Encomenda Divina

Jeová atravessou ansioso o portal de entrada da Helohim Empreendimentos. O representante dos projetistas veio em pessoa cumprimentar o ilustre cliente.

-- Como vai a criação da minha galáxia?

-- Paciência, Jeová! Não se cria uma galáxia assim, do dia para a noite. -- explicou, obviamente em sentido figurado, já que existiam incontáveis dias e noites diferentes dependendo do planeta em questão.

-- É uma galáxia espiral, exatamente como encomendei?

-- Sim, de acordo com o solicitado!

-- E nela se desenvolverão Humanidades? Seres conscientes e inteligentes que irão me adorar como criador de seu Universo?

O representante dos projetistas galácticos pensou um pouco, esperando a melhor forma de dizer aquilo para o impaciente cliente.

-- Estatisticamente, dado seu tamanho, densidade, distribuição de estrelas, riqueza de elementos químicos tetravalentes, como o carbono... Sim, é bem provável que se desenvolva vida, e que ela venha a ficar mais complexa e evolua para vida inteligente. O Senhor entende o que é probabilidade, não é mesmo?

Jeová ficou pensativo...

-- Eu serei para eles o criador do Universo! -- e era indisfarçável o orgulho que sentia ao proferir estas palavras.

-- Bom, o criador da Galáxia. -- corrigiu o representante. -- Mas como dificilmente as Humanidades do Universo chegam a desenvolver a tecnologia necessária para se espalhar além de suas galáxias de origem, então... Sim, ao menos o criador da parte do Universo que elas são capazes de alcançar!

-- Mas... Eu queria um Universo inteiro, só meu!

-- Você sabe muito bem, Jeová -- tenta ponderar o representante -- qual é o tamanho do gasto energético necessário para se criar um universo inteiro, totalmente novo!! E dos riscos disto, incertezas, dificuldades de se prever que as leis físicas deste universo novo permitiriam o surgimento de estruturas estáveis... Não acha melhor aceitar uma parte importante dentro de um Universo que já sabemos que deu certo? Uma concentração galáctica de matéria contida nele, que parece ser bem promissora?

Jeová ainda olha com desconfiança para aquele projeto de galáxia. Tão pequena... Surgiriam nela adoradores suficientes para satisfazer seu gigantesco e divino Ego?

-- Como ela pode ser uma espiral estável sendo tão pequena? Isto não contradiz as leis de atração gravitacional que se desenvolveram neste Universo?

-- Equilibramos a diferença com uma grande parte de matéria escura. O Senhor não a vê, mas ela está lá, principalmente nas bordas! É isto que mantém as espirais estáveis.

-- E essa tal matéria escura consiste em quê?

-- Não é nenhum grande segredo, mas é meio complicado explicar.

-- Quero saber...

-- Venha aqui um instante, Jeová! Para esta salinha ao lado. Explicaremos ao Senhor qual é o grande segredo da Matéria e da Energia Escura. Mas entende que queremos esconder tais segredos do concorrente, né? Precisamos tomar nossas precauções...

-- Naturalmente! -- disse Jeová, acompanhando o representande dos projetistas ao local indicado.

Ambos entram numa sala reservada do Empíreo. Era um cubículo dentro do tecido do espaço-tempo, protegido por um instransponível horizonte de eventos, do qual nenhuma informação coerente vinda de seu interior poderia escapar. Foi uma conversa longa, que durou alguns Éons!!!

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Jeová saiu daquela saleta plenamente satisfeito a respeito da matéria e energia escuras. A explicação, quase uma aula de Dinâmica de Universos Coerentes Estáveis, foi bem esclarecedora.

-- Mais uma coisa: as Humanidades isoladas dentro da galáxia dificilmente entrarão em contato entre si, não é mesmo? Não poderão transpor os espaços interestelares, e talvez nem mesmo saber da existência de seus vizinhos inteligentes...

-- Jeová, precisamos estabelecer um equilíbrio delicado entre a chance de se desenvolverem humanoides inteligentes nos planetas rochosos da galáxia e o tempo estável médio de seus sistemas planetários. Se criamos galáxias com alta densidade de estrelas, portanto pouca matéria escura, sim, aumentamos a quantidade de planetas rochosos, e a chance de se desenvolverem humanidades primordiais em planetas rochosos separados por décimos de anos luz de distância. A chance de tais humanidades entrarem em contato logo após poucos séculos de desenvolvimento tecnológico é muito grande! Temos exemplos de galáxias extremamente densas nas quais suas humanidades entraram em contato antes mesmo de tomarem ciência da relatividade! As estrelas estavam tão próximas entre si que podiam ser atingidas com primitivas tecnologias de propulsão química mesmo...

-- Mas...

-- Sim, tem um gigantesco MAS aqui! Colocando as estrelas assim tão próximas comprometemos a estabilidade dos sistemas planetários. Damos menos período de calmaria para se desenvolver a vida, e que dirá então vida inteligente... Aumentamos a chance numericamente, mas dificultamos as coisas do outro lado, nas condições propícias por tempo suficiente. O último parâmetro costuma prevalecer...

-- E se aumentarmos a distância média entre as estrelas para algumas dezenas de anos-luz?

-- É exatamente o que estamos fazendo na Tua galáxia! Os sistemas planetários, em sua maioria, ficam estáveis o tempo suficiente para suas Humanidades aparecerem e desenvolverem tecnologia espacial. E inevitavelmente se espalham para os corpos mais próximos, no próprio sistema planetário. Porém, e este é o efeito colateral, as estrelas vizinhas, que também desenvolveram suas Humanidades, ficam distantes demais e inalcançáveis com a tecnologia desenvolvida.

-- Não desenvolvem tecnologias melhores?

-- Err... hahãn... -- era inegável o desconforto do representante, mas ele não poderia esconder algo tão importante assim de seu cliente. -- Inteligência tecnológica é uma faca de dois gumes, Jeová! Temos vários exemplos de civilizações que desenvolveram exponencialmente suas tecnologias, e que estavam prestes a entrar em contato com humanidades vizinhas, viajando entre as estrelas. Mas a mesma tecnologia que lhes capacitaria a fazer isto também lhes deu poder de se autodestruírem um pouco antes...

-- Mas, que coisa! -- isto era surpresa para Jeová! -- Vocês podem resolver isto, não podem?

-- É um equilíbrio muito delicado, Senhor! Segue um padrão de CAOS, no limite entre o sucesso e o fracasso... Uma variação irrelevante das condições iniciais pode levar a resultados totalmente opostos...

Jeová ficou pensativo por Eras incontáveis. Para nós, obviamente!

-- Não quero ser Deus de uma galáxia!

O representante se surpreendeu com a decisão repentina!

-- Pretende cancelar o contrato, Senhor?

-- Não, ainda quero ser criador de um Universo! Quero só mudar os termos do contrato.

-- Em que sentido?

-- Não quero mais ser o Deus de uma galáxia! Quero ser o Deus de um sistema planetário promissor, e bem distante de estrelas vizinhas! Para que a Humanidade que nela se desenvolva dificilmente consiga entrar em contato com outras humanidades próximas.

-- Uma Humanidade assim realmente acharia que seu próprio Sistema Planetário seria todo o Universo que elas poderiam alcançar. Mas... Não acha que seria uma tarefa impossível esconder dela todo o resto que existe ao redor?

-- Posso controlar a luz que chega até eles? Digo, os fótons? Para que eles não consigam tirar conclusões sobre isto, desenvolver teorias?

-- Não, Jeová! Está além de nosso controle. Energia Escura, lembra?

-- Certo, entendo... Então serei forçado a criar certas proibições... -- diz mais para si mesmo, mas obviamente o projetista ouviu e esboçou uma reação nem um pouco amistosa.

-- Não sei se podemos garantir isto, dar 100% de certeza de que esta Humanidade não entre em contato com as vizinhas... Não quer que sua Humanidade evolua, conheça outras, torne-se independente?

-- Pago a mais por isso! Sou um Deus ciumento! Quero uma Humanidade que me adore como único criador de seu Universo, pelo menos da parte do Universo onde elas habitam!

-- Certamente, a Helohim Empreendimentos pode te oferecer isto! -- a promessa de um ganho maior quebrou todas as objeções iniciais do projetista. Um simples sistema estelar pelo preço de uma galáxia? Ou por um preço MAIOR AINDA que o de uma galáxia? Teria alguma outra chance de fechar um negócio melhor que este?

-- E se puderem, só para garantir mesmo, diminuir a probabilidade de se desenvolverem Humanidades no resto da galáxia...

-- Calma aí, Jeová! A galáxia precisa continuar sendo construída! Sabe que não existe sentido fazer seu sistema planetário sem todo o entorno ao redor dele, né?

-- Lógico que sim!! Acha que sou um ignorante? -- desabafou, se sentindo insultado...

-- E como já assumimos a construção da galáxia, que inclusive já foi iniciada e, mais ainda, seu recente contrato depende totalmente do sucesso do contrato original, precisamos de alguém que se responsabilize pelo restante da galáxia, além deste sistema planetário que o Senhor escolheu.

-- Oras bolas, sei disso muito bem!! -- disse, novamente sentindo que menosprezavam sua inteligência. -- E tenho um grande amigo em mente para assumir isto! E, se é isto que te incomoda, pago pela galáxia na pessoa dele, desde que me deem meu sistema planetário especial, nas condições que especifiquei, bem longe dos vizinhos, pelo adicional que estou pagando...

Enquanto refazia o contrato (e extremamente surpreso ao conhecer o nome do misterioso amigo de Jeová, que assumiria a construção do resto da galáxia!), ele não conseguiu conter sua curiosidade:

-- Jeová, realmente não consigo entender o motivo desta sua mudança abrupta de planos. O que quer disto? Uma única Humanidade para adorá-lo? Pra que esta necessidade de Amor Exclusivo?

-- Eu quero sentir isto de criaturas formadas à minha imagem e semelhança.

-- Me desculpe, isto não faz sentido. Imagem e semelhança? Você quer dizer "mentalmente"? Porque materialmente, não há como acontecer isto! Não temos referências, pois não somos materiais. Podemos te propor alguns modelos já utilizados em outras galáxias...

-- Certamente! Estou ansioso para conhecê-los...

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A vida explodiu naquele primitivo planeta rochoso. Trilobitas povoavam os mares. Espécies dos mais variados tipos! A seleção natural criava as mais variadas formas animais. Mas Jeová não gostou de como se desenvolviam aqueles promissores Trilobitas, que começavam a dominar o pequeno planeta azul. Jeová não tinha uma forma física, mas mesmo que a tivesse estava certo de que não seria parecido com um Trilobita. Sutilmente desviou um primeiro meteoro do sistema planetário, um protoplaneta em formação, em direção ao planeta azul.

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-- Pra que isto, Jeová? -- o representante da Helohim Empreendimentos estava furioso!

-- Não queria ter a imagem e semelhança de um verme...

-- Ai ai ai... Então é esta a questão? -- e tenta uma alfinetada -- sabia que em sistemas vizinhos da galáxia, vermes já desenvolveram tecnologia suficiente para deixarem seus planetas, e já estão próximos de compreenderem a relatividade?

-- Não se pareciam comigo...

-- Se pareciam? Como assim, Jeová? Não somos materiais! Não temos uma forma tridimensional de matéria com a qual podemos fazer comparações...

-- Mentalmente então. Não acho que aqueles vermes seriam capazes de me adorar em algum de seus estágios evolutivos... Tenho noção do Belo, meu caro! Acredito que você também tenha! A Humanidade que imaginei precisa ter dois apêndices corporais de locomoção, mais dois para manipular objetos! Construir coisas!

-- Certo, certo... Vamos tentar de novo então...

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Passam-se algumas Eras. A vida persiste! Ela é insistente! Se desenvolve de novo, agora tomou os espaços secos do planeta! Lagartos gigantescos povoam o planeta azul! E lagartos pequenos também, mas extremamente inteligentes! O representante se aproxima de Jeová, apontando as enormes possibilidades daquela criatura, de cérebro gigantesco comparado ao das demais espécies existentes na época.

-- É um lagarto! -- Jeová está irredutível! -- Não se parece nem um pouco comigo...

-- Como assim, meu caro? Um velociraptor! Predador inteligente! Uma capacidade mental que, acreditamos, será capaz de desenvolver a tecnologia das viagens interestelares ANTES de se autodestruir! Que vê de errado nele?

Jeová pega um dos bixos, o gira de um lado para outro. Observando...

-- Feio! Uma lagartixa de cabeça enorme! Não é minha imagem e semelhança...

-- Não faça isso, Jeová!! Essa criatura tem possibilidades inéditas!!

-- O que foi? O Problema é dinheiro? Eu pago mais, sem problema!! Mas comecem de novo! Joguem outra pedra, ou pedaço de gelo sujo, neste planeta!

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A maior parte da vida se acaba neste segundo cataclismo. Os poderosos dinossauros não conseguiram sobreviver neste novo mundo. Eram grandes demais, precisavam de muita energia para sobreviver! Os herbívoros não conseguiam mais suas fontes vegetais, que morriam em disparada, desprovidas da luz solar original, bloqueada pelo recente cataclismo. E os carnívoros... bom, eles viviam de herbívoros recém abatidos, né? Não haviam evoluído para consumir cadáveres em decomposição. Era uma comida mais fácil de se conseguir (você não precisa caçar cadáveres!) mas também menos nutritiva, até mesmo danosa se em estágios de putrefação avançado! Assim, os grandes répteis iam sumindo rapidamente, carnívoros ou herbívoros... Nas terras, nos oceanos. Simplesmente iam desaparecendo!

Mas no meio de toda esta destruição, Jeová viu um pequeno e tímido bixinho peludo remoendo as sobras, sobrevivendo da carniça dos grandes répteis. Este bixinho havia desenvolvido uma capacidade especial de reprodução. Não botava ovos, mas abrigava o novo ser dentro do próprio ventre, protegendo-o até que ele estivesse pronto para encarar o mundo com um mínimo de defesa. Jeová se sensibilizou bastante com o que viu! E conclui, resoluto:

-- Não quero o Homem feio, com cara de lagarto! -- afagou o pequeno roedor, revolvendo carniça de dinossauros. -- Quero começar mais uma vez, mas quero que este pequeno sobreviva e evolua! Quero que bípedes descendentes deste pequeno roedor sejam minha imagem e semelhança!

*** FIM ***