Carga

- Fico me perguntando porque estamos fazendo o trabalho dos... você sabe... cientistas.

Hanna Polczynska, uma loura grandalhona de cabelos encaracolados, oficial executiva do cargueiro classe M "Nan-Shan", riu do comentário de sua colega, a recém-chegada navegadora Rebecca Martínez. As duas mulheres tomavam café na penumbrosa ponte de comando da nave, após terem sido despertadas das câmaras de criossono onde haviam passado os últimos oito meses. O restante da tripulação seria acordado em somente mais dois dias, pois essa era a previsão de chegada à órbita de NR-416b, uma lua de massa terrestre orbitando o planeta gasoso NR-416, terceiro mundo da estrela LHS 349.

- Quanto tempo você tem de companhia, Rebbie? - Inquiriu Polczynska de forma brincalhona.

- Pelo tempo que passamos em criossono... sete anos, agora - foi a pronta resposta.

- A maior parte deles em bases planetárias, suponho.

- Sim. - Martínez ajeitou-se na cadeira, olhando pela tela de observação frontal para o céu lá fora. Contra o veludo negro do espaço, brilhavam constelações que lembravam as vistas da Terra, embora com duas diferenças marcantes: Arcturus era o astro mais brilhante, e o Sol apenas uma estrela obscura próximo de Sírius, na constelação do Cão Maior.

- Pois então, vá se acostumando: a companhia não manda cientistas quando pode usar caminhoneiros. Cientistas custam caro... nós somos... vou suavizar o termo... menos valiosos. Se descobrirmos algo que valha a pena ser explorado, aí sim, enviam cientistas. Às vezes.

Martínez ficou em silêncio, bebericando o café e digerindo a informação. Bom, ela só conseguira aquele emprego porque alguém morrera na tripulação anterior. Não tivera muito tempo para perguntar o que ocorrera, mas diante do exposto, não estava descartada a hipótese de que algo dera muito errado numa das tais missões de exploração.

- Mas eles pagam bem, não é? E o plano de benefícios é de primeira linha... - minimizou Martínez.

- Tente ficar viva, Rebbie. O plano de benefícios da companhia não vai valer nada se estiver morta.

- O que aconteceu com minha antecessora? - Indagou cautelosamente Martínez, pousando a caneca de porcelana no console à sua frente.

- Digamos que ela estava mais preocupada com o bônus extra do que com a própria segurança - atalhou Polczynska.

* * *

- A segurança deve vir em primeiro lugar - disse de forma enfática o capitão Wang Luoyang para sua tripulação, reunida ao redor da mesa do refeitório da "Nan-Shan". Luoyang, um homem baixo e atarracado de cerca de 50 anos, cabelo cortado rente, parecia a própria personificação de suas palavras: alguém seguro de si, e que difundia esta sensação entre seus comandados.

- Quando a equipe de inspeção descer em Baragon, - prosseguiu ele, usando o nome informal da lua terrestroide NR-416b - é importante que procedam com bastante cautela. Há um fenômeno ocorrendo na superfície que ainda não conseguimos explicar, mas no qual a companhia possui grande interesse. Pode ser, efetivamente, o primeiro sinal de vida inteligente fora da Terra que encontramos.

Os seis tripulantes ouviam em silêncio. Para Martínez, tudo era novidade, já que nunca participara de um grupo de desembarque num exoplaneta inexplorado, principalmente tendo a responsabilidade de pilotar a vedeta do cargueiro, o "Celestial", e conduzir o oficial de ciências, Bedyw Pryce, e a assistente de manutenção Kamile Umbraite, como co-piloto, até a superfície.

- Finalmente, - disse Luoyang encarando Pryce - ao menor sinal de que algo pode tornar-se perigoso, abortem a missão e retornem à nave. Pretendo voltar com minha tripulação completa desta vez.

Se a observação fora destinada à Pryce, ele não demonstrou sentir-se incomodado.

- As pessoas cometem falhas grotescas - observou placidamente o oficial de ciências. - Particularmente quando julgam estar no controle da situação.

- Baragon parece estranhamente terrestre, - acrescentou Luoyang - mas devem tomar muito cuidado com tal semelhança, pois pode induzi-los facilmente ao erro.

Ao pousar o "Celestial" numa vasta planície cortada por um rio, Martínez entendeu rapidamente o que o capitão quisera dizer. O céu era azul, pontilhado de nuvens brancas, a atmosfera possuía uma composição extremamente similar à da Terra (com cerca de 2% a mais de oxigênio) e a vegetação, verdejante, não destoaria se fosse transplantada para um bosque europeu. A única coisa invulgar na paisagem era uma outra vedeta, muito semelhante ao "Celestial", pousada próximo deles e meio encoberta por trepadeiras que haviam crescido sobre ela.

- Alguém esteve aqui antes de nós? - Indagou Martínez.

- Aquela vedeta está ali desde a nossa viagem anterior - comentou Pryce.

E desafivelando o cinto de segurança:

- Se você olhar mais de perto, vai ver que é, na verdade, uma cópia... grosseira... do "Celestial".

* * *

LHS 349, outrossim idêntico ao Sol da Terra, aparecia nitidamente maior no céu, visto que orbitavam muito mais próximo dele. E, em plena luz do dia, o planeta NR-416 era visível em quarto crescente, juntamente com seus anéis lembrando os de Saturno; no ar cálido, um perfume que sugeria tomilho e madressilva. Como presença de vida nativa, algumas aves de aspecto reptiliano e quatro asas, cobertas de plumas de um vermelho berrante, levantaram voo do mato alto, grasnando perante a aproximação dos três terrestres.

O grupo parou à uma distância de cerca de três metros da contrafação da vedeta e Martínez pode então constatar que o objeto só enganava mesmo visto de longe. Parecia feito de massa de modelar ou barro, pintado para sugerir que possuía escotilhas, portas e números de identificação.

- Quem fez isso? - Indagou Martínez, mãos na cintura.

- Nunca descobrimos - disse Pryce. - Acampamos aqui uma noite, e pela manhã, esta coisa estava aí.

- A imitação possui até mesmo uma rampa de acesso na parte inferior... e está baixada, como a nossa.

O interior da contrafação estava escuro e ninguém se animou a chegar mais perto.

- Foi assim que perdemos a sua antecessora - explicou Pryce. - Ela resolveu entrar para conferir se havia algo lá dentro.

- Não tentaram resgatá-la? - Inquiriu Martínez.

- Não houve tempo - suspirou Pryce. - A criatura afundou no solo, como se fosse uma toupeira... ou fosse feita de terra. Na manhã seguinte, descobrimos o esqueleto... limpo... sobre a superfície.

- O simulacro a devorou e cuspiu os ossos - falou Umbraite pela primeira vez. - Uma das coisas mais medonhas que já vi.

- E a companhia acha que isso é vida inteligente? - Comentou Martínez. - Parece mais um predador com capacidade de mimetismo...

Pryce riu baixinho.

- É curioso, mas a criatura me fez lembrar o "culto da carga", na Terra... é uma história do início do século XX...

Durante a II Guerra Mundial, explicou, nativos das ilhas do Pacífico, muitas vezes ainda na Idade da Pedra, haviam tido contato com os soldados das potências em luta e sua tecnologia superior. Aves de metal desciam dos céus e traziam comida enlatada, armas poderosas e roupas. Tudo aquilo parecia mágica aos olhos dos aborígenes, que, após a partida das tropas, tentaram inutilmente fazer com que retornassem, construindo campos de pouso e torres de controle de voo falsas, em meio à selva.

- Só que aqui, a criatura cria imitações da nossa tecnologia superior para nos devorar. Nós somos a carga!

- Veja! - Gritou Umbraite, apontando para a rampa de acesso da contrafação. - Algo se mexeu ali dentro!

Emergindo da escuridão no ventre da besta, viram com horror uma figura humanoide, corpo coberto por uma pintura cáqui que imitava um macacão da companhia, descer a passos trôpegos em direção a eles.

- [04-01-2018]