Sei que vou morrer

"Sei que vou morrer não sei o dia...". Assim começa Na Cadência do Samba de Ataulfo Alves. Aos que não conhecem a canção sugiro acessar o you tube, ou a internet quântica, afinal, a tecnologia avançara, ou apenas pensar, "sim", pois nesse novo tempo, estamos em 2049, pensar é o suficiente, para visualizar desejos, então pensem sim, Na Cadência do Samba e em Ataulfo Alves e vocês, filhos da nova ordem virtual irão ao encontro do passado. Acharão vários intérpretes: Cássia Eller, Noite Ilustrada, Nelson Gonçalves, entre outros, inclusive poderão dialogar com seus ancestrais, como se vivos estivessem. Sei o dia e a hora de meu fim. Morrerei no dia 20 de outubro de 2049, na passagem da zero hora do dia 19. Uma mulher, bela como a begônia que cuidei durante anos a fio, estará ao meu lado, acariciando os meus cabelos sintéticos. Será uma morte suave, indolor, pois eu a esperei com a brandura do idoso sem remorsos. A janela estará aberta, para eu contemplar, como fizera ao longo de meus noventa e oito anos, o céu cheio de estrelas e uma imensa lua cheia prateada. Sim, eu me desiludira com a revolução e me entregara ao hedonismo, que escandalizara  a turbamulta. 
   Meus últimos estertores começarão assim: na manhã do dia dezenove  de 2049 eu me levantarei trôpego, assim que o chip instalado em meu pulso anunciar que são sete da manhã em ponto. Tomarei meu café com leite e bolinhos de chuva sintéticos, logo após degustar uma salada de frutas: banana, maçã, mamão e morangos, cobertos com iogurte e cereais. Ah, com gotas de mel. Em seguida sentarei no banco, de frente ao nosso pequeno jardim de begônias, crisântemos, rosas... Estarei ouvindo Leonard Cohen em Dance Me to the End of Love, com imagens vindas das "nuvens". O Sol, que supostamente me aquecera à beira do jardim, não se furtará de se abrir com todo seu esplendor. Minha amiga e parceira de últimas horas, não tão jovem quando a conheci aos sessenta e seis anos, sentará ao meu lado, segurando minhas mãos, carinhosamente. Lembraremos nossos beijos e dos escândalos que provocamos no vilarejo conservador, por causa da diferença de idade e de outras estrepolias, como a de nos banharmos em lagos e cachoeiras do modo que viemos ao mundo. No dia de minha morte lerei, com saudades da mulher que me escreveu esses versos em uma folha de caderno esmaecida pelo tempo:

"O prazer em cores."

Cubra-se com o carinho que te dou.
Ame-se, ama-me . Me seduza.
Alcemos voo.

Me coma, com os olhos, com prazer.
Vista-se de fantasias, do cores.
Se alegre ao me ter.

Eu me alegro ao ser tua.

Até o "fim" tua.

   Não derramarei lágrimas, porque eu a amei verdadeiramente. Mas naquela ocasião eu estava confuso, rompi com ela, sem motivo, sem motivação. Foi uma ruptura dolorosa, como quase toda ruptura. Quando meu corpo desaparecer na imensidão cósmica, o poema estará dentro de mim, pois será mastigado letra por letra e ingerido. Ah, embora não me importe que me enterrem nu na terra boa, meu corpo será traslado, abduzido, se esse for o nome apropriado em 2049, para espaço sideral, contrariando as normas futuras, que regulamentaram o tráfego aéreo, tão congestionado por veículos espaciais.
      Algum leitor ou leitora atenta poderá se perguntar porque não dei o devido crédito a autora dos versos acima. Ora, porque ela os escreveu para mim. Sequer assinou. Segredo. Ela o escreveu no calor de nosso amor, na crença de que só a morte nos separaria. Importa mesmo é a mulher companheira desses trinta e três anos de cumplicidade nunca ter se incomado. Nosso amor, desde o início, foi e permanece livre dos grilhões dos falsos moralismos. Mas voltando ao dia de minha morte, saibam de antemão que um fenômeno irá mudar os paradigmas da vida quântica. A vida virtual de 2049, robótica espacial terá uma nova ruptura: A Terra, que fora habitada por marcianos, venusianos e seres de outros planetas irá se chocar no Sol. E para surpresa de todos, o astro rei, que por anos luz aquecera nosso planeta, não era quente como os cientistas afirmavam. Ao contrário, é gelado. De tão gelado, parecia quente. A Terra sim, estará quente, que os humanos, tal como o conhecemos hoje, passarão por uma mutação genética, para se adaptarem ao calor e a falta de água que se abaterá sobre o nosso planeta. Novamente, o leitor ou leitora atenta perceberá uma contradição e perguntará: como, nestas condições climáticas, tinhas jardins? Ora ora leitor sem imaginação. Em primeiro lugar, na ficção tudo é possível. Mas esclareço: as flores também passaram por mutações, assim como as poucas florestas existentes. Atente-se de que tudo passara por mudanças, para se adaptar. Haverá animais e plantações. As sementes germinarão em solo árido, mas isso acontecerá apenas para manter uma parte da humanidade, também conhecida por povo, ocupada, como sempre fora, e em estado letárgico. A alimentação será sintética, inorgânica. Não pensem que a escravidão será extinta. Será mais forte e alienante do que a descrita por George Orwell em seu 1984.  Os momentos de uma alegria aparente dependerão de seus pensamentos "sim". Pense positivo, pense positivo. E pensar positivo vai depender de seu comportamento, pois seu cérebro ainda não estará totalmente sob o controle da nova elite virtual. Seu pensar positivo é para mantê-lo distraído, com espírito nostálgico, tal qual hoje em dia, apenas mais sofisticado. Tudo isso será rompido quando a Terra chocar-se com o Sol em 2049 e eu partir.  Então a geração virtual desaparecerá, para dar lugar a uma vida diferente. Melhor ou pior, não saberei dizer.
    Mas pode ser que nada disso aconteça.  Esta premonição pode ou não se confirmar se algo for feito hoje, ou na próxima década, no máximo.  A Terra poderá continuar bela e habitável se a geração atual não se deixar iludir pelas "distrações" virtuais. A vida está em movimento e os senhores da guerra também. Precisamos detê-los antes de 2049. 







Imagem: Blade Runner 2049