A validação

Wilmer Hasselblad, inspetor da Pesquisa Colonial, ergueu uma sobrancelha quando seu assistente, o gog Inwnungi, entrou apressadamente em seus aposentos em Arapa-IV sem se anunciar.

- Inspetor! Inspetor! Temos uma emergência!

O gog, uma criatura violeta que lembrava um pufe movendo-se sobre quatro pernas curtas e dotado de tentáculos, prosseguiu com sua voz ribombante:

- A sua esposa acaba de descer no planeta!

Hasselblad ergueu-se da cadeira onde estivera sentado, atônito.

- Mas eu não sou casado...

- Também achei estranho - ponderou Inwnungi. - Embora depois das suas experiências em Hargog, eu não deveria ficar surpreso.

Hasselblad engoliu um palavrão.

- Onde está a minha suposta esposa?

- Lá fora, com sua escolta. É grande demais para entrar aqui... e parece ser uma pessoa importante!

"Pessoa", pensou Hasselblad. "Mas que tipo de pessoa?"

- Ela deu um nome, Inwnungi?

- Nyahngareranyaa, se entendi direito.

Hasselblad engoliu em seco.

- A trazwuu...

- Vejo que se lembra, inspetor - trovejou o gog. - Não sou especialista em beleza trazwuu, mas ela me parece absolutamente linda. Aquela carapaça cor de bronze velho...

Da última vez em que ele e Nyahngareranyaa haviam estado juntos, recordou-se Hasselblad, ele fora parar no hospital. Envenenado.

* * *

O encontro deu-se ao lado da tenda que o inspetor ocupava como residência temporária em Arapa-IV. A escolta de sua suposta esposa era composta por uma dúzia de mercenários nyrks, criaturas de quatro braços, cauda bifurcada e quase três metros de altura. Os gigantes estavam cobertos por armaduras de combate e traziam armamento pesado. Aquela não era exatamente uma visita protocolar. Enquanto Hasselblad confabulava com o capitão dos nyrks, Nyahngareranyaa manteve-se à parte, muito digna e silenciosa, lembrando um louva-a-deus de seis metros de comprimento.

- Seu amigo, Gwanrahruahraevoo, o qual você representou no casamento por procuração com Nyahngareranyaa, está morto - explicou o capitão, através do Tradutor Universal que trazia pendurado no pescoço.

- Que tragédia! - Exclamou Hasselblad, chocado.

- Ocorre que a morte dele foi tramada por uma aspirante à rainha dos trazwuu, inimiga da família de Gwanrahruahraevoo. O objetivo era impedir que seu amigo levasse a ooteca à cerimônia de validação.

- Cerimônia de validação?

- As fêmeas trazwuu geram ovos num estojo, uma ooteca, que é presa ao dorso do macho. No caso de membros da nobreza, a ooteca é levada numa cerimônia formal de apresentação perante o Conselho das Fêmeas. Caso isso não seja feito, a prole de um nobre não é reconhecida e o direito da mãe de tomar assento no Conselho é contestado - comentou o capitão.

- Trata-se então de uma cerimônia basicamente política - ponderou.

- Exatamente. Ao eliminar o seu amigo, partiram do pressuposto de que não haveria como Nyahngareranyaa apresentar-se diante do Conselho, e assim requisitar seus direitos de herança. Mas, pelas leis trazwuu, se alguém se casa com uma trazwuu, mesmo que seja por procuração, ele se torna apto a representar a família dos mesmos na cerimônia de validação.

- Então... o que está me dizendo é que Nyahngareranyaa precisa que eu compareça com ela à tal cerimônia... com uma ooteca presa... onde?

- Nas suas costas - avaliou o capitão, dando-lhe uma olhada de cima para baixo.

Hasselblad desviou o olhar para a trazwuu. Ela permanecia imóvel, como uma escultura abstrata feita de bronze velho.

* * *

O capitão dos mercenários havia decidido que o mais seguro era chegarem em cima da hora à cerimônia em Mirvana-IV, pois assim não haveria tempo para revide. E desta forma procederam. Hasselblad teve que despir-se de parte do amor-próprio e da camisa, já que a ooteca - um cilindro marrom, lustroso, grudado às suas costas com uma espécie de cola biológica e pesando quase 20 kg - deveria ficar perfeitamente visível.

A entrada triunfal de Nyahngareranyaa no ninho subterrâneo onde se reunia o Conselho, precedida por seis dos seus mercenários, por Hasselblad e mais seis mercenários, causou rebuliço entre as presentes, já que só havia fêmeas ali. Seguiu-se uma troca de estalos, silvos e cliques frenéticos, entre a viúva de Gwanrahruahraevoo e as demais trazwuu. O Tradutor Universal parecia não estar dando conta do recado, e os fragmentos de conversa captados eram quase sempre de uma violência inaudita. Membros arrancados e decapitações deviam estar entre as expressões mais corriqueiras do vocabulário trazwuu.

Hasselblad aguentou a discussão que grassava ao redor dele, de pé, e em silêncio. Felizmente, a gravidade de Mirvana-IV era cerca de 50% menor do que a da Terra, o que tornava ligeiramente mais suportável o peso que tinha que carregar. Finalmente, lá pelas tantas, o círculo de fêmeas ao redor deles entrelaçou as longas antenas - com exceção de uma fêmea verde-metálica - e emitiram um silvo agudo.

- A validação foi confirmada! - Exultou o capitão ao lado de Hasselblad.

- Que bom... - comentou o inspetor. - Essa coisa nas minhas costas está começando a esquentar.

O capitão virou-se para ele.

- Vou avisar para Nyahngareranyaa que acelere a cerimônia... a ooteca está se rompendo.

- E isso é problemático?

- Bem... depois da validação, os machos colocam a ooteca no dorso de um animal vivo, que é devorado pelas larvas quando saem dos ovos.

Hasselblad começou a suar frio.

- Tire isso das minhas costas... tire isso das minhas costas...

E desmaiou.

* * *

Quando despertou, na enfermaria do cruzador nyrk, a primeira coisa que Hasselblad fez foi apalpar as costas. Elas estavam intactas, avaliou.

- Fique tranquilo, inspetor - disse em tom tranquilizador a enfermeira nyrk, uma criatura baixinha, de não mais de dois metros e meio de altura. - Não houve nenhum dano à sua estrutura.

- Muito gentil da sua parte informar isso... - respondeu, cautelosamente.

Felizmente, como explicou a enfermeira, os mercenários já haviam previsto a possibilidade da ooteca se romper e levaram um animal quadrúpede, típico do planeta, para servir de alimento para as vorazes larvas recém-nascidas. Em seguida, ele fora transportado de volta ao cruzador, o qual decolara para Arapa-IV.

- E o que vai ser feito de Nyahngareranyaa e sua prole? - Indagou Hasselblad.

- Eles vão ficar bem - ponderou a enfermeira. - Mas eu não gostaria de estar na carapaça da fêmea que tramou o assassinato do seu amigo. Muito provavelmente, ela vai perder a cabeça...

- Normalmente, são os machos quem perdem as cabeças pelas fêmeas - comentou o inspetor, fechando os olhos.

- Parece que as fêmeas trazwuu pensam de forma diferente - disse a enfermeira, diminuindo a luz do quarto. - Repouse. Nós o chamaremos quando tivermos pousado...

E Hasselblad adormeceu, e dormiu um sono, felizmente para ele, sem sonhos.

- [19-01-2018]