte, o último tinha sido destruído por ele e ele só o fizera para salvar a humanidade, para dar uma chance à Nathaly, para que ela, de alguma maneira, fosse feliz.
Mas ele continuaria procurando, era uma coisa que ele sabia. Faria aquilo só porquê não havia mais nada para fazer.
O carro finalmente parou e pousou na areia com um chiado suave das turbinas.
Dali para a frente ele teria que andar, até encontrar um outro transporte.
É claro que ele poderia se transformar em uma nave, como fizera em Thera e sair voando, mas depois que a coisa toda acontecera ele prometera a si mesmo não fazer mais aquilo talvez porquê precisasse sentir- se o mais humano possível. Além disso, sentia que gastaria uma grande quantidade de energia para se transformar em uma nave e não sabia até quando suas baterias iriam durar. A única coisa que ele sabia era que não duraria para sempre. Nada durava para sempre, a prova estava ali, no mundo ao redor, e, andróide ou não, ele fazia parte do mundo, e assim como o mundo passara ele também iria passar. Mas enquanto esse dia não chegasse, ele iria andar, sem destino, em busca de algo improvável, em um mundo caótico.
Ele abriu a porta do carro e pegou sua mochila, dentro dela havia os seus resquícios de livros e revistas que ele achava pelo deserto, uma arma T que com certeza não funcionava mais , e um óculos de piloto. Nada mais.
Ele colocou os óculos, era necessário por causa da areia, jogou a mochila nas costas e saiu andando, deixando para trás o carro que durante 75 anos tinha sido praticamente sua casa. Em breve ele estaria coberto pela areia do deserto, que parecia viva.
Dali para a frente o destino era incerto.
Ele achou algumas ruínas no final da tarde e resolveu pousar ali.
Conseguiu alguns pedaços de madeira em meio aos escombros e fez uma fogueira. O fogo ele acendia com a arma que havia na sua mão, a arma de raios azuis que fazia parte de si, parte do que ele era.
Ele sentiu vontade de comer EDP e tomar um pouco de água, mas não havia.
Limitou-se a ver o estranho sol artificial que ainda perdurava no céu se pôr e as trevas tomando conta do deserto.
A noite podia ser perigosa no deserto. A areia escondia criaturas que saíam na escuridão para se alimentar. Na verdade elas comiam umas às outras porquê não havia qualquer outro alimento. A maioria delas emitia sons guturais que pareciam lamentos de almas atormentadas que ecoavam pelo deserto.
Ele acendia o fogo porquê elas nunca se aproximavam da luz e ficava a escutar seus lamentos. Às vezes ele tinha vontade de se aproximar daquelas criaturas, ver como elas eram. Ele achava que eram como as coisas que encontrara há quase uma centena de anos atrás nas ruínas de uma cidade chamada estranhamente de Pindamonhangaba, enquanto fugia de Thera com Nathaly. Eram seres que num passado longínquo tiveram uma outra forma.
Ele enfiou a mão na mochila e tirou de lá o resto de algum livro. A capa estava deteriorada, mas aqui e ali dava para ver trechos do título e o nome do autor: ... pis...leiro, Stephen King.
Ele nunca tinha ouvido falar em Stephen King, o cara devia ter vivido numa era tão distante da humanidade que era difícil imaginar que fora real.
Mas a leitura o agradou.
Depois de algumas horas, que ele não tinha a menor ideia de quais eram, ele resolveu dormir.
Guardou o livro e olhou para a escuridão. As criaturas estavam lá em seu eterno lamento. Então seus olhos captaram um brilho estranho. Era apenas um pequeno ponto em meio ao manto escuro que era a noite, mas era perceptível. Parecia uma luz, talvez uma fogueira.
Mas isso era impossível, não era? Aquele era um mundo morto. Ele mesmo destruíra todos os andróides que haviam sobrevivido, e os seres humanos não habitavam o planeta há vários anos. Ele e as criaturas do deserto, pareciam ser as únicas coisas que ainda caminhavam sobre a face da Terra. Mas o brilho era inconfundível.
Seria impossível ir em direção à ele naquela hora da noite, ele teria que esperar até que a luz do dia levasse as trevas.
Assim ele deitou-se e dormiu, e como sempre, os sonhos vieram, e naquela noite foram pesadelos. Ele sonhou que Ana e Carol, sua mulher e filha que nunca existiram estavam no meio da guerra e o mundo era uma imensa bola mecânica, elas estendiam a mão e Carol implorava:
- Nos socorra amor! Estamos enferrujando!
Mas ele era totalmente incapaz de ajudar.
Pelo que ele se lembrava, a luz devia estar há centenas de quilômetros à frente e tudo o que podia fazer era caminhar.
O sol já estava em seu ponto mais alto quando ele avistou o que parecia ser uma cabana. Na verdade era uma deplorável construção de madeira.
Mas o que mais chamou sua atenção, foi o que havia atrás da construção.
Ele aproximou-se cautelosamente. Não havia janelas em qualquer parte da casinha, mas Havia o que parecia ser uma porta e uma chaminé no telhado.
Ele deu a volta indo para a parte de trás, pronto para acionar a arma em sua mão se avistasse qualquer tipo de ameaça.
O que ele viu o deixou de queixo caído.
Havia terra, não areia, mas terra. Um círculo perfeito de terra de mais ou menos 50 metros de diâmetro. No meio do círculo uma árvore florescia e ao redor dela havia o que parecia ser uma horta.
Ao fundo havia uma pequena poça d'água. Estava turva mas era água.
Ele simplesmente não podia acreditar no que estava vendo. Aquelas eram coisas que estavam completamente extintas no mundo.
Ele nunca tinha visto uma árvore antes, e aquela tinha flores, flores amarelas. Havia alguns pequenos frutos não parecidos com nada que ele tinha visto em toda a sua vida.
- Mas o que é isso?!
Ele se aproximou e tocou a árvore, suas folhas eram ásperas. A árvore devia ter uns dez metros de altura e era a maior coisa que ele já tinha visto no deserto, até então.
Ele ouviu um ruído atrás de si e voltou-se para olhar. Viu o que parecia ser uma mulher. Ela estava envolta em trapos esfarrapados, o cabelo espatifado preso por uma tira de pano sujo, estava descalça e segurava uma arma que ele não conseguiu reconhecer, mas que achava que funcionaria caso ela puxasse o gatilho.
Pela aparência ela não devia ter mais do que 30 anos, e isso era uma coisa realmente incrível. Com toda certeza era um andróide. Não havia mais seres humanos no planeta, e muito menos seres humanos com apenas trinta anos de idade.
Ele ergueu as mãos e ficou olhando para ela. Por um momento nenhum dos dois falou qualquer coisa e então ela quebrou o silêncio fazendo uma pergunta dupla:
- Quem é você ? O que faz aqui?
A voz dela não parecia em nada com a voz de um andróide.
- Eu... eu estou... vi uma claridade vinda deste lado ontem à noite e... estou só andando.
- O que tem aí nessa mochila?
- Não é nada, são só papéis.
- Jogue ela para cá.
Ele tirou a mochila das costas com calma e a lançou aos pés da mulher.
Ela se abaixou sem desviar os olhos dele, abriu a mochila e constatou que eram apenas papéis.
- Onde achou esses papéis?
- Ai pelo deserto.
- De onde você vem?
- De longe, muito longe.
- Você está sozinho?
- Sim. Posso garantir.
- Qual é o seu nome?
- Eu... eu me chamo Fernan.
- E você é humano Fernan?
- Durante um tempo eu achei que fosse.
- O que quer dizer?
- Quer dizer que nem eu mesmo sei o que sou. Mas e você?
- O que tem eu?
- Faço as mesmas perguntas para você: Quem é você? Como se chama? De onde você veio? Você é humana? Enfim. São perguntas e mais perguntas. Você é a única coisa viva que eu vi em 75 anos, e para dizer a verdade estou surpreso e bem feliz de te ver.
Ela olhou para ele desconfiada por alguns instantes e depois disse:
- Me chamo Laika, e sim. Eu sou humana.
- Uma híbrida?
- O que?
- Você é uma híbrida?
- O que é uma híbrida?
Fernan sorriu e balançou a cabeça.
- Meu Deus! Você não é uma híbrida! Então você é uma nascida, e a julgar pela sua cara não deve ter mais do que trinta anos. Mas como, em nome de Deus, isso é possível?!
- Eu não sei que papo é esse. Quero que caia fora. Vá embora.
- Não.
- O que?
- Eu não vou a lugar algum.
Laika apertou um botão na arma e ela começou a emitir um chiado suave.
- Não sei quem é você, mas quero que vá embora agora.
- E eu não sei quem é você e não vou a parte alguma. Vou ficar bem aqui e conversar com você.
- Eu não quero conversar.
- É uma pena, porquê eu não converso com alguém há 75 anos e estou com uma vontade louca de fazer isso.
- Você é um andróide, não é? Meu pai me disse para não confiar em andróides.
- Seu pai! Então você é mesmo nascida! Puta que pariu! E onde está seu pai?
- Não é da sua conta! Agora dê o fora!
- Se quiser atirar com essa merda ai, vá em frente, mas eu não vou sair daqui moça.
- É meu último aviso.
Fernan suspirou.
- Bem, que se foda.
Ele deu dois passos em direção à Laika e ela apertou o gatilho.
Um raio avermelhado saiu da arma e o atingiu no peito. Fernan foi projetado para trás e caiu há cinco metros de distância. Ele mergulhou na escuridão.
REINICIANDO.
Fernan abriu os olhos e sua visão estava vermelha. Era sua visão de início e fazia algum tempo que ele não a via.
Logo seu sistema foi reiniciado e sua visão voltou ao normal e ele viu Laika encostada na parede segurando a arma e olhando para ele.
Fernan percebeu que estava amarrado, sentado em uma cadeira.
Ele a fitou.
- Eu achei a cadeira e a corda enterrados na areia. - Disse ela. - Tudo que tem aqui foi achado na areia.
- Essas merdas de armas não podem me matar senhorita Laika.
- É, eu percebi. Você é um maldito andróide.
De repente Fernan arrebentou as cordas que o prendiam.
- Essa porcaria de corda também não pode me segurar.
Laika arregalou os olhos e foi metendo o dedo no gatilho. Mais uma carga daquela porcaria e ele dormiria por semanas. Fernan estendeu a mão e a arma voou para ele. Depois partiu para cima da moça e a segurou pelo colarinho a erguendo do chão.
Ela gemia e lhe dava murros tentando se soltar, mas era em vão.
- PARE! - Gritou Fernan. - Eu não vou te machucar!
Laika se acalmou.
- Vou te pôr no chão. Mas se você criar problemas vou ter que te apagar. Fica fria.
Ele a soltou. Laika o fitava com espanto. Seu peito arfava acompanhando o ritmo acelerado de sua respiração.
Fernan voltou para a cadeira, que era o único móvel que havia no lugar e sentou-se. Alguns trapos à direita, provavelmente serviam de cama à moça.
Ele desarmou a arma e a jogou de volta para ela.
Depois de alguns minutos de silêncio ela perguntou:
- Para onde está indo?
Fernan fez um pequeno cigarro com um pouquinho de fumo que tirara do bolso, era o último cigarro que ele fumaria. Depois olhou para ela e respondeu:
- Estou à procura de um portal.
- Um portal?!
- Um portal para Marte.
Laika sentou-se no chão apoiando as costas na parede. Passaram-se dois minutos até que ela falasse:
- Há um desses em Darkelan.
Fernan a fitou interessado.
- O que?! Onde fica isso?!
- Não faço a menor ideia.
- Então como sabe que existe um portal lá?
- Eu sei porquê meu pai me contou.
- E onde está seu pai?
- Lá fora.
- Eu não o vi.
- Está na areia. Ela o engoliu.
- Eu... eu sinto muito.
Ela não respondeu. Ficaram em silêncio por alguns instantes, até que Fernan perguntou:
- Ele tinha certeza?
- Do que?
- Sobre o portal.
- Óh sim. Ele era o operador. Ele... ele tinha a chave. Espere, vou lhe mostrar.
Laika remexeu em seus trapos e tirou de lá um objeto enrolado em um pequeno pedaço de pano. Caminhou cautelosamente até Fernan e lhe deu o objeto. Ao desenrolar o pano, Fernan viu um pequeno pedaço de metal no formato de chapa.
- Isso é...
- A chave do portal.
Houve mais um pequeno período de silêncio. Fernan falou:
- É estranho.
- O que?
- Se seu pai era o operador do portal, por que não foi para marte? Por que não levou você para lá? Por que veio parar em um lugar como esse, no meio do nada?
- Por causa da escuridão.
- Qual escuridão?
- A escuridão que dominou a terra em que ele morava. Meu pai e minha mãe fugiram da escuridão e vieram até aqui.
- No deserto?
- Não era um deserto. Há trinta anos havia uma cidade aqui. É o lugar onde eu nasci.
- Então você realmente nasceu?
- É. Eu nasci bem aqui.
- É uma coisa bem incrível! E sua mãe?
Laika abaixou a cabeça.
- Ela... ela morreu. Morreu ao me dar à luz.
- Eu sinto muito.
Silêncio novamente.
- Seu pai não disse onde ficava Darkelan? - Perguntou Fernan.
- Ele falava alguma sobre lá. Acho que ficava ao norte.
Fernan balançou a cabeça. Norte era para onde ele estava indo, e ele iria para lá, não importava o que houvesse lá.
Ele mostrou a tal chave e perguntou:
- Posso ficar com isso?
- Pode. Não significa nada para mim.
Ele a guardou no bolso.
Ao pôr do sol Laika acendeu um fogo do lado de fora da choupana usando faíscas de um fio que estava enterrado no chão. A fogueira provavelmente era o brilho que ele tinha visto na noite anterior.
Fernan não podia acreditar que havia energia elétrica por ali e Laika não tinha a menor ideia de como isso era possível. Com certeza vinha da cidade que estava enterrada na areia.
Ela pegou um pouco de água em uma lata e a colocou no fogo, depois picou legumes e os cozinhou. Era o jantar, e Fernan comeu com ela, e Laika achou incrível que um andróide pudesse comer.
Os dois conversaram por um longo tempo, Fernan contou a sua história, falou sobre Thera e sobre Nathaly e sobre a guerra que acontecera depois. Ela lhe falou sobre sua vida ali e sobre a cidade que estava sepultada no chão, e no final lhe pediu perdão por ter lhe dado um tiro.
Laika serviu um pouco de água. Fazia um bom tempo que ele não tomava, mas naquele momento aquela era a melhor bebida que havia no mundo.
Logo depois as criaturas do deserto começaram seu sinistro lamento e os dois ficaram ali, à contemplar o céu que, pela primeira vez em décadas, estava estrelado.
Fernan sentiu um toque gelado em seu peito e abriu os olhos. Sua visão adaptada à total escuridão viu Laika completamente nua se esfregando nele.
Ele sabia o que ela queria. Era o que ele também desejava.
Eles não disseram nada, apenas fizeram amor, e depois que a coisa acabou ficaram ali abraçados, Fernan fazendo carinho nos cabelos de Laika, tentando esvaziar sua mente, tentando digerir o fato de que não poderia deixá-la ali quando partisse. Teria que levá-la consigo, e se houvesse realmente uma terra longínqua chamada Darkelan e lá houvesse um portal para Marte, os dois iriam juntos, e lá construíriam uma cabana no campo, e realizariam o sonho de Nathaly: cultivar hortaliças. Coincidentemente era exatamente aquilo que Laika fazia ali, ela cultivava hortaliças em sua pequena horta.
Estava decidido, amanhã, pela manhã, ele partiria, e Laika iria com ele.
Laika suspirou e levantou-se.
- Onde vai?
- Vou mijar.
Ela saiu da choupana e fechou a porta.
Fernan ficou ali, na escuridão, perdido entre seus pensamentos.
Alguns minutos se passaram, ele não tinha ideia de quantos. Ali, naquele mundo caótico, o tempo pouco importava. Fernan sentiu algo, parecia uma onda sonora, um silvo quase que imperceptível.
Ele sentou-se na escuridão.
- Laika. Tudo bem ai?
Silêncio, havia apenas aquele ruído, e algo errado em meio à ele.
Fernan ficou em pé e vestiu-se. Pegou a arma de Laika do chão e caminhou até a porta.
- Laika.
Ele resolveu usar sua visão de raio X e viu através da porta, e o que viu foram espectros luminosos.
Havia milhares deles. Cobriam o deserto até onde a visão podia alcançar.
Laika estava flutuando no ar, os braços abertos. Parecia estar sendo sugada por aquelas coisas.
- Laika!
Fernan meteu o pé na porta e saiu atirando.
Viu que a fogueira estava apagada, por isso as criaturas que habitavam o deserto infestavam o lugar.
- LAIKA!
Os olhos de Fernan se tornaram duas lanternas que agora iluminavam o lugar.
Criaturas grunhiram, assustadas com a luz. A luz parecia feri-las. Laika foi solta e despencou no chão.
Fernan disparou mais uma vez acertando uma das criaturas que fugiu assustada e emitindo aqueles sons estranhos e sinistros. Ele correu para acudir Laika que jazia no chão muito ferida.
- Laika! Óh meu Deus! Diz alguma coisa! Você está bem?!
Mas ela não estava. Fernan viu ferimentos terríveis, e havia muito sangue.
- Merda!
Ele disparou com a arma de Laika até esgotar a munição. Atirou-a longe e acionou a arma em sua mão.
Então ouviu um som estranho, e, de repente, o chão começou a tremer.
Com aquele som a luz não mais feria as criaturas, agora elas pareciam se fortalecer, e fechavam o cerco sobre eles.
Fernan sabia o que elas podiam fazer. Elas invadiam a mente e sugavam pensamentos; elas se alimentavam de pensamentos e jogavam a alma na escuridão. Ele não tinha uma alma, mas Laika sim, ela era uma nascida.
Houve um estrondo ligeiramente amorfo, e a areia há uns duzentos metros de distância explodiu numa cratera, de onde mais criaturas começaram a surgir.
Estavam em toda parte, e ele sabia que sua arma não seria suficiente para detê-los.
Fernan ergueu Laika do chão e a envolveu num abraço. Então acionou o modo nave em seus controles. A última vez que tinha usado aquele recurso tinha sido há muitos anos, e a passageira tinha sido Nathaly.
Em segundos Fernan se transformou em uma máquina voadora e alçou voo, indo em direção ao norte, deixando para trás as criaturas de deserto que se devoravam em seus lamentos.
Fernan encontrou uma cidade ao norte e era um lugar morto.
Ele precisava de uma máquina reconstrutora, precisava daquilo mais do que tudo.
Sua cpu mapeou a cidade fantasma e encontrou formas de vida, e eram hostis.
Havia um hospital, ele pousou ali e carregou Laika nos braços até a sala de operações onde a máquina reconstrutora estava.
Mas não havia energia em qualquer parte daquele lugar.
Fernan se desesperou. Ele simplesmente não podia aceitar a ideia de perder a vida de Laika, uma nascida; uma vida que não tinha sido construída, mas sim gerada em um ventre, e isso depois de o mundo ter passado. Laika era uma jóia, era a coisa mais preciosa que havia no mundo, ela era a esperança para o caos, mas estava morrendo, e não havia energia para ligar a máquina que podia salvar sua vida.
Fernan pensou em usar uma de suas baterias. Rasgou o peito com uma lâmina que encontrara por ali e arrancou a bateria, mas a energia não foi suficiente. A retirada da bateria apenas abreviou seu próprio tempo de vida.
No fim, ele caiu desolado e chorou ao lado de Laika.
Fernan abriu os olhos e era dia.
Laika estava morta.
Assim era a vida, apenas um fio, e aquele se rompera. Ruíra-se a esperança.
Talvez fosse apenas ilusão. Não havia esperança para o mundo.
Fernan ajeitou as mãos dela sobre seu peito e lhe deu um beijo.
Ficou ainda um tempo a contemplá-la e depois saiu dali.
As criaturas que havia detectado haviam se evaporado. A cidade estava vazia e silenciosa. Era um cemitério.
Fernan saiu andando, em direção ao norte.
fim.