Super-Homem
O Sol, ou fosse lá qual fosse o nome da estrela, levantou-se rápido por sobre o ombro esquerdo de Neil.
Avermelhada, a estrela o teria transformado em cinzas, com seus raios gama e X, antes mesmo que seus olhos pudessem se abrir para vislumbrar o amanhecer daquele estranho planeta. Para evitar isso servia a parafernália pressurizada. Na verdade um exoesqueleto que lhe permitia manobrar em qualquer direção, levantar toneladas, caminhar e voar.
De fora, parecia um ser humano quase comum, com uma roupa justa e um capacete. Um homem musculoso, de uns 3 metros de altura, mas um homem. O exoesqueleto era a prova da engenhosidade e da inteligência de uma raça que nascera, há milênios, no terceiro planeta de uma outra certa estrela, de uma certa galáxia, perdida lá nos confins do universo... Era, também, a prova maior da fragilidade destes seres.
Neil sentiu um calafrio, quando este último pensamento passou-lhe pela cabeça. Neil seria o primeiro homem a pisar neste planeta de segunda classe, descoberto ainda no século passado. Seria também o único.
Neil... Seu nome era uma homenagem, de sua mãe, ao primeiro homem a pisar na lua. “Teria ela ter pressentido?”, indagou-se, enquanto ajustava a velocidade de descida.
Em instantes, pisaria no solo árido de Alfa 27. Seria, como seus antecessor e xará, o primeiro homem a pisar num outro solo que não o terráqueo. Claro, haviam as conquistas dos planetas do Sistema Solar. Todos tiveram seus primeiros, mas Neil, o Armstrong, fôra o primeiro homem a pisar num solo não o terráqueo. E Neil, o Everside, seria o primeiro a pisar no solo de um planeta fora do Sistema Solar.
De certa forma, este ineditismo os ligava. E Everside gostava deste sentimento. O baque surdo dos retrofoguetes nos membros inferiores fê-lo sobressaltar-se. Estava há menos de 2 mil metros do solo e começava a fase final da descida. Dali até o chão apenas deveria controlar a velocidade para poder voar por sobre o solo, analisando e escolhendo o melhor local de pouso.
Este era o grande trunfo dos exoesqueletos: davam liberdade total; davam suporte de vida em qualquer situação; aposentaram as naves (menos as de carga e as enormes orbitais); tornaram, também, solitárias as viagens espaciais. Por um lado, os altos custos da roupagem e das estações de suporte e por outro a auto-suficiência que permitiam, desestimularam os governos unidos da Terra a enviar naves com tripulações completas. Principalmente quando as viagens eram de longa distância, como a empreendida por Neil Everside.
Os robôs também cumpriam bem seus papéis. Mas, no limiar do terceiro século da era espacial, ainda não haviam inventado máquina melhor que a humana. Por este conjunto de razões, os super-homens, como eram conhecidos os solitários tripulantes dos exoesqueletos, eram a melhor solução para a exploração espacial. Partiram 10 deles da plataforma espacial de Netuno, no dia 11 de julho de 297EE.
Neil faria a viagem mais distante. E também a mais perigosa. Seria o pioneiro a cruzar o espaço em direção a um planeta numa outra galáxia. Todos os demais fariam incursões de no máximo 20 anos terrestres e retornariam à Terra como heróis. Neil viajaria 100 anos terrestres, à velocidade próxima à da luz. Fora escolhido para ser o primeiro ser humano a visitar uma galáxia vizinha. Mas pagaria o ônus. Quando retornasse, estaria, no máximo, uns 10 anos mais velhos, mas na terra e em todo o sistema que adota o tempo terrestre como medida, teriam se passado mais de 200 anos. Certamente teria sido esquecido. Ou as viagens espaciais já não fossem tão importantes. E com certeza a tecnologia dos super-homens já estaria ultrapassada... Mas não importava, tinha que ser feito.
Os retrofoguetes fizeram Neil girar para a esquerda, enquanto controlavam sua descida. Everside ajustou os controles e começou a observar os montes, os vales, o terreno onde pisaria. Deveria escolher como todo cuidado. Qualquer erro e poderia colocar a primeira missão da Terra a um planeta tão distante em perigo. Gostaria que sua mãe estivesse ali naquele momento. Gostaria que a Terra pudesse vê-lo pela televisão, como viram Armstrong. Gostaria de estar na internet ao vivo. Gostaria de não estar tão sozinho. Se ao menos fosse possível a comunicação com algumas das bases planetárias poderia dizer: “Estou vivo. Cumpri a missão. Estou em Alfa 27. É um planeta desabitado e árido, como suspeitávamos... “
Árido?
De repente, Neil percebeu, no canto direito do visor, uma região esverdeada, como um gramado. E nuvens... A 200 metros do solo, podia perceber um arremedo de atmosfera se formando. Era como se Alfa 27 estivesse em transformação. Uma Terra bebê. No canto esquerdo, um piscar vermelho não lhe chamou a atenção. Indicava uma falha no conversor de oxigênio.
A risada de felicidade de Neil ecoou em seus ouvidos solitários. No Sistema Solar, só saberiam da boa nova uns 10 anos depois, quando chegassem as primeiras transmissões. Ninguém no universo, naquele momento, poderia sequer suspeitar... Apenas ele, Neil Everside, sabia: Alfa 27 estava em formação e poderia ser habitável em poucos anos. Talvez, quando retornasse a próxima missão, a partir das informações enviadas por Neil, já fosse possível aos super-homens retirarem seus exoesqueletos e respirarem livremente no novo planeta, sem a necessidade dos conversores.
Neil voou para a região esverdeada que parecia promissora. Se era clorofila o que via. E se as nuvens que se formavam naquele núcleo, fossem, como suspeitava, de vapor de água, ele havia conseguido: seria, como o outro Neil, o precursor de uma era. Everside não havia pensado numa frase de efeito para ser dita no momento em que pisasse em solo Alfa. Nem adiantaria. Ninguém o veria ou ouviria.
O solo esverdeado aproximou-se de seus pés. Era algo como o gramado macio de sua casa. A lembrança da infância fê-lo marejar o olhos. Chovia uma garoa fina em toda a região, num raio de 10 quilômetros. E todo o complexo estava expandindo-se, segundo indicavam seus equipamentos. Era como se uma semente de vida tivesse sido depositada naquele planeta árido e o estava transformando. Ou uma praga verde, consumindo o terreno antes árido.
Neil voou por toda a extensão. Era maravilhoso o que via. E a primeira impressão que teve, fê-lo arrepiar-se: podia sentir ali, naquele planeta, a presença de Deus. Era como se Ele próprio tivesse ali plantado mais uma semente da vida, como por certo deve tê-lo feito na Terra há milhares de anos. Alfa27, em breve, seria uma nova terra. Diferente apenas por seu sol avermelhado e seus dias de 12 horas. E seus habitantes, fossem terrestres ou nativos, sequer perceberiam qualquer diferença. “Deus existe!”, emocionou-se Neil, pairando a poucos metros acima de uns arbustos que cresciam se enroscando uns nos outros...
“E se Deus existe”, imaginou Neil, “deveria ter estado ali há pouco tempo. Ou ainda estava!...”
Os jatos de plasma impulsionaram Neil em direção ao ponto onde, segundo os cálculos do equipamento, seria o início, o nascedouro da vida. Ali deveria estar Deus trabalhando...
O sinal vermelho continuava piscando, mas não era mais importante. Neil não pensou mais na distância que o separava da Terra, nem na perda dos amigos e familiares. Pela primeira vez comemorou ter sido escolhido para a missão mais distante e perigosa. Deus estava ali. Podia senti-lo. Em breve poderia vê-lo.
Pousou à margem de uma planície que não tinha mais de 300 metros de raio. Os instrumentos continuavam indicando aquele como o local divino, onde Deus trabalhava... Neil esqueceu-se de tudo que aprendera. Esqueceu-se que era o orgulho da esquadra e que fôra escolhido para aquela missão, por ser o “super-homem” de maior equilíbrio.
Tentou correr pela grama que crescia, mas o terreno, fofo demais para o pesado exoesqueleto, cedeu. Outra luz vermelha acendeu-se em seu visor. Agora indicando que o terreno não oferecia segurança e que deveria voar. A atmosfera, segundo os instrumentos, estava ainda em transformação. A clorofila reagia com os raios da estrela vermelha, produzindo o velho e bom oxigênio, mas ainda era irrespirável para os frágeis pulmões humanos..
Neil ignorou os avisos.
Continuou a caminhada, cambaleando por entre os arbustos nascentes. Uns 50 metros adiante, encontrou o início do que seria uma selva tropical no futuro. Pequenas árvores nasciam, crescendo rapidamente. “Em menos de 10 anos, todo o planeta seria habitável”, imaginou, sorrindo nervosamente. A cada passo que dava, mais Neil tinha certeza de que toda aquela transformação surpreendente tinha um ponto de partida. E que Deus estava ali, em algum canto, regendo a orquestra da vida.
Neil sentiu-se o ser humano mais privilegiado dentre todos os já nascidos e os ainda por nascer. Veria Deus... De repente, os equipamentos detectaram sons vindos de poucos metros adiante... Pareciam sons de máquinas. Mas Deus não precisaria de máquinas. Era o som da vida se formando. Neil queria presenciar aquilo. Queria ver, sentir, cheirar. Não queria mais sentir-se enclausurado naquela roupagem metálica.
Num lampejo de irracionalidade, bateu a mão no controle central no peito e ordenou que o exoesqueleto se abrisse. Os equipamentos ainda reagiram. O visor apresentou os últimos relatórios da instabilidade do solo e da vegetação e da composição química do ar. O sinal vermelho piscou pela última vez diante dos olhos de Neil Everside: o exoesqueleto abriu-se. E, de dentro dele, um ex-super-homem, minúsculo, franzino e branquelo pisou pela primeira vez em Alfa 27.
Deus o chamava.
Everside sequer respirou.
Correu os poucos metros que o separavam da presença Dele. Abriu as folhagens com as mãos nuas e deparou-se com a visão mais aterradora que jamais imaginara: Uma máquina. Negra. De cerca de 3 metros de altura e uns 10 de diâmetro, girava, espalhando gases e material químico... - “Deus é uma máquina?!” - Foi a última coisa a murmurar.
Estressado e sem oxigênio, o corpo frágil do primeiro terrestre a pisar outro planeta fora do Sistema Solar cambaleou. Jamais a Terra saberia de suas descobertas. Jamais saberia da verdade. Por uma fração de segundos, o cérebro de Neil tentou ordenar que retornasse ao exoesqueleto, mas não havia mais tempo. O corpo girou, já sem controle, e caiu batendo a cabeça contra uma placa metálica fixada no solo, como uma lápide.
Antes de perder definitivamente os sentidos, Neil ainda pôde ler o que dizia a placa:
Projeto de terra-formação
A partir desta data, o planeta Alfa27 passa a chamar-se
Everside1
Homenagem do povo da Terra ao primeiro dos super-homens a cruzar
o universo em busca de novas fronteiras fora do Sistema Solar: Neil
Everside, dado como morto em missão no ano de 376 EE.
Governos Unidos do Sistema Solar
Julho de 422EE