Lembrança Macabra
O pedido não era nada comum. Na verdade, ninguém soube reagir quando ousei fazê-lo! Ninguém esperava que fosse feito... Mas eu o fiz! Depois de ter minha cabeça transplantada para o corpo de meu clone, eu gostaria de levar, guardar comigo meu corpo original.
Normalmente ninguém se preocupa com o destino de seu corpo original, sem cabeça, depois de ser transplantado para o corpo do clone devidamente preparado para isto. A maior parte era descartada, incinerada, embora os mais saudáveis e novos fossem aproveitados para aulas de medicina, como bons modelos de corpos humanos sem cabeças. Para a maior parte dos estudos, a cabeça era mesmo completamente dispensável!
Mas eu queria manter comigo meu corpo original, depois do transplante. Afinal, ele era meu, não era? Foi meu durante boa parte da minha vida, pelo menos até aquele momento da minha vida em que minha cabeça fôra transplantada para o corpo do meu clone novo, devidamente preparado para isto. Diziam que um clone era minha cópia geneticamente perfeita, indistinguível do corpo antigo, mas... haviam particularidades impossíveis de se replicar numa cópia genética, não é? Cicatrizes que adquiri na vida, lembranças de eventos traumáticos. Isto permanecia na minha cabeça, transposta para outro corpo, mas como conciliar tais lembranças com evidências físicas na pele e no corpo que não haviam sido replicadas no clone, na cópia genética? Acho que era por isso que queria levar meu corpo original. Para preservar uma parte de minha memória que só estava registrada neste substrato físico, orgânico.
Todo mundo sabia que eu mantinha este corpo sem cabeça em casa, conservado em criogenia. Era repugnante vê-lo! Mesmo para mim, confesso! Foi por isso que providenciei para ele aquela prótese de cabeça. Imagem perfeita de minha cabeça original, agora bastante rejuvenescida por influência dos hormônios daquele corpo novo, reprogramando as células envelhecidas de minha cabeça original.
Não tenho vontade de ver sempre meu corpo antigo, congelado. Entendam... Estou feliz com minha vida nova! Mais o quê? Uns 100 ou 150 anos no corpo novo, com as possibilidades atuais da medicina? E depois? Me retransplantar para um novo clone? Eu gostaria mesmo, nesta época, de prolongar minha existência? Ninguém sabia. Na verdade, eu pertencia à primeira geração capaz de vivenciar esta possibilidade, esta primeira tentativa de imortalidade. Saberíamos conviver com isto? Ninguém sabia, era a primeira experiência neste sentido...
E haviam possibilidades novas surgindo rápido, a passos vertiginosos! Cópia de nossas mentes para substratos digitais, por exemplo, ao invés de suportes orgânicos. Muitos argumentavam que eram cópias, e não os originais, mas... qual a diferença? No meu caso, meu corpo atual era cópia do original. Minha cabeça, meu cérebro... enfim, minha mente, era a original? Neste exato momento, neurônios velhos estavam sendo substituídos por novos dentro de meu cérebro. Num futuro próximo não haveriam neurônios velhos, sendo todos substituídos por neurônios novos desempenhando perfeitamente a função dos antigos. Continuarei então sendo eu mesmo? Com meu cérebro original quase que totalmente dissolvido e substituído por um novo, cópia do primeiro?
Pensando desta forma, acho que não faz mesmo diferença se meu cérebro original é copiado organicamente na forma de neurônios novos ou se é replicado digitalmente, como bits e bytes num substrato mais durável. SIm, talvez seja este mesmo o futuro da humanidade... Uma simbiose total entre humanos e máquinas, tornando-se indistinguíveis!
Mas contemplo meu corpo mais uma vez, com a cabeça artificial em seu topo. Sei que o deterioro cada vez mais sempre que o tiro da geladeira criogênica, mas não posso evitar. Nos libertarmos de uma vez do tecido orgânico? Migrarmos de uma vez nossas almas (seja lá o que isso signifique) para substratos digitais praticamente eternos? Copiáveis? Praticamente reprodutíveis ao infinito, enquanto dispusermos de energia para isto?
Olho de novo meu corpo novo. Lembro nostálgico da época em que a morte representava mesmo o fim, um limite além do qual nada mais podíamos fazer. Como deveria ser bem mais simples viver em tal época, né?