A Cidade dos Mortos-vivos
Aqui estou escrevendo essas páginas, com caneta e papel, sob a luz de um lampião a querosene. Coloquei um crucifixo em cada um dos quatro cantos da minha casa, além de rosários e cordões de alhos nas portas e janelas. Já está quase escurecendo, e ao anoitecer é a hora em que eles, aqueles seres infernais, ficam ao redor da minha casa, batendo nas portas e janelas, e emitindo seus grunhidos bestiais.
Talvez eu seja a última pessoa normal dessa cidade. Aparentemente, todos foram tomados por uma espécie de loucura, epidemia, ou maldição. Essa ultima hipótese deve-se a um incidente ocorrido anos atrás, em que uma senhora insana, já a beira da morte, rogou uma praga à todas as pessoas da cidade. Tal incidente será contado por mim nesses escritos em alguns instantes, antes, porém, irei descrever como faço para sobreviver, como o ultimo ser humano vivo, aqui na infame Cidade dos Mortos-vivos.
Como qualquer pessoa, ao acordar de manhã, faço minha higiene e preparo meu café da manhã. Depois, vou até a garagem e faço algum exercício. Lá eu tenho vários máquinas e aparelhos ergométricos que roubei da academia: bicicletas, barras, alteres e muitos outros. As vezes, eu faço uma caminhada na rua, mas sair de casa é sempre um momento muito tenso. Mesmo que eles não costumam aparecer durante o dia, sempre levo uma arma comigo. Não dá pra ficar dando bobeira pra esses filhos da puta!
Após os exercícios, seu meus estoques de alimentos estiverem baixos, pego o carro e dirijo até um dos supermercados. Chegando lá, encontro o local abandonado e com as gôndolas intactas. Os seres do inferno nunca vão ali, pois, como todos sabem, comer é uma necessidade dos vivos e não dos mortos. Então simplesmente eu pego o que eu quero, coloco no carro e vou embora. Quem estiver lendo isso pode pensar: “Que maravilha! Ir ao mercado e não precisar pagar!”. Mas isso pode não ser tão bom, quando se é o único ser humano vivo em um raio de quilômetros, com milhares de malditos querendo a sua cabeça.
Além de alimentos, também saio à procura de outras provisões. Retiro gasolina dos carros abandonados ou dos postos de combustíveis. Coleto água potável nas gôndolas dos mercados, ou nas caixas d´agua das casas. Vou as livrarias, ou a biblioteca municipal, onde roubo alguns livros para aumentar cada vez mais minha biblioteca particular. A leitura é um das únicas, e melhores, diversões em tempos como esses. Ler histórias mais estranhas do que a que estou vivendo ajuda a não enlouquecer.
Ah! Já ia me esquecendo... sempre levo alguma garrafa de bebida. Não que eu seja alcóolatra, mas tomar um bom vinho junto ao jantar, um uísque que nos faz sentir abastado, ou uma cerveja nos dias quentes, são também coisas que me ajudam a não começar a agir como eles, se considerarmos a hipótese de loucura coletiva.
Enfim, após minhas coletas, volto dirigindo pra casa, onde fico o dia inteiro lendo, ouvindo música no rádio de pilhas, ou escrevendo alguma coisa, como estou fazendo agora. Não existe mais internet, água encanada, ou energia elétrica nessa cidade, pois, após a calamidade, todos os serviços essenciais foram cortados. Creio que isso ocorreu apenas aqui, pois, às vezes, sintonizo estações de rádio AM de outros locais do país, e tudo parece estar normal.
Mesmo assim, apesar de tudo, tenho medo de deixar a cidade. E isso pode soar meio estranho para quem lê esses escritos. “Se a calamidade ocorreu apenas naquela cidade, por que ele não vai embora daí?”, pode se perguntar o leitor. Mas, ao menos para mim, esse medo faz sentido, se considerarmos a hipótese de maldição.
Enfim, chegou o momento de explicar qual fora a tal maldição que, como falei anteriormente, foi rogada no povo dessa cidade alguns anos atrás...
***
Era uma pacata cidade do interior do Ceara chamada Hiamanguá. Nela, os dias pareciam todos iguais, pois muito raramente ocorria algo de inusitado, e quando acontecia, virava motivo de fofoca e debate por vários dias entre os moradores do lugar.
Localizada em cima de uma chapada, era a maior cidade da região. Muitos moradores orgulhavam-se em dizer: “Hiamanguá é a capital da Serra!”, como se isso significasse alguma coisa. Devido ao clima ameno, a cidade tinha uma grande produção de frutas e verduras, talvez a única atividade comercial que era capaz de prosperar ali.
Andando pelas ruas do centro comercial, podíamos ver grandes lojas e comércios, porém todos viviam vazios. Raramente haviam clientes, pois as pessoas nunca tinham dinheiro, porque a cidade não tinha empregos, pois as lojas nunca tinham clientes... E assim perpetuava-se um ciclo vicioso de miséria e estagnação.
Haviam até algumas grandes lojas de departamentos e franquias de grandes redes. Tais estabelecimentos ocupavam grandes galpões e mantinham uns poucos funcionários, trazendo alguns dos míseros empregos que haviam na cidade. Porém, mesmo esses grandes empreendimentos, caíam também na miséria econômica típica daquele lugar e passavam os dias com uma quantidade mísera de clientes. Curiosamente, aquelas grandes lojas não iam embora. Lavagem de dinheiro? Talvez!
As poucas pessoas que tinham algum dinheiro naquela cidade eram, em geral, funcionários públicos, comerciantes de frutas e verduras, ou aposentados. O restante, vivia de auxílios do governo.
Sendo assim, Hiamanguá era uma cidade para quem não tinha mais esperanças na vida, que procurava um lugar tranquilo para passar seus últimos dias. Um lugar pra quem já estava com “o pé na cova”.
Dentre os miseráveis que tiveram o azar de terem nascido naquela cidade, havia uma mulher chamada Maria. Uma maria entre as outras incontáveis Marias do Ceará. Seu pai, antes dela nascer, havia vindo morar em Hiamanguá durante a grande seca de 1915. Época em que o pequeno povoado, que antes nem sequer tinha nome, recebeu incontáveis retirantes atraídos pelo clima frio, e cresceu bastante.
Seu pai abriu um pequeno comércio que vendia um pouco de tudo. Tinha talento para os negócios e logo se tornou um dos maiores comerciantes da região. Naqueles tempos remotos, ainda havia um pouco de prosperidade econômica na cidade.
O comerciante teve duas filhas, Maria e outra mais nova, que morreu com poucos anos de vida devido a uma doença crônica. Maria foi criada com o melhor que o dinheiro poderia comprar. Porém, faltando apenas um ano para sua festa de quinze anos, iniciou-se a ruína econômica do seu pai.
Seu comércio perdeu quase toda a clientela devido aos inúmeros outros comércios que haviam se estabelecido na cidade nos últimos anos. Vendo a prosperidade do pai de Maria, várias outras pessoas, movidas pela inveja, abriram também seus comércios e passaram a vender os mesmos produtos.
Assim fora e assim sempre seria ali, na Cidade da Inveja: se alguém abrisse um negócio e prosperasse, vários outros também abriam o mesmo tipo de negócio. Qualquer atividade mais rentável era alvo da cobiça dos invejosos, fazendo com que todos continuem, como porcos, chafurdando para sempre na lama da miséria.
Maria não teve festa de debutantes. Não teve universidade particular. E nem um dote para que pudesse arranjar um bom marido. Seu pai fora reduzido a um mísero comerciante de grãos e galinhas no mercado municipal. Suas belas roupas trazidas da Capital, foram dando lugar aos vestidos esfarrapados confeccionados pelas costureiras da região, com suas costuras irregulares, pareciam ter sido feitos por mãos de mulheres mortas de preguiça e desleixadas.
Seus produtos de beleza foram deixando de existir e sua alimentação foi se tornando mais escassa, pobre dos nutrientes essenciais. Dessa forma, Maria, que tinha tudo para ser uma das jovens mais cobiçadas da cidade, foi definhando a cada dia, até se tornar uma das inúmeras miseráveis que ajudavam seus pais em suas barracas de feira no Mercado Municipal.
Imagine quão grande deve ter sido o choque para Maria, criada como princesa, estar trabalhando de Sol a Sol na feira, entre sacos enormes de arroz, feijão, farinha, café e diversos outros condimentos. Ela e seu pai gritavam aos passantes:
- Olha o arroz!
- Ó o feijão!
- Quer comprar café, moça?
Então o freguês chegava. Pedia a quantidade de farinha ou arroz que queria, e Maria retirava os grãos com um dosador, colocava em uma balança e ia acrescentando, ou retirando, até que se completasse o peso exato. Fechava o embrulho e entregava ao cliente, que pagava e ia embora.
- Obrigado. – As vezes dizia Maria, e outras vezes não dizia nada.
Ela sabia que Hiamanguá era um lugar para quem não tinha mais esperanças na vida e, dessa forma, sonhava em um dia embarcar em um desses ônibus interestaduais que saíam semanalmente da praça da cidade, em direção as maiores cidades do país: Rio de Janeiro ou São Paulo, lugares em que diziam que se ganhava muito dinheiro.
Tentava juntar o pouco que ganhava dos seus mínimos rendimentos na barraca de seu pai, mas, todas as vezes em que falava nos planos de ir embora, sua velha mãe ou seu velho pai tentavam convencê-la de que não o fizesse, contavam mil e uma histórias de pessoas que haviam ido para esses grandes centros e que jamais retornaram, ou que voltaram mais pobres do que quando haviam ido. Chegavam até a fazer chantagens emocionais:
- Ahh! Minha filha! Mas vai deixar sua velha mãe sozinha?!
Ou repetiam o ridículo jargão daquele lugar:
- Quem bebe da água de Hiamanguá, nunca mais quer sair!
Dessa forma, Maria ia ficando. Quando juntava algum dinheiro, acontecia algum imprevisto que a fazia perder suas economias: Uma reforma na casa em que viviam, um golpe que fora aplicado por algum estelionatário na barraca da feira, um roubo das mercadorias, entre outros.
Sem falar das vezes em que seu pai, sabendo que Maria guardava algum dinheiro, pedia emprestado e pagava muito aos poucos, conforme os míseros trocados que conseguia apurar na barraca. O que desestabilizava completamente as economias da moça.
Apesar de sua vontade de ir embora, Maria acabou chegando à meia-idade sem nunca ter saído daquele lugar miserável. Talvez devido as circunstâncias acima citadas, ou devido ao fato de ser uma Hiamanguaense, e o gene da acomodação e da preguiça estar presente em seu DNA desde que ela havia nascido.
Chegou aos quarenta anos ainda trabalhando na barraca de feira, sozinha, enquanto seus velhos pais estavam doentes em casa. Doenças que chegam com a velhice e que, ao contrário das enfermidades quando afetam pessoas jovens, estas vão piorando à medida que o tempo passa. Sua mãe foi a primeira a ser levada pelas asas da morte, e seu pai continuou doente, com leves melhores, mas que logo piorava.
Seu pai conseguiu se aposentar como agricultor, mesmo nunca tendo contribuído com a previdência social ou nunca ter exercido essa profissão, mas isso era prática comum aos velhos daquele lugar. E, com isso, Maria pode deixar de trabalhar na sua barraca, que nos últimos tempos vendia menos do que nunca.
Liquidou seus mercadoria, vendendo-as por valor mais baixo do que o próprio custo para outros comerciantes. Contou todo o dinheiro que conseguiu apurar: 50 reais! Míseros cinquenta reais eram o saldo de todos aqueles anos de trabalho!
Não havia mais esperanças! Fora mesmo condenada à uma vida de miséria. Passava os dias em casa, cuidando de seu pai doente, esperando o dia em que também iria se aposentar como agricultora, e o dia em que o anjo da morte chegaria para ela.
Maria foi se tornado uma pessoas cada vez mais amargurada. Viu os seus poucos sonhos sendo levados pelas águas barrentas da mesma vala em que corria a miséria, a acomodação, a preguiça e a procrastinação.
Acabou perdendo o pouco que ainda restava de sua sanidade mental. Passava os dias nas ruas, proferindo maldições e xingamentos a tudo e a todos, contra a cidade e seus habitantes:
- Maldito seja esse lugar! Eu amaldiçoo essa cidade e todos vocês! – Dizia ela, no meio da rua a quem quisesse ouvir – “Quem bebe da água de Hiamanguá não quer mais sair” – Ela arremedava as pessoas que diziam o jargão – Então essa água tá envenenado, só pode! O veneno é se tornar acomodado e preguiçoso! Não veem que tudo isso é uma merda?! Porque não vão embora daqui?! Preferem morrer na miséria? Malditos sejam!!!
Naquela cidade não haviam hospícios. Na verdade, todo aquele lugar era um grande hospício a céu aberto. As pessoas passavam por ela na rua e pensavam: “Coitadinha... Perdeu o juízo.” E seguiam em frente, pois ali os casos de insanidade eram tão comuns quanto atropelamentos ou alcoolismo, algo banal.
Maria mal comia e quase não dormia. Era considerada como o caso mais grave de insanidade dos últimos anos. Piorou tanto que chegaram a pensar que um espírito havia se apossado de seu corpo. Chamaram um padre que, por sua vez, mandou que alguns homens a tirassem da rua e levassem a força para casa.
Chegando lá, mandou que a amarrassem na cama e o padre fez um ritual de exorcismo. Mas não adiantou, pois Maria continuava proferindo maldições e impropérios a todos os que estivessem na sua frente. Nem mesmo o padre escapava de sua fúria.
- Sai daqui! Não tenho espírito nenhum! Vá exorcizar todos os outros moradores da cidade, menos eu! Em todos eles o demônio da preguiça e do comodismo já devorou suas almas! VÁI!!!
Logo a insanidade se tornou tão intensa que Maria já não era mais capaz de elaborar sentenças como a que acabamos de ver. Ao invés disso, passava os dias balbuciando ou gritando coisas sem sentido. Além de definhar cada dia mais. Todos sabiam que seu fim estava próximo.
Ao contrário de Maria, seu velho pai recuperou-se completamente de suas enfermidades e passava os dias cuidando de sua filha. Não sentia-se muito triste, pois aquele lugar era capaz até mesmo de mortificar as pessoas, fazendo-as com que nunca sentissem grandes alegrias ou grandes tristezas.
O velho ouvia indiferente os balbucios incompreensíveis da filha, que se repetiam dia e noite. As vezes tentava interrompê-la ou conversar com ela, mas Maria não lhe dava a menos atenção, como se estivesse em outro mundo.
Então certo dia, Maria aparentava ter ficado boa novamente. Saiu da cama foi até a mesa do seu pai, que tomava seu café da manhã.
- Bom dia, pai – Disse ela.
- Ah... oi. Bom dia, filha. Quer tomar café? – Perguntou.
- Claro.
Maria sentou-se a mesa, comeu pães e tomou café junto ao seu pai, como a muito tempo não fazia. Permaneceram calados durante toda a refeição, mas seu pai sentiu-se feliz por ela, aparentemente, ter voltado a agir como uma pessoa normal.
Pouco depois, Maria tomou um banho e vestiu a roupa menos esfarrapada que tinha. Foi até a sala, onde seu pai assistia o telejornal.
- Vou dar uma volta – Avisou ela.
- Tudo bem, mas tenha cuidado – Recomendou o pai.
Algumas horas depois, ela voltou acompanhada de alguns dos moradores da cidade, mais especificamente os que tinham coragem de acompanhar aquela louca, dentre eles o padre, as freiras e alguns fofoqueiros profissionais.
Vendo-os chegar, seu pai imaginou que eles, preocupados com a saúde da moça, vinham traze-la de volta para casa.
- Fiquem a vontade! Agradeço pela preocupação, mas acredito que ela já esteja completamente curada! O que estava mesmo precisando era de um bom descanso.
- Pai, trouxe-os aqui porque vou morrer hoje, e quero que anotem minhas ultimas palavras...
- Que isso, filha?! – Seu pai ficou atônito.
- Foi o que ouviu. Sinto muito, mas não há mais nada que se possa fazer.
Logo depois, a moça foi para o seu quarto e deitou-se em sua cama. As pessoas presentes a acompanharam. Ela pediu um copo de água e então, disse:
- Como já sabem, vou morrer hoje. Peço que anotem tudo o que irei dizer.
Uma das freiras pegou caneta e papel. Então Maria continuou:
- Nasci nessa cidade miserável e daqui nunca saí. Apesar de minhas tentativas, o destino sempre fazia com que eu ficasse. Sendo assim, eu amaldiçoo todos os vivem nesse lugar. Seguirei para o mundo dos mortos e serei a ultima pessoa que daqui conseguirá sair. A partir de hoje, todos os que aqui vivem, ou que aqui chegarem, jamais sairão.
A freira anotou todo o que Maria havia dito. Em seguida, a moça fechou os olhos e permaneceu imóvel. Tentaram acordá-la, mas viram que estava morta. As freiras fizeram o sinal da cruz, horrorizadas. O pai chorou um pouco.
***
Então essa foi a maldição rogada sobre essa cidade. “Quem aqui chega, jamais consegue sair”. O boato se espalhou pelo lugar, mas a maioria das pessoas não se preocupou, pois ninguém leva muito a sério as palavras de uma louca, mesmo que tenham sido as ultimas.
Dessa forma, a vida continuou seguindo normal ali na cidade de Hiamanguá. As coisas continuaram ruins e as pessoas continuavam miseráveis. Mas nada as impediam de fingirem que haviam enriquecido, de modo que muitos passaram a viver de aparências.
Para um visitante desavisado, que trafegasse pelas ruas do centro comercial, a grande circulação de carros de luxo, novos e caros, podia dar a impressão de que aquele lugar era cheio de riqueza e prosperidade. Poderiam nem ao menos desconfiar que a grande maioria vivia na miséria para sustentar aqueles luxos, empobrecendo suas refeições para conseguir pagar as infindáveis parcelas.
Como já foi dito, Hiamanguá era a Cidade da Inveja. Quando alguém comprava um automóvel de modelo diferente, vários outros adquiriam o mesmo modelo. Como também já foi dito, ali era um grande hospício a céu aberto, só pelo fato das pessoas continuarem na miséria enquanto tentavam manter suas aparências.
Eis que surgiram boatos de que a maldição da louca começava a surtir efeito. Pessoas naturais dali, que tinham suas vidas estabilizadas nas grandes cidades, de repente eram tomadas por um estranho impulso, fazendo-as com que liquidassem todos os seus bens e voltassem à viver em Hiamanguá.
Foi por esse motivo que vim parar nesse maldito lugar. Meus pais nasceram aqui mas viviam no Rio de Janeiro. Tinham bons empregos e uma vida estável, porém, de repente, o impulso também chegou para eles. Venderam nossa casa no Rio e viemos pra cá. Triste vida tem sido a minha: nascido na Cidade Maravilhosa ter vindo parar na Cidade da Inveja, do comodismo e das aparências.
Devido ao fato de meus pais terem retornado, ouvi muitas vezes os outros moradores proferindo o macabro bordão: “Quem bebe da água de Hiamanguá, nunca mais quer sair.”
Não demorou muito para que eu ficasse sabendo, através de um colega de escola, sobre a história de Maria e da maldição que ocorreu alguns anos antes. Não duvidei, assim como não acreditei, completamente naquela história. Sou agnóstico e tudo na minha vida é dessa maneira.
A cada dia que se passava, novas famílias vindas de outros lugares, mas que tinham suas raízes ali, voltavam para se estabelecer na cidade. Aqui chegando, vinham as ruas centrais repletas de carros de alto valor e imaginavam que a prosperidade havia finalmente chegado naquele lugar.
Com o dinheiro trazido das grandes cidades, montavam suas lojas e comércios, que passavam os dias com uma quantidade quase nula de clientes, condenando-as a miséria. Incontáveis estabelecimentos comerciais estendiam-se pelas ruas principais, após a chegada das famílias tomas pelo surto.
Então pouco tempo depois, eventos estranhos começaram a surgir que pareciam confirmar ainda mais a maldição. As pessoas não morriam mais. Quando achavam que alguém estava morto, preparavam todas as cerimônias, mas a pessoa levantava-se do caixão, durante seu próprio velório, e começava a caminhar feito um zumbi. Todos as pessoas presentes fugiam assustadas.
Isso repetia-se nos hospitais. Nos leitos de UTI os aparelhos de monitoramento dos sinais vitais alertava a morte do paciente. Porém, pouco depois, o morto-vivo levantava-se do seu leito e saía pelas ruas zumbificado.
Diante daquele caos, muitos tentaram deixar a cidade. Mas ao chegarem próximos da divisa do município, envolviam-se em graves acidentes. Seus corpos saíam das ferragens e voltavam rastejando para aquela cidade amaldiçoada.
“Quem aqui chega jamais consegue sair.” Nem mesmo para o reino dos mortos. De início, os moradores mais antigos do local não estranharam o fato de mortos-vivos andarem pelas ruas da cidade, pois aquilo não era muito diferente do que sempre havia sido.
Não acharam estranho até os zumbis começarem a lhes devorar. Assim como nos filmes, a pessoa mordida por aquelas criaturas torna-se uma delas.
Certo dia, mesmo com aquele caos, meus pais saíram para trabalhar e fiquei sozinho em casa. Então os zumbis bateram na minha porta. Na verdade não bateram, mas sim tentaram entrar a força. Como eu já havia lido o Drácula do Bram Stoker, imaginava que eles teriam medo da cruz, assim como o vampiro do livro.
Peguei o crucifixo que guardava embaixo da cama e apontei para os malditos. Dito e feito. Correram desesperados, como o diabo foge da cruz. Salvo por um livro. Afinal, sempre é bom ser culto, mesmo em meio a todos aqueles ignorantes.
Meus pais não voltaram mais. A cidade foi tomada por todos aqueles zumbis. As autoridades não fizeram nada. Ninguém dá importância para um lugar no interior do fim do mundo. Talvez queriam mesmo se livrar de toda aquela população que só dá prejuízo aos cofres públicos, vivendo de ajuda do governo. Talvez já tenham até desviado as estradas, para que nenhum desavisado caia no antro dos zumbis.
Desde então, levo a vida da maneira que expliquei no início dessa história. Sobrevivendo do que restou, consumindo o que os mortos-vivos não precisam mais. Poderia pegar o carro e ir embora, mas tenho medo de a maldição também tenha recaído sobre mim. Porém, um dia os recursos irão se esgotar e não me restará escolhas.
Mas enquanto isso, vou tentando sobreviver aqui na Cidade dos Mortos-vivos.
(...)
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