O soldado cybermnêmico

O maior segredo da guerra, é que ela nunca acaba. Mudam-se os atores, o cenário e as motivações, mas a guerra em si é eterna. Os que souberam se aproveitar dessa situação construiu verdadeiros impérios financeiros, controlando a indústria com suas nodosas mãos de ferro.

Às armas é o soma do neoliberalismo, uma espécie de última cartada, e não existe coisa melhor que um conflito internacional para livrar o mundo de uma crise econômica! A própria História demonstra o quanto os humanos dependem desse artifício para conti-nuarem suas vidas mesquinhas.

Depois dos dois episódios bélicos mais marcantes que este planeta já viu, duas super-potências mundiais, cada qual encabeçando seu bloco econômico, começou o seu expan-sionismo. As vastas fileiras imperialistas marcharam unidas para promover o medo e a destruição. A retroalimentação da guerra, através da perspectiva de uma nova catástrofe nuclear e o acirramento dos ânimos ideológicos, acabou formando o útero para que belo-na pudesse nascer mais uma vez, mais sadia e sádica.

Se em alguma ocasião houve orgulho de ser filho do Tio Sam ou do Tio Joe, com certeza foi esse o momento. Embora a cada choque militar o número de mortes fosse deixado de lado – para que de modo eufórico, os governos contabilizassem suas elásti-cas vitórias – a economia crescia a passos retumbantes.

Para as mentes mais céticas ou desinformadas, a indústria de base fornecia empregos e matéria-prima para exportação, as Forças Armadas compram novas armas e os governos enviam seus filhos queridos para derramarem seu sangue nos lamaçais do front. É quase sinérgico esse envolvimento de todos os setores na economia de guerra criada por Wo-odrow Wilson.

Mas a guerra como todo organismo vivo, tem a capacidade de evoluir como qualquer outro ser, enquanto a mídia sensacionalista levava as pessoas a olharem para uma fajuta corrida espacial, o EUA e a URSS construíam seus novos brinquedos bélicos. No entan-to, a inclusão da tecnologia trouxe não apenas um novo campo de batalha novinho em folha, mas também vários questionamentos. Dentre eles: como manter a comunicação e a transmissão de dados de modo instantâneo, acessível e seguro em qualquer lugar do mundo?

A criação da internet respondeu metade da questão, faltava ainda à segurança. Ban-cos de dados poderiam ser invadidos, hardwares roubados ou danificados, fora o alto custo de manutenção, além do risco do hackeamento... O Brasil resolveu assumir a cor-rida belicista apostando alto.

* * *

Akihabara é a meca da robótica e eletrônica no Japão. Lá, estudantes ginasiais reme-lentos podem roubar senhas bancárias de um Rotschild ou até mesmo vender armas-antissatélites criadas na garagem de casa.

Numa excêntrica viela do bairro nipônico, o grupo adentrou num largo portão de fer-ro. Embora tivessem o poder necessário para explodir todo o quarteirão, aquele percurso labiríntico e protocolar fazia parte do pacote do cyberterrorismo. Depois de inúmeros corredores sem qualquer tipo de referência dimensional, o conjunto de homens parou numa porta de cor verde-fosforescente entrecortado por um amarelo-pálido.

A porta de aspecto viscoso parecia mais uma membrana celular, e o modo como o amarelo escorria entre o verde, parecia-se com os borrões de tinta do Rorschach, um dos excursionistas apontou para a porta irritadíssimo e berrou:

— Mas que merda é essa PK?

— Uma recepção temática — disse PK debaixo de uma jaqueta de couro negra com capuz, ele liderava o grupo. — Não se preocupe, a porta vai se abrir em três, dois...

Slic, a porta começou a ser sugada por fissuras na soleira. Quando a ela sumiu entre os orifícios, os homens sentiram pela primeira vez que aquela viagem havia valido a pena. Do outro lado da porta, havia como que um paraíso eletrônico, centenas de gadgets, armas e programas que qualquer hacker gostaria de testar ao menos uma vez na vida re-pousavam no cômodo.

E no centro daquela infinidade de softwares e hardwares, havia o reflexo de um ho-mem, ele vestia um exótico quimono de seda branco. Sentava-se com os joelhos entrela-çados, fumava despreocupadamente um longo cachimbo. PK tomou à dianteira e entrou no recinto. O japonês que beirava os quarenta anos ergueu os olhos com ar cético e sol-tou uma baforada no ar.

— Finalmente pude conhecê-lo Gun-kun...

— Ouvi falar de uma sombra que rastejava no cyberespaço, mas nunca imaginei que ela fosse tão densa.

A meia dúzia de homens fortemente armados também entrou, mas não ousaram parti-cipar da conversa. Assistiam tensos à enigmática interlocução.

— Parece que meus sistemas de segurança se tornaram obsoletos — o olhar de Gun dirigido ao intruso foi rijo. Virando-se para o inesperado convidado, o nipônico alisou o seu rosto e soltou uma nova baforada, tossindo após a espiral cinzenta subir na atmosfera de clima asséptico. — Não me diga que veio me roubar em plena luz do dia?

O invasor sorrira, e sentando-se da mesma forma que o seu anfitrião, disse:

— Uma cerejeira me contou que um jovem hacker japonês havia conseguido uma pro-eza — os olhos do asiático se arregalaram — fenomenal, ele havia criado um sistema-invasor que poderia substituir as diretrizes de um programa, sem danificar os códigos originais, permitindo a inclusão de novas diretrizes operacionais, tornando a invasão de um programa imperceptível em qualquer nível, é incrível o que um pré-adolescente japo-nês pode fazer!

— Quem você acha que é? Kholberg? — indagou o velho.

De repente, como se fosse um fantasma, sua imagem começou a se evanescer e em seu lugar restou um garoto, com um folgado quimono branco. Ele apontou com o cachimbo para o intruso e indagou:

— Como descobriu meu truque?

— Seu cachimbo não tinha o cheiro de fumo — como o interlocutor não ficara satis-feito com essa resposta, ele disse: — Pra saber das coisas eu não preciso hackear tudo sabia?

Gun ergueu-se, sendo acompanhado por PK e os seus subordinados. Embora este fos-se um exército completo, às vezes precisava contratar mercenários para fazer o trabalho sujo, ou despistar as autoridades, toda guerra exige sacrifícios de alguns soldados rasos. Invadindo contas bancárias, ele conseguia o dinheiro necessário para contratá-los.

— Da próxima vez eu vou colocar camufladores odoríferos no holograma — voltando a encarar o seu interlocutor, ele falou: — Porque eu deveria te emprestar o meu brinque-do favorito?

— Porque você já tem muitos brinquedos? — embora este demonstrasse alguma sim-patia, seus porte militar e sua voz rascante davam a impressão contrária, agressiva, quase neurótica e depressiva.

— O Proteu não foi feito pra pessoas como você...

— Ao contrário, o Proteu é perfeito para mim.

Os expectadores daquela conversação entreolhavam-se, mais espantados pelo conteú-do do que pelos cavalheiros que discutiam.

— Está aqui, procure-o seu desgraçado? — e apontou o dedo médio para PK, que sorriu com uma falsa gentileza.

O garoto foi lançado ao chão, o som de costelas quebrando ficou ecoando pelo recin-to. Enquanto o jovem nipônico sentia a dor dos ossos perfurando os seus pulmões, PK retirou seu capuz e metade do seu rosto reluziu com um brilho cromado. Seu olho direito ficava cravado numa máscara de metal, muito polida. A pupila era rubra e tinha um lume vibrante.

No interior da mente do hacker, um estranho fenômeno ocorreu, a visão do seu olho simbiônico passou a ver o mundo de outro modo. As cores e as formas passaram a ser representadas por códigos binários. E o extenso salão passou a ser nada mais que núme-ros e fórmulas algorítmicas.

Mas naquele verdadeiro oceano de dados, o cyberterrorista encontrou o que tanto queria: o programa Proteu estava desabilitado no momento, mas havia sido usado num antigo terminal de PCs com telas de toque, com o intuito de aprimoramento do sistema. Ele conseguia rastrear qualquer programa com o mínimo de informação sobre ele.

Em 0,3 segundos, ele conseguia realizar 1 bilhão de consultas na internet e outros sis-temas particulares, sem com isso depender de qualquer rede. Era o futuro da humanida-de revestido num invólucro de passado detestável e indesejado. Quando terminou as análises, PK foi até o pequeno microchip de grafeno e o ativou no terminal.

A cópia do programa não demorou menos de um minuto para ser decodificado, e ago-ra o próprio hacker podia usar o Proteu. Os homens continuaram a assisti-lo, sabiam que esse não era o momento oportuno para incomodá-lo.

— Está feito — disse o criminoso com um tom de feliz na voz.

Quando se virou, seis armas de grosso calibre estavam apontadas na sua direção. Ele soltou um sorriso de deboche.

— Como conseguiram se aproximar tanto de mim? — o cyberterrorista ergueu as mãos.

— Prime Key, você está preso pelas acusações de cybercrime, traição, obstrução da justiça, terrorismo, assassinato...

— Eu não sabia que eu era tão mal agente Oliveira.

O agente secreto que liderava a equipe manteve a HK MP-7 PDW em riste. O líder da operação não repetira os erros das outras missões, ele não criara perfis falsos para a sua equipe, eles realmente trabalharam como mercenários.

As armas eram analógicas, para impedir que o criminoso fizesse um bloqueio eletrôni-co. A comunicação acontecia em cadeia de radio, embora limitasse o raio de transmissão, seria impossível o hackeamento da linha. Mesmo assim, o adversário conseguira acesso a sua identidade.

— Parece que alguém aqui fez o dever de casa direitinho. — Prime Key invadiu o sistema do complexo de Gun e acionou todos os protótipos do salão, eram robôs, drones e até mesmo armas experimentais. — Me diga como anda Brasília, a corrupção continua a mesma?

— Mantenha as mãos aonde eu possa ver, e não tente fazer nada...

Antes que o militar pudesse terminar, a cacofonia eletrônica soou no cômodo. Cente-nas de máquinas passaram a atacar os militares.

As balas começaram a chover. Embora não fosse difícil abatê-los, a quantidade de alvos chegava a ser irritante. O pequeno Gun havia desde muito cedo se tornado um expert na fabricação de armas e sistemas-invasores. Vendendo-as no mercado negro, muitas compradas ainda na fase de desenvolvimento.

Dentre todas elas, a que mais tinha afeição era um robô de aspecto humanoide, com armas embutidas e um exoesqueleto de kevlar. A criatura, depois de ativada, saiu do seu estado de stand-by como um titã, e munido de um lança-chamas no seu antebraço direi-to, incendiou os dois primeiros agentes que pegou de bobeira.

O oficial ocultou-se atrás de uma pilha de hardwares obsoletos. Aquilo havia sido inesperado, as habilidades do inimigo tinham sido subestimadas, como ele havia conse-guido invadir e controlar todos aqueles eletrônicos sem estar conectado a um terminal? Essa questão foi deixada de lado, pois ele estava preso numa ratoeira, lutando contra um robô piromaníaco.

— Alguém pode me dar cobertura? — perguntou o espião.

Ra-ta-ta-ta-ta, essa era a resposta que ele queria ouvir. Os remanescentes investiram com tudo que tinha, as balas de 4,6x30 mm com espessura de calibre .18 atravessaram o salão para se chocar contra o exoesqueleto do inimigo com 783 m/s. O robô revidou mu-dando seu armamento, os punhos se tornaram metralhadoras com projéteis explosivos.

O lugar começou a pegar fogo literalmente, o plástico e os outros materiais inflamá-veis aumentaram as labaredas rapidamente. Oliveira perdendo o seu alvo, estando acua-do com dois dos seus homens abatidos, não teve outra opção. Pegou uma granada-autoadesiva e lançou aos pés do robô.

— Abortar missão!

Maior que o grito dele, foi à explosão provocada em seu inimigo.

* * *

A praia de Copacabana era um memorial a céu aberto. Suas areias guardavam o san-gue de bravos militares que uma vez ousaram lutar contra um regime opressivo. O presi-dente Epitácio Pessoa havia se indisposto com o marechal Hermes da Fonseca, em 5 de julho de 1922, oficiais comandados pelo capitão Euclides da Fonseca, filho do mare-chal, tomaram o Forte de Copacabana. Incitando com isso a revolta de outros quartéis.

Dois dias após de sufocada a revolta, 17 jovens oficiais, aliado ao civil Otávio Correia marcharam pela Avenida Atlântica, indo confrontar-se contra as forças governamentais. Deste episódio, apenas dois sobreviveram: Siqueira Campos e Eduardo Gomes. Mas a memória do povo é ingrata, ninguém se importa com os heróis depois que eles morrem.

Vendo as mulheres de biquíni fio-dental nas areias quentes da praia carioca, o militar não se sentia como um daqueles heróis, ele sentia-se como um tolo. Ele perderá toda a equipe na evacuação do complexo japonês e a chance de capturar o Prime Key, uma verdadeira esfinge no mundo do cyberterrorismo.

A sede do Serviço Nacional de Informação ficava no Rio de Janeiro, embora não fos-se mais a capital do Brasil – pois perdera esse status no governo JK – ainda continuava sendo o centro político e militar do país.

No início, a agência estava voltada para a espionagem e repressão de grupos internos contra o Regime Militar iniciado com a deposição de João Goulart, no começo da déca-da de 60. Nesse mesmo ano, no dia 9 de abril de 1964, o Supremo Comando Militar, composto por membros das três armas, ascendeu ao poder e decretou o Ato Institucional nº 1. Em pouco tempo a Nação deixara de ser uma democracia para se tornar a maior ditadura da América Latina.

Um superior do SNI veio até Oliveira e o chamou com um gesto silencioso. Atraves-saram o indigesto corredor cheio de retratos de presidentes e militares enfurnados em seus uniformes. Os militares adoram ver suas imagens estampadas em quadros e fotogra-fias. Muitas das molduras havia um botão na parte de baixo, o qual após acionado transmitia um vídeo expondo a história daquele milico. Muitos dos relatos costumavam “exagerar nos feitos”.

Os dois chegaram ao fim corredor, e sem esboçar nenhuma reação, adentraram num elevador. A caixa de aço inox mostrou uma tela de toque em grafeno. A mãozorra do sisudo alto-oficial pousou nela e os números dos andares desapareceram, dando lugar a um scanner biométrico de luz verde-fosco. Todos os cinco dedos foram reconhecidos e o elevador ao invés de mover-se para cima ou para baixo, moveu-se para o lado, à moda dos caranguejos.

— Ouvi dizer que sua viagem ao Japão foi frustrada... — falou o militar de alta paten-te que acompanhava o cansado agente secreto.

— Nunca pensei que Akihabara fosse tão agitada — respondeu Oliveira.

— Ai está o motivo, da próxima vez tente Sapporo.

Depois disso eles desceram, e após chegar ao porão, ainda atravessaram cerca de mais cinco andares. O elevador se abriu e ambos caminharam por um corredor de luz branca e mortiça. Uma pesada porta metálica sustentava um novo leitor biométrico. O oficial e seu superior fizeram reconhecimento das digitais, voz e oculofacial.

A porta se abriu para um extenso e diversificado conjunto de setores do SNI. Em ca-da direção do prédio ficava um setor, a dupla se dirigiu ao setor de Desenvolvimento Tecnológico e Comunicação. Doutor Marcio já os esperava em sua sala junto com os alto-oficiais. Todos sentavam numa mesa oval, feita em madeira nobre, proveniente de algum desmatamento irregular na Amazônia.

Os recém-chegados sentaram prontamente nos lugares vagos.

— Bem, acho que não falta mais ninguém, então podemos começar hã?

Nenhuma objeção foi feita. Com um único toque na mesa, a sala diminuiu automati-camente sua luminosidade e os presentes puderam ver em um holograma o criminoso mais procurado do Regime Militar.

O doutor Marcio ajeitou o seu jaleco amarrotado, junto com seu cabelo grisalho e des-penteado, o cientista conseguia se tornar um alívio cômico entre aqueles homens cheios de empáfia. Apontando para Prime Key como se fosse um troféu que faltasse a sua cole-ção, ele pronunciou:

— Continuamos a precisar dele!

— Infelizmente o filho pródigo do marechal Vitório não conseguiu trazê-lo de volta pra nós — retrucou um enfarruscado almirante.

— O motivo de essa missão ter fracassado almirante Gusmão, é que os agentes não sabem com o que estão lhe dando — respondeu o marechal que acompanhara Oliveira até a reunião do SCM. — O agente Oliveira foi o único que enviamos até hoje, a chegar perto do Prime Key e continuar vivo.

Desde que o rosto anguloso do PK subiu no topo da lista de procurados, centenas de missões faliram e militares morreram tentando capturar o que já era considerado o maior cyberterrorista da história.

— Permissão para falar senhores? — perguntou o fatigado Oliveira.

— Permissão concedida — respondeu o marechal Vitório.

Ele ergueu-se, mantendo uma postura ímpar. Em seguida de uma sonora continência, passou a narrar o relatório da missão, sem alterar um ponto ou vírgula. O espião foi fria-mente técnico, as perguntas foram respondidas de chofre. Durante cinco anos, a equipe dele atuara como uma unidade mercenária e mudando suas identidades civis, tudo para serem contactados pelo PK.

Os cientistas da agência desenvolveram um receptor/transmissor de radio, que utili-zasse ondas curtas e pudesse ser usado em estações móveis, sem uso de satélite. Embora com todo esse esforço, o criminoso continuava incólume. E em plena virada do século, o maior procurado do Brasil estava livre e com todos os recursos para botar o seu mais ambicioso plano em ação, que embora fosse discutido a exaustão pelos militares, era ba-seado em vagas teorias.

O que se sabia até agora é que o cyberterrorista tinha posse de um satélite roubado da agência espacial da UE, um navio sonda soviético, o sistema-invasor do Japão, e diver-sos sequestros de cientistas, muitos do setor aeroespacial e telemático, mas tudo o que o SNI sabia se resumia a essas informações. O paradeiro do facínora era desconhecido, e sabe-se lá o que alguém com tanto poder poderia fazer com todos esses recursos em mão! Ele sozinho constituía um perigo em si.

As pressões das grandes potências já se faziam sentir muito profundas no país, o EUA e outros países capitalistas desejavam a extinção da ditadura militar, sob risco de o Brasil sofrer um embargo comercial se continuasse a alimentar sua máquina militar. Havia certo temor que o país se tornasse socialista, mas a verdadeira razão do assédio americano era a grande reserva de petróleo encontrado no pré-sal do litoral tupiniquim. Exceto pátrias de pouca expressão, o último país a se redemocratizar era o Brasil. Às portas do século 21, a Nação continuava submergida em corrupção e uma severa ditadura militar.

Embora os governantes aceitassem a extinção da ditadura, queriam se salvaguardar de uma investida de qualquer um dos blocos. E essa garantia se chamava Prime Key, ao menos, deveria ser. A busca pelo hacker estava um tanto difícil depois de mais de uma década, os alto-oficiais já estavam ficando irritados com a situação.

— Prime Key nunca será pego vivo, deveríamos logo tentar o plano B — rosnou um general de brigada de aspecto furioso.

— Ele só será pego quando os seus perseguidores souberem com o que estão lhe dan-do — retrucou Oliveira.

— Tem razão — citou o doutor Marcio protocolarmente. — Durante todos esses anos, Prime Key escapou pelos nossos dedos, ele era o nosso melhor agente, nos conhece me-lhor que ninguém, é melhor trazê-lo morto, do que vê-lo cair em mãos erradas.

— Pois bem, a solução do senhor é repassar o maior segredo militar do Brasil para um soldado doutor Marcio? Esperava mais de um homem como o senhor — o almirante interviu, o cientista alisou suas mechas cinzentas meio encabulado, de modo irônico, o almirante pronunciou: — Se o cyberterrorista não for trazido vivo, deve ser morto ime-diatamente, o agente Oliveira liderará uma nova equipe, quem vota em sim, erga a mão...

Por cinco a quatro, a nova operação foi sancionada pelo SCM. O almirante Gusmão ficou irritado de sua malfadada ideia ter sido aceita pelos outros membros. Pela primeira vez, alguém fora da alta cúpula adentrava no mais sombrio segredo da intelligentsia mili-tar brasileira.

* * *

Com a revolução cybernética ocasionada em plenos anos 70, o Brasil expandiu sua área de desenvolvimento armamentista. A rede mundial de computadores acabou se tornando uma nova ferramenta da manutenção do Regime Militar. Com a Guerra Fria aumentando sua expansão, o SCM elaborou um plano de contingência para uma possível guerra nuclear.

O projeto Guerra nas Estrelas do governo norte-americano ocasionou uma exaspera-ção, dando um novo impulso aos conflitos. Numa possível guerra nuclear, um sistema acionado por uma rede de satélites blindaria o céu do EUA, impedindo que bombas atômicas devastassem seu vasto território. Fechando-se em torno de si mesmo, o país conseguiu afastar-se dos embates, mantendo relações quase neutras com os antagônicos blocos econômicos.

Com a tomada de empréstimos bilionários com os planos nacionais de desenvolvimen-to, a Nação iniciou um projeto na tentativa de criar soldados que pudessem operar tanto em campo como no cyberespaço, sem a dependência de hardwares. Militares que com um único olhar pudessem invadir sistemas, diminuindo assim os gastos com as opera-ções, perda de equipes inteiras e total controle do soldado.

O Estado lavava o dinheiro dos empréstimos em obras públicas, mas as remessas iam mesmo para o SNI, onde era empregado na criação de armas adequadas aos novos tem-pos. Assim a pátria se tornou uma potência militar. O projeto foi chamado de Soldado Cybermnêmico, um militar capaz de operar como um sistema autônomo a internet. Com a capacidade de se conectar a rede, invadi-la e corrompê-la sem ser percebido enquanto atua no mundo real.

O presidente general Emílio Garrastazu Médici sancionou a plano, além de fazer o primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento para obter a soma necessária para que o projeto fosse implementado. Nos anos 80, em pleno governo Figueiredo, o primeiro sol-dado cybermnêmico foi ativado. A sua identidade civil foi apagada dos registros, o que foi relatado é que a família havia recebido uma gorda indenização para que o mesmo pudesse ser uma das cobaias.

Uma cirurgia retirou metade do cérebro do indivíduo, substituindo-o por uma prótese, um lobo positrônico para ser mais exato. Devido a complicações no pós-operatório, me-tade da face teve que receber uma máscara metálica, interligada com o hemisfério direi-to. Como único corpo experimental sobrevivente do projeto inicial, ele recebeu o codi-nome Prime Key.

Quando o PK iniciou suas atividades após longos e numerosos testes, a euforia deu lugar a uma crise no SNI. O soldado cybermnêmico fugiu dos laboratórios da agência, destruindo na evasão anos de pesquisa cybernética.

Prime Key se tornou o homem mais procurado do Regime Militar e um dos maiores cyberterroristas em atuação, tendo envolvimento em diversos cybercrimes e hackeamen-tos pelo mundo.

Os motivos que levaram a sua traição são incertos. Os neurocirurgiões alegaram que devido à complexidade da cirurgia, o Prime Key sofreu dano um cerebral irreversível ou o mecanismo simbiônico alterou a constituição do seu sistema nervoso. Certo é que ele se tornou inimigo declarado do Brasil, e tem como único objetivo a destruição da atual ordem mundial.

* * *

Uma semana antes do réveillon, as ruas já se aprontavam com adereços para a festa e estouravam manifestações contra o governo, essa virada tinha um caráter especial, após a queima de fogos, o mundo veria a aurora do segundo milênio. Entretanto, As dívidas externas impediram a saída do Brasil da recessão. A inflamação chegava aos alarmantes 15% por ano.

O PIB decrescera 3,1 % em 1999. Apesar do clamor popular da redemocratização, o Regime Militar adiou as novas eleições para o ano 2000.

Os arranha-estrelas da cidade litorânea conferiam uma atmosfera triste, uma vastidão de concreto reforçado por aço, que se elevavam acima das nuvens, altivas como monta-nhas, inatingíveis, inacessíveis para os brasileiros comuns. Dentro daqueles complexos de edifícios, cidades verticalizadas floresciam em ambientes assépticos, enquanto o resto da pátria se revolvia em cima do próprio cadáver.

Os excluídos se refugiavam nas favelas escarpadas do litoral, ou nas extremidades das megalópoles, até quando fossem desalojados pela sede expansionista do progresso capi-talista. Sem saúde, educação, moradia, segurança ou qualquer outro tipo de serviço bási-co, inclinavam-se a própria sorte. Devido à alta taxa de desemprego, as fontes alternati-vas de renda eram o tráfico de armas, de drogas e o cyberterrorismo.

Através de terminais piratas, os hackers nacionais cometiam cybercrimes diversos, geralmente contratados por outros países. As nações do terceiro mundo constituíam um celeiro e mão de obra fértil para esse tipo de prática.

Esse era o mundo que Oliveira conhecia e detestava. Teve muita dificuldade em man-ter seu desprezo pelo Regime Militar em segredo, mas de todas as profissões, a que lhe transmitia mais seguridade era a carreira militar. Ser agente secreto lhe conferiu o status invisível, podendo trafegar aonde quisesse.

Podia andar em arranha-estrelas como um respeitável espião do SNI e ao mesmo tem-po trafegar pelos resíduos do Rio de Janeiro como um cidadão qualquer. Embora a vigi-lância se estendesse lá também, ele recusara uma residência oficial do governo. Preferia enfrentar aquelas ruas violentas e degradantes, onde prostitutas, traficantes e mendigos-profetas disputavam o mesmo espaço, enquanto túneis queimavam lixo, emitindo a única luz para iluminar aquela ruína de sociedade.

Ele adentrou num bar, não sem antes ser abordado por um homenzarrão com uma HK nos braços. Colocando um chip em sua mão, o guarda-costas o deixou passar. Mais vali-oso que dinheiro nessa época, era a informação, dados confiáveis davam acesso aonde se quisesse entrar.

O oficial seguiu por fileiras de simulador-virtuais, que devido à improvisação das ins-talações, deixava sons e imagens escapar por entre as frestas das cápsulas. Indo mais a frente, ele sentou-se em uma das mesas do bar, o agente secreto estava agora rodeado pela maior malta de criminosos que a falta de políticas públicas produzira no país.

Uma garçonete seminua pôs uma garrafa com conhaque falsificado na mesa. O ambi-ente febrilmente iluminado por leds de variados tons lhe deu uma sensação estroboscó-pica, podia-se vomitar acaso não estivesse acostumado. O militar olhou-se no copo meio vazio. Sua barba crescera muito nos últimos anos, sua pele negra adquirira manchas, e uma calvície anunciada se aprofundara nas têmporas. O seu reflexo foi encoberto por uma sombra larga.

— Puta merda, tu ta horrível cara!

Oliveira ergueu o olhar. A sua frente, sentado na cadeira do outro lado da mesa, es-tava um hacker de aspecto pachorrento, de corpo delgado. Sua pele pálida contrastava com a roupa de couro, com corte assimétrico e futurista, cheia de tachas e correntes. Su-as sobrancelhas uniam-se, deixando seu rosto feio e suas olheiras profundas quase im-perceptíveis.

— Talvez você não tenha visto sua cara no espelho esses dias — retrucou o militar. — Seu cabelo um dia também vai cair magricela.

O hacker alisou suas melenas de modo provocante, depois pousou as mãos com os dedos entrelaçados de modo extremamente interrogativo. O seu interlocutor já sabia qual seria a pergunta, mas não se esforçaria em responder.

— Sua obsessão pelo PK me comove sabe, no começo você estava tipo assim, doido pra trabalhar pra ele e agora, quer saber onde ele ta... — o hacker estreitou os olhos — Parece até que quer matar o cara!

— Ele ta em dívida comigo — isso havia soado muito suspeito —, mercenários tam-bém precisam pagar suas contas — complementou Oliveira, o informante fez uma cara de quem tinha entendido a situação.

O hacker albino retirou um microchip de dentro do seu colete e cedeu-o ao seu contra-tante. Aquela era as últimas movimentações do PK registrada no cyberespaço. O agente Oliveira o colocou num pequeno estojo plástico. Levantando-se, ele dirigiu-se até a por-ta, e antes que pudesse sair, ele ouviu um “feliz novo milênio”, o espião nada respondeu, pois talvez ele nem visse os fogos de artifício na Baia de Guanabara.

* * *

O SNI não era o serviço secreto brasileiro à toa. Através de cálculos e estudos com-plexos, os militares conseguiram reconstruir os passos de Prime Key até Akihabara, e indo além, descobriram os seus planos.

O navio sonda funcionaria como uma plataforma de lançamento para o satélite que fora roubado na Europa, na órbita terrestre, ele ativaria o programa Proteu. Com o seu próprio transmissor de dados orbital, o PK teria conexão segura e a ferramenta certa para desabilitar os escudos antimísseis do EUA e da URSS, provocando um massivo ataque nuclear no mundo todo.

Um holograma, no formato de um globo terrestre trazia em sua face várias linhas hori-zontais e verticais. Um ponto vermelho brilhava em seu centro, exatamente na Linha do Equador, aquela era a localização exata do cyberterrorista. O grupo no submarino recebia as últimas instruções do líder da missão, o agente Oliveira pedira que o submarino sub-mergisse.

Os tripulantes deveriam fazer a retirada até 11: 50, depois disso poderiam ir embora. Ele abriu a escotilha do submergível e vislumbrou o local que invadiriam. O navio sonda tinha um costado de dez andares, isso fora da linha d’água. O agrupamento saiu do submarino e acionou o modo camaleão dos uniformes, essa função os tornava invisíveis graças à refração integral das ondas de luz. Eles escalariam o íngreme costado sem o auxílio dos arcaicos ganchos, as luvas possuíam feixes eletromagnéticos nas pontas dos dedos, podendo uma única luva sustentar o peso de 350 kg.

A divisão escalava a bombordo, alguns botes salva-vidas podiam ser vistos tremulan-do como bandeiras ao vento.

Às 10:30 da noite de 31 de dezembro de 1999, os militares brasileiros galgaram o cos-tado do navio sonda. A embarcação soviética era robusta, com certeza havia sido adap-tada de algum velho encouraçado da marinha, que depois de transformado em navio sonda, acabou sendo capturado pelo Prime Key e agora servia como plataforma de lan-çamento de um satélite. O Passadiço ficava na popa, um velho molinete se estendia a estibordo, ao lado dele ficavam alguns botes salva-vidas. A proa estava atulhada de cai-xas e contêineres.

O resoluto agente secreto se negava a admitir que mais um lixo espacial entrasse em órbita, caso isso ocorresse, a própria terra se tornaria um lixão.

* * *

Os cientistas que já havia cumprindo suas funções foram lançados ao mar pelos sol-dados de PK, alguns poucos foram mantidos devido aos seus valores em resgate. Do observatório, atrás de um extenso painel de controle, fatigado e amedrontado, ele anali-sava os dados do lançamento. O nível de combustível estava nos padrões aceitáveis, entretanto, o que preocupava o homem de jaleco branco era a improvisada estrutura de lançamento, parecia muito instável. Os módulos do satélite também não pareciam segu-ros a primeira vista. Seus pensamentos foram esvaindo da mente quando na direção da porta, surgiu a nefasta imagem do Prime Key.

— E então doutor Harmmond, como está o lançamento do satélite?

O cientista após receber o duro olhar heterocrômico do seu algoz, encarou fixamente para o painel de controle e disse-lhe:

— E-está tudo em p-perfeito estado — ele não conseguira controlar o nervosismo, passara por horripilantes torturas antes de ter sua vontade dobrada pelo criminoso. — Eu garanto que...

Tump, recebendo um único soco na barriga, o homem caíra encurvado sobre si mesmo. O cyberterrorista bateu com o punho fechado na mesa, o cientista-chefe ergue-se com lentidão. A pupila rubra brilhou na direção do homem e analisou suas funções biológicas, não afetara nenhum órgão interno com seu punho. Pegando o prisioneiro pelos cabelos, ele o ergueu e o lançou no chão.

— Pra alguém que quer dar garantias, você está muito nervoso — disse o hacker sus-surrando em seu ouvido —, também não poderei dar garantias da sua segurança doutor — e o mesmo saiu da sala e trancou a porta, o PK alterou o programa de lançamento para o seu lóbulo positrônico.

De repente, Prime Key ficou sério, como se pressentisse algo, ou melhor, tivesse rece-bido uma má notícia, ele sumiu no corredor, enquanto o cientista-chefe debatia-se em desespero.

* * *

Oliveira e seu grupo haviam estudado uma antiga planta do navio sonda, o que não ajudara muito com as diversas modificações que ocorrerá na embarcação durante os anos. O local se parecia muito mais com um hangar do que com um ex-encouraçado.

Exceto pelo passadiço, de proa a popa, o convés do navio havia se tornado uma ponte retrátil, e o seu interior nada mais era do que um precipício, onde só terminava numa base de lançamento. Um dos agentes estava prestes a saltar na estrutura quando ouviu passos. Uma dupla de mercenários vigiava o convés, usavam máscaras com visão térmica e portavam metralhadoras Skorpion. O espião fez sinal com as mãos, Oliveira que vinha logo atrás, empunhou uma pistola com mira laser e fez menção de disparar.

O silenciador impediria que o estouro ensurdecedor se propagasse na noite fria do oceano Atlântico, entretanto, as chamas do disparo poderiam denunciar o grupo e falir a missão antes da invasão se concretizar. Devido ao barulho das ondas revoltas, o líder da operação não ouviu a entrada do convés abrindo-se, e quando ele deu os dois fatídicos disparos, dois corpos tombaram dentro das instalações da plataforma.

Em minutos, cerca de 70 homens fortemente armados passaram a caçar os invasores. Os militares não tiveram nem tempo pra se amaldiçoar.

* * *

Um latino vestindo um colete cinza-camuflado andou pé ante pé entre alguns velhos contêineres e barris de petróleo, pelo outro lado, um norueguês lhe dava cobertura. Os mercenários contratados por Prime Key em sua maioria eram de nacionalidades diferen-tes, diminuindo assim o risco de traição por parte deles. Cada um ostentava uma espin-garda, eles passaram a rir quando se viram apontando a arma um pro outro no fim do estreito corredor.

Num rápido movimento, os dois foram decapitados pelos agentes do SNI. Oliveira indicou para que o grupo se dividisse: um deles iria para a sala de comando, o outro lide-rado por ele, desceria para a sala de máquinas.

Armados de FN P-90, com supressor de chamas embutido e mira TOP, o comandante liderou seu agrupamento pelo calabouço que a embarcação se transformara. A ferrugem parecia carcomê-la por dentro, como uma doença cancerosa que a oxidação era, mesmo assim ele sobrevivera. Desde a Segunda Guerra Mundial ele navegava pelos mares, le-vando variadas tripulações, mas nenhuma tão especial como aquela.

Em seus catres ferruginosos, repousavam as mentes mais brilhantes que o novo século jamais veria. Haviam sido removidos para o mais anterior da sala de máquinas, onde ficavam os antigos depósitos de munições. Oliveira tentou contactar o outro grupo pelo radio acoplado em seu traje, mas a única coisa audível foi o zumbido da microfonia. De-sistiu de pedir a situação, junto com seus companheiros, ele seguiu rumo ao catre dos cientistas.

* * *

O grupo destacado para a tomada da sala de comando foi rápido e objetivo, elimi-nando os vigias que se precipitaram para a morte – pois eles enfrentavam a elite das For-ças Armadas do Brasil – eles subiram o passadiço, a equipe se acercou de cuidados. Galgaram a escadaria de modo furtivo.

A iluminação era precária, e mesmo que seus uniformes permitissem uma grande li-berdade de movimentos com suas placas de grafeno modulares, eles estavam enfrentan-do um inimigo em duas frentes: humano e cybernético.

No último andar, eles deram de cara com a sala de pilotagem, a luz estava acesa, a porta fechada criou um clima de suspense em que a tensão era quase palpável. A divisão andou sorrateiramente, o líder da equipe deu o sinal para que os demais dessem cobertu-ra, ele faria o hackeamento da porta.

Os dez agentes tomaram posição nas laterais da porta, formando duas fileiras de cin-co. Eles esperaram até a abertura da trava eletrônica, com um clique agudo, ela escanca-rou-se.

De supetão, eles entraram sala adentro com suas armas apontadas para o único tripu-lante, estava de pé, segurava alavancas do painel de controle. Os militares lhe deram voz de prisão, embora não tivesse se virado, ele também não reagira. O homem vestido com jaqueta de couro negra com capuz ergueu as mãos por fim. O capuz caiu, revelando sua identidade: era o Prime Key.

— Comandante Oliveira, alvo encontrado, eu repito, alvo encontrado...

— Ele não ouvirá — interrompeu o criminoso com sua voz gutural, a porta da sala de pilotagem fechou-se estrondosamente, selando o destino dos agentes. — Esta instalação foi projetada para impedir qualquer transmissão não autorizada, independente da faixa usada.

— Você se acha Deus não é? E como nós conseguimos entrar na sala?

— Eu os deixei entrar...

O projétil da arma atravessou o cano da submetralhadora e na mesma velocidade em que a cápsula tocou o chão, a bala já havia atravessado o corpo do cyberterrorista e esti-lhaçara a vidraça da sala de comando.

Entretanto para a surpresa geral, ao invés do corpo tombar, virou-se para os atônitos expectadores, revelando o erro que seus perseguidores cometeram. O Prime Key a frente deles não passava de um mero holograma. Antes que a equipe pudesse esboçar alguma reação, a sala de comando explodiu.

* * *

O uivo sônico da detonação foi transmitido por toda a embarcação. Oliveira se apres-sou. Um grito pôde ser ouvido num depósito ao fundo. Os militares foram rápidos, che-gando até o local, através da escotilha, eles viram os prisioneiros famintos e esfarrapa-dos. Ao verem os brasileiros, eles recuaram para o mais profundo do depósito.

O comandante abriu a porta detonando a fechadura eletrônica da porta. Os homens de jaleco jogaram-se ao chão, e em diversos idiomas os agentes secretos ouviram a mes-ma ladainha: não nos matem. O oficial teve um sobressalto, a prioridade da missão não mudara, mas ele não podia deixar aqueles homens ali, a própria sorte.

Os prisioneiros demoraram a entender que os recém-chegados não pertenciam ao sé-quito do hacker. A bandeira brasileira estampada nos uniformes renovou as esperanças dos homens da ciência de verem o novo milênio.

Dividindo o seu já desfalcado grupo, o comandante fez com que a outra equipe escol-tasse os cativos até os andares superiores, os outros quatro agentes e ele dariam combate ao Prime Key e seus asseclas.

Antes que evadissem, o espião pediu informações aos cientistas sobre a estrutura do navio sonda. Um ítalo relevara onde ficava a plataforma de lançamento. O comandante então tomou a sua equipe e rumou em direção o centro da embarcação.

Sob as diversas tubulações e engrenagens, o quinteto seguia cegamente dentro da em-barcação. De acordo com o informante, eles deveriam estar exatamente abaixo da plata-forma de lançamento, dois níveis abaixo para ser mais preciso. Devido ao fator furtivi-dade, eles resolveram se separar e detonar o satélite, mesmo com o custo da própria vida. Oliveira tomou uma direção e dispersou os seus outros comandados.

* * *

Tiros e gritos espocavam a todo o momento pelas paredes metálicas do navio sonda. O espião consultou o relógio, havia menos de trinta minutos para o fim do ano, ou seria fim do mundo? Ele não queria cogitar essa última hipótese.

Suspenso no teto, segurando cabos e conectores enferrujados, ele vigiava os passos de dois soldados do PK, eles abriam e adentravam nas salas atirando. De repente, um som agudo deixou o agente preocupado, um dos conectores em que ele se segurava, estava se partindo.

Não foi preciso sua queda para que os homens ficassem em alerta, pois um dos para-fusos caíra no ombro de um deles, as armas foram apontadas para o teto, e tentando se defender, Oliveira desabou sobre eles.

Houve uma desesperadora luta no solo, usando técnicas de jiu-jitsu, o agente secreto conseguiu imobilizar um dos homens com um mata-leão, o outro recebeu um chute na jugular que lhe destroncou o pescoço. O som de passos acabou sendo ouvido na outra direção, o prisioneiro tentava gritar, mas o oficial apertou-lhe os braços em volta do pes-coço, até que o outro deixasse de respirar. Com um saque rápido, ele mirou na direção de quem subia a escadaria.

Para sua sorte, era um dos seus subordinados. Oliveira respirou aliviado.

— Por um instante — disse o líder da operação se levantando do chão —, achei que fosse o meu fim.

— Só acaba quando termina comandante.

Com um leve aceno de cabeça, a dupla seguiu o longo corredor e quando abriram a porta, se depararam com a plataforma de lançamento. No centro, estava o satélite e sua base de ejeção. Pelas galerias dos andares superiores, estavam vários dos mercenários, sem contar o risco do Prime Key adiantar o Lançamento. Oliveira perguntou ao outro militar:

— Onde estão os outros?

— Não estão mais entre os vivos comandante — o seu superior alisou a ponta do nariz com o dedão e o indicador. — É impossível pedir reforços e o grupo que escoltara os cientistas foi abatido junto com os reféns.

— Traduzindo, somos só eu e você.

— Poderia ser bem pior — retrucou o outro de modo irônico.

O espião tentou formular um plano, que incluísse a volta pra casa, é claro.

Ilhado, sem comunicação e contando apenas com um reforço, o correto seria garantir a destruição do satélite de pronto, sem dar chance ao erro, de preferência com uma única detonação. Isso não garantia a morte do Prime Key, nem à volta pra casa. Os planos mudaram uma vez mais.

— Agente Cardoso, esta é uma situação emergencial — o subordinado compreendeu rapidamente aonde o comandante queria chegar. — Assuma posição de tiro e tente acer-tar todos os que você conseguir.

— E o senhor comandante?

— Acho que sei como pegar o Prime Key.

Mesmo sem entender como o hacker seria capturado, o militar acatou as suas ordens. Cardoso seguiu pela galeria e encontrou posição de tiro na mureta. Seu rifle de precisão SIG SG-551 não demorou a trabalhar, a munição .223 Rem estourou os miolos dos guarda-costas do cyberterrorista, chamando mais do que sua atenção, esse ataque repen-tino o deixara com os nervos a flor da pele. Enquanto era lhe dado cobertura, o líder da operação mudou a munição de sua metralhadora para granadas-autoadesivas e se pôs a dispará-las na plataforma, o exército do PK ficou sem rumo, pareciam receber um ataque maciço na ocasião.

O criminoso adiantou o lançamento sob o risco de perder o seu empreendimento. A ejeção do módulo fulminou alguns mercenários no processo. Cardoso não entendeu por que o seu comandante permitiria que o satélite com o Proteu fosse lançado, mas conti-nuou a lhe dar a assistência necessária para que continuasse o seu ataque.

O módulo que resguardava o satélite começou a emitir fagulhas intensas, e logo de-pois intensas chamas brotaram, logo veio à fumaça da queima dos gases. O módulo as-cendeu ao ar, atravessou todos os andares e o convés. Há apenas seis andares de altura, o satélite explodiu, e os pedaços fumegantes de metal caíram dentro do navio sonda.

— Foi por isso que ele deixou o lançamento acontecer.

— Malditos agentes do SNI — antes que o militar pusesse sua arma em prontidão, Prime Key atirara em sua cabeça —, sempre se intrometendo aonde não devem.

* * *

O que antes havia sido um ataque se transformou em uma fuga desesperada. Oliveira sabia que na virada do ano, a embarcação seria explodida por uma chuva de mísseis, embora todos os integrantes do grupo soubessem qual seria o fim trágico da operação caso não a concluíssem no tempo devido, ninguém desejava passar o ano novo carboni-zado. O tempo mais que corria, evanescia aos seus olhos, era exatamente 11: 50 da noite.

Tiros cruzavam o ar e acertavam as dezenas de caixas esparramadas pelo chão. Usan-do uma delas como escudo, o espião revidava o fogo inimigo dos poucos mercenários remanescentes. Devido à diferença de línguas, eles não conseguiam articular nenhum ataque, e todos caíram mortos.

Quando o último deles tombou, o oficial sentiu um alívio momentâneo, para logo de-pois seu sexto sentido militar despertá-lo para a realidade, Prime Key ainda podia esca-par, ou pior, estava em seu encalço. O brasileiro mais que depressa empreendeu corrida com sua Ceska CZ-85 em mãos, para sua surpresa, um tiro fendeu o ombro direito, a dor chegou a ser lancinante.

Sua mão esquerda foi até a ferida, ocultando-se atrás de uma porta metálica, ele veri-ficou a gravidade do ferimento. Por sorte, havia sido de raspão. Do outro lado da plata-forma de lançamento, sob as intensas chamas vermelhas que consumiam o local, a voz de Prime Key ecoou:

— Se você tivesse continuado do meu lado — disse o cyberterrorista em tom dramá-tico —, provavelmente você estaria vivo no ano 2000, agente Oliveira.

— Como você descobriu? — retrucou o militar para ganhar tempo.

— Não demorei tanto, depois que descobri que usavam ondas de radio para se comu-nicarem...

Ra-ta-ta-ta, a Uzi do hacker cuspiu balas. O oficial sentiu-se acuado, as chamas esta-vam muito intensas para que o mesmo pudesse ser localizado visualmente. A visão de calor do seu traje estava inoperante devido às ondas de calor. O agente desistiu de acio-nar o modo camaleão do traje, o hacker também possuía visão térmica.

Não restando mais opções, o combatente recarregou a pistola e se pôs em vigilância. Tentando encontrar algum vestígio do inimigo, ele pegou um fragmento de destroço e rumou na direção contrária. Tiros foram disparados na mesma direção, a munição traçan-te denunciou seu atirador.

O tiroteio se seguiu feroz, o carioca tentava acertar o cyberterrorista, mas o alcance de sua pistola era menor, a Uzi continuava a marcar o ritmo do combate. De modo inespe-rado, o convés começou a se fechar.

Agora ele não podia ver o seu inimigo, Prime Key o havia aprisionado como um rato. Acuado e não restando alternativa, Oliveira seguiu para a sala de máquinas. Tanto para subir ou descer os andares, o rumo seria o mesmo, lá o agente secreto tentaria armar uma emboscada. Entretanto, o simples ato de evadir pelo corredor já se tornara uma árdua tarefa, Prime Key fazia um fogo cerrado. O fugitivo, a muito custo, escapou.

O extenso corredor foi vencido com extremo cansaço, o oficial protegeu-se da manei-ra que pôde, embora muito dos tiros acertara-lhe de raspão.

Ao chegar à sala de máquinas, em meio ao rugido infernal do antigo maquinário, o homem do SNI se deteve atrás de uma série de engrenagens. Seu corpo estava pesado, como se seu sangue tivesse sido substituído por chumbo! Mesmo assim manteve sua postura e esperou de modo aguerrido, checou a sua pistola, o pente esvaziara-se.

— Seu corpo deve estar dolorido não — os passos do criminoso ecoavam pelo metal frio e rangente. — As minhas balas possuem cápsulas com urânio exaurido, se você não morrer pelas minhas mãos, vai morrer de câncer.

— Se você me matar, acabará morrendo do mesmo modo — retrucou o agente secre-to. — Após as 12 horas da noite de hoje, um ataque de mísseis desferidos pelo governo brasileiro fará desta embarcação o seu túmulo, o lançamento só será evitado se eu aden-trar no submarino que está lá fora e der o sinal para parar.

— Está me propondo um acordo? — a sua gargalhada soou grave, assustadora para ser mais exato. — Fico feliz em saber que já tenho uma carona pra sair daqui, agora mor-ra!

Ao invés do explosivo bang, o que se ouviu foi um som seco, PK também acabara sua munição. O hacker então se colocou em um lugar visível.

— Vamos resolver da maneira menos civilizada.

Oliveira saiu do esconderijo, reticente, para perceber que o outro estava mesmo de-sarmado. O agente aprumou-se, o sangue escorria de suas feridas. As bordas das mesmas se encontravam com uma tonalidade azulada, enquanto o centro delas pulsava em carne-viva. Os combatentes armaram bases sólidas e passaram a estudar um ao outro.

— Deveria ter continuado a lutar junto comigo, Oliveira, agora vai virar estatística pro Regime Militar.

A prótese ocular do criminoso brilhava como a íris de um basilisco.

— Será possível que você é tão tolo agente Oliveira — o militar nada lhe respondia, mantinha sua autodefesa, resguardando um bote de seu adversário —, por quem você luta hã? Já parou pra pensar nisso? Quantos brasileiros como você devem morrer pra sus-tentar uma política defasada, regida por governantes inúteis, eles estão afogados na cor-rupção! Está agindo como um peão nesse tabuleiro milico de merda.

— A mesma corrupção da qual você se serve Prime Key? — o rosto do seu interlocu-tor se contraiu. — Enquanto muitos brasileiros morriam lutando pelo Brasil ou pelo que acreditavam você acabou matando pessoas e sacrificando muitas vidas inocentes pelo que acreditava. E muitos desses brasileiros ao qual você citou, acabaram morrendo por sua causa. O próprio Regime Militar perdurou por mais tempo amparado em sua caçada, o que me faz pensar, será que você também não é só uma peça nesse jogo?

— Os militares brasileiros e o seu messianismo paternalista...

Prime Key investiu com um chute, que foi defendido pelo seu oponente, o mesmo afastou-se e tentou revidar a agressão. Oliveira desferiu um murro, mas o cyberterrorista se abaixou e socou o seu abdômen. O oficial sentiu sua costela se quebrar. Recuou segu-rando-se numa pilha de caixotes, tentou restabelecer o fluxo respiratório.

O hacker fez um kata e depois gesticulou com uma das mãos.

— Venha, ainda não acabei com...

Plaft, uma caixa foi arremessada pelo homem do SNI, o criminoso partiu-a em dois, revelando seu conteúdo: ogivas desmontadas. Aproveitando-se do momento de distra-ção, o espião investiu contra o inimigo, para ser barrado pelas mãozorras do hacker. O antagonista graças ao seu lóbulo positrônico, conseguira assimilar todos os conhecimen-tos marciais fornecidos no cyberespaço.

Com um golpe de aikidô, Prime Key mais uma vez levou o seu adversário ao chão. Embora seu corpo doesse por inteiro, ele ergueu-se resignado a derrotar o seu inimigo. Não desejava morrer sem antes acabar com a vida daquele malfeitor. Com dificuldades, tentou acompanhar a velocidade do seu inimigo, que graças ao seu implante simbiônico, não podia ser colocado para dormir facilmente, pois sua parte máquina faria os neurônios produzir um hormônio que lhe regenerasse de imediato seus danos.

Com uma benção, Oliveira tentou derrubar o seu oponente, que embora tivesse rece-bido o chute no tórax, não se projetara para trás, permanecendo rijo onde estava. To-mando a perna do agente secreto em suas mãos, ele desequilibrou o seu inimigo e tentou aplicar-lhe uma submissão, travando o pescoço do militar com os dois braços.

— Queria uma medalha de Honra ao Mérito agente Oliveira? — o oficial já escumava pela boca, as veias do seu pescoço saltavam na derme como se fossem explodir. — No mínimo ganhará uma lápide com seu nome, não é suficiente? Hã? Diga alguma coisa!

Tentando um último golpe, o agente tentou agarrar a cabeça do oponente. Sua mão resvalara em diversas tentativas. Como um dos lados do rosto do hacker era feito de titânio, ele acionou o feixe magnético das luvas e fisgou o rosto de seu algoz. De súbito, algo impensado ocorreu.

Prime Key começou a se contorcer e gritar como se estivesse sendo queimado vivo, a dor fora tão intensa que o mesmo afrouxara os braços em volta do pescoço do militar. Este evadiu do golpe tentando recuperar o fôlego. Enquanto o seu adversário se consu-mia em uma profunda dor, o agente desligou e religou o feixe nas luvas e o acionou de novo.

— Um impulso eletromagnético! Era só disso que precisávamos para acabar com vo-cê? — com um novo ânimo, o oficial levantou-se e caminhou até Prime Key.

— O que você fez comigo seu desgraçado?

— Não se trata do que eu fiz se trata do que eu vou fazer...

Com o pé, o homem do SNI revirou o corpo. De modo epiléptico, o cyberterrorista tremia dos pés a cabeça, o capuz de sua jaqueta caíra revelando sue rosto embrutecido. Olhos, nariz e boca sangravam. O lado direito de sua cabeça liberava uma fumaça azula-da, a pupila rubra tremia como se fosse saltar do glóbulo ocular.

— A-faste-se de m-im!

Oliveira apoiou seus joelhos em cima do tórax do criminoso e agarrou a cabeça de Prime Key com as duas mãos. O grito que este lançara foi ensurdecedor. O mesmo se enfraquecera de tal forma que nem chegara a revidar.

O feixe eletromagnético das luvas do militar provocou a sobrecarga do sistema, o ló-bulo positrônico teve seus circuitos queimados por inteiro, atos básicos do corpo como respirar e falar ficaram comprometidas. Aos poucos seus sentidos falharam, até que suas funções corporais cessaram por completo. O oficial ergueu-se e amparou-se na parede metálica da sala de máquinas.

O cadáver do crápula mantinha-se debatendo no chão, com grave hemorragia cutânea. O espião consultou o relógio, era cerca de 11:59 da noite, faltando apenas um minuto para a explosão do navio sonda, ele cerrou os punhos e tentou encontrar alguma escoti-lha que desse para o lado externo.

O agente secreto caminhou tentando esquecer as dores que afligiam o seu corpo. Uma escotilha dava para o exterior do navio sonda. Utilizando-se de uma granada-autoadesiva, ele improvisou uma saída. Cerca de cinco andares o separavam de um mar bravio.

As ondas azuladas quebravam furiosas embaixo do navio. Oliveira sorveu a maior quantidade de ar que conseguiu reunir em seus doridos pulmões e saltou com desencar-go de consciência.

Mal seu corpo afundara nas águas, os mísseis atingiram a velha embarcação. Os des-troços começaram a chover no mar. Acima do espelho d’água, o homem do SNI podia ver a destruição completa do velho QG do Prime Key. As chamas vermelhas dançavam consumindo o metal. Embora ele tentasse emergir, o seu corpo era tragado pelas ondas. Ao invés de ir contra a corrente, ele resolveu ser levado por ela.

A corrente marítima o arrastou para o mais longe do navio sonda. Agarrado a um des-troço, Oliveira tentou manter-se fora da água. Metade da embarcação afundava, a sua parte emersa – o passadiço – queimava e soltava explosões ocasionais. O agente acionou seu rastreador biométrico e esperou a cavalaria chegar.

Fim

Caliel Alves
Enviado por Caliel Alves em 13/07/2017
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T6053199
Classificação de conteúdo: seguro
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