Vida Inteligente - 3ª parte
4. Uma resposta
Seus olhos foram incomodados pelo excesso de luz.
“Me deixe dormir,mãe...eu tive uma noite daquelas...”
Noite daquelas. As noites daquelas, podiam ser as noites em claro que ele passava acordado estudando com o único objetivo de “acabar logo com essa maldita faculdade”, ou talvez à aquelas noites em que perdia momentaneamente a consciência seja pelos excessos de calmantes a que tinha livre acesso no seu pequeno paraíso das drogas sedativas, ou pelo excesso de álcool que consumia vez ou outra no bar ao lado do laboratório...quem monta um bar ao lado de um laboratório?
“Fecha a janela, estou me sentindo numa geleira...”
Assim que as pálpebras se abriram deixando entrar um filete de luz, sua memória foi acendida e as informações passaram rapidamente para a sua realidade.
PESQUISA,RÚSSIA,ACIDENTE,MORTE,DOR,DESESPERO,MULHER MISTERIOSA...DESMAIO.
Repousou a mão em seu peito para garantir que estava inteiro, mal tinha tato, ao que parecia manteve-se muito tempo exposto ao frio, no mais em nada dava-se por falta, inclusive em seu bolso ainda permaneciam alguns cartões e documentos pessoais, olhou em volta, estava deitado na faixada de uma loja de penhores, ao seu lado pessoas passavam conversando como se ele parecesse invisível, a cabeça doía, sentia-se tonto e com muita fome, realmente tinha sido uma noite daquelas. Tratou de se levantar e recompor-se, viu sua silhueta espelhada no vidro da vitrine, parecia horrível, descobriu o motivo pelo qual as pessoas o estavam evitando, seu aspecto era de um mendigo bêbado.
O único pensamento que agora o assombrava era o motivo daquela criatura tão fascinante não ter usado seus dons para matá-lo, e principalmente em como ela o trouxe até lá, apesar de tudo sentiu algo dentro de si se satisfazer, afinal a sua maior dúvida foi saciada, ela não estava perdida tampouco desconhecia sua própria história, em contrapartida era notável que estava em perigo eminente e não via possibilidades de voltar a civilização.
Alexander não conseguia parar de pensar no motivo que a mantinha presa á aquela vida nômade, vendo as pessoas passarem cuidando de suas vidas imaginou a qual mundo aquela mulher pertencia, foi desperto de seus pensamentos quando seu estômago o lembrou que não tinha comido há muito tempo, o suficiente para seu olfato estar apuradíssimo, em meio a aquela multidão que se misturava ao gelo, sentiu um cheiro de comida fresca que emanava de uma porta do outro lado da rua.
Foram necessárias duas tentativas para ele conseguir se levantar do chão, deu mais uma checada em si pelo reflexo do vidro, ainda usava o casaco de seu motorista, não pôde deixar de lembrar de sua feição, era, apesar de tudo uma lembrança real daquilo que ele no fundo ainda acreditava ter sido um sonho. Atravessou a rua com tontura, estava extremamente cansado e com frio, antes de entrar apoiou as mãos na porta, sentiu- a quente, era incrível a diferença de temperatura do interior dos prédios comparado a exterior, repousou seu rosto na porta de madeira, os tremores do seu corpo congelado já se tornaram mais amenos, de repente sentiu uma leve perda de equilíbrio, a porta estava entreaberta e foi como se perdesse o chão, levemente a superfície foi escapando pelos seus dedos deixando-o à mercê do ar, foi impulsionado para dentro com o peso do próprio corpo da forma mais desengonçada que poderia ser, não soube ao certo de onde tirou equilíbrio para manter-se em pé, olhou ao redor e viu que sua plateia não fora tão extensa como imaginou, haviam três mesas ocupadas, uma com um casal e seu bebê, a outra parecia um homem que também tivera um dia daqueles, e na terceira uma mulher folheando uma revista de moda.
Todos de imediato olharam o forasteiro que acabara de empurrar a porta do ambiente que só não estava inteiramente em silêncio pela música de fundo que soava, Alexander notou uma ligeira distorção nos lábios das pessoas, umas segurando o riso, e outras apenas esbravejando ao barulho que atrapalhou seu silêncio.
Tentando agir de forma sorrateira, ele foi esgueirando-se por entre as mesas enquanto tinha uns pares de olhos curiosos o observando, notou que ao fundo como de costume encontravam-se duas portas com os dizeres universais característicos, banheiro masculino. Não pensou em mais nada, apenas se dirigiu a porta, lá dentro era grande e confortável, incrivelmente limpo, o que seria mais raro do que aquilo, afinal?
Debruçou-se na pia, novamente vendo seu rosto debatido, confirmando sua aparência depreciável, ao ligar a torneira percebeu que saía água quente, logo foi tomado por um grande sorriso, não era sempre que se encontrava água aquecida de graça, quando suas mãos afundaram na pequena poça que formava na pia sentiu seu corpo recarregar a energia, não demorou muito pra ele abaixar-se e mergulhar nela como um pássaro em um chafariz, algumas esfregadas no rosto e percebeu sua feição ganhando vida, ajeitou seu cabelo enquanto pensava que já estava na hora de cortar novamente, odiava que qualquer coisa tocasse seu rosto, sentia-se vulnerável, fez o possível pra mantê-lo para trás.
Devido ao ar condicionado do ambiente aquele casaco pesado acabou por aquecê-lo demais, ele não viu destino melhor pra aquilo do que a lata de lixo na saída do banheiro. Agora menos envergonhado sentiu-se novamente um homem comum que não era digno de olhares desconfiados, já que teve a sorte de entrar em um restaurante, sentiu-se na obrigação de nutrir seu corpo com qualquer tipo de comida, logo, dirigiu-se ao balcão onde estava um homem checando sua antiga porém funcionante caixa registradora, não pôde deixar de se sentir curioso pois aquela máquina já não era mais usada há anos no lugar de onde vinha, mas ao se deparar com Alexander de olhos fixados, do seu ponto de vista no dinheiro que estava contando, o homem por trás do balcão sentiu-se ameaçado, fechando com certa força a pequena gaveta que separava as notas e encarando-o com ar de superioridade.
Alexander retornou de seus pensamentos longínqüos, com o olhar contente tentou se comunicar sem grande sucesso:
- Eu estou com fome...poderia me ver o cardápio?...
Apesar de ter grande aptidão para ciências biológicas, o russo sempre lhe foi uma grande incógnita, o que o impedia de sequer tentar falar uma palavra no idioma local.
- Comiiida... – Dizia fazendo gestos com as mãos como quem brinca de mímica.
No mesmo instante, chegou sorrateira uma figura e sentou-se na cadeira ao lado do rapaz, que sequer notou sua presença enquanto discutia e tramava uma forma para ser entendido. A figura tocou seu braço levemente, o que o fez recolher a voz imediatamente, antes mesmo de olhar pro lado ouviu uma voz tranquila e delicada que falava russo muito bem, ao virar o rosto encontrou uma senhora de estatura baixa, franzina, usava roupas pesadas que mal dava para distinguir seu corpo, o cabelo longo e branco se fechava em uma trança muito bem feita, apesar de notoriamente ser uma senhora de bastante idade, tinha uma beleza que ainda brilhava nitidamente. Logo ele viu o senhor se retirar para a cozinha ordenando algumas coisas a cozinheira que se encontrava lá dentro.
- Borsch.
- O...O que?
- Sopa...de beterraba, eu pedi pra nós. – Disse a senhora com um sorriso.- é a melhor coisa pra quem voltou de uma longa viagem, e também que gosta de beterraba.
Apesar de estar impressionado pelo fato daquela senhora falar sua língua, não pode deixar de se assustar com revelações tão nítidas.
- Como a senhora sabe que eu gosto de beterraba? Eu a conheço?
- Não menino, você não conhece, eu só deduzi pela sua maneira de entrar por aquela porta.
- Eu não entendi... – disse ainda curioso
- Ah, achei que pela maneira de entrar por aquela porta você soubesse que aqui fazem a melhor sopa de beterraba.
Alexander sentiu corar, não sabia realmente o porquê.
- Eu não vi a senhora quando entrei aqui.
- ...mas eu o vi muito bem de onde estava...
- Eu sou Alexander, obrigado pela ajuda.
- Alexander é um nome incomum por aqui, está apenas de passagem?
- B...bom...eu fui mandado aqui, por um motivo peculiar...
- Ah...a vida eterna...é um bom motivo para alguém de tão longe ter passado por tanta coisa, mas ainda assim eu acho uma perda de tempo...
As palavras que ele ia dizer se embaralharam antes de saírem por sua boca, começara a pensar que aquela senhora, por um motivo ainda desconhecido, sabia mais sobre ele do que poderia imaginar.
- ...você não acha meu jovem?
- ...o quê?...
- Brincar com a vida é muito perigoso, tanto com o adiamento dela, quanto com o fato de abreviá-la. Essa busca de poder tem machucado muitos inocentes, não é bom escavar fundo quando não tem certeza do que pode encontrar.
- Espere, como a senhora sabe o que eu vim fazer aqui?
- ...porque muitas pessoas tem vindo aqui por esse mesmo motivo... meu jovem, estou falando isso para o seu bem, eles te mandaram aqui para morrer.
Alexander estava confuso, seu coração disparou ao pensar na possibilidade daquele ocorrido ter sido premeditado. Mesmo com o medo de dizer qualquer palavra a aquela senhora, ele não se conteve em perguntar:
- Aquilo que aconteceu comigo foi premeditado? Me empurraram do penhasco?
A senhora olhava fixamente a pilha de garrafas que estavam empilhadas no chão enquanto movia os dedos pelo balcão.
- Não me refiro ao acidente... minha preocupação maior é a sua ideia de querer refazer os passos daquela tragédia apenas para revê-la.
A certeza que pairava na cabeça de Alexander era a de estar sendo observado por aquela figura há muito tempo, a pior parte era que talvez ela estivesse observando seus pensamentos.
Nisso, antes que ele pudesse dar um passo para trás e sair correndo pela porta, o senhor da caixa registradora chegou com dois pratos de sopa fumegantes junto a um pedaço de pão, balbuciou alguma coisa á senhora e pareceu voltar a seus afazeres em seguida.
- Você não vai comer?
Olhando para o prato disposto na mesa, ele pareceu por um instante se desligar do universo a seu redor, repousou a mão sob a colher e só conseguia achar aquilo incômodo, não sabia o que fazer.
- Eu preciso saber o que ela é...
A velha senhora fixou os olhos nos dele, agarrando-o pelos ombros e disse num tom ameaçador:
- Ela não é o que vocês malditos cientistas estão procurando, ela não é imortal, por favor, você está correndo perigo entrando nessa parte do mundo...
- ...a senhora não entende, eu sinto que preciso ajudá-la... - disse levantando a voz e afastando-a de perto de si-...ela não está lá porque quer, não é?
Os olhos dele demonstravam sinceridade, a gratidão que ele sentia por ela e a curiosidade que foi despertada, ela sentia que foi a mesma que ela teve quando a estranha menina branca lhe fora apresentada.
- Ela não pode ser ajudada...- disse numa voz quase inaudível a senhora enquanto pegava a colher da mão do rapaz. - ...precisa comer, não vai durar muito por aqui desse jeito depois de todos os ferimentos que conseguiu naquela queda... tem sorte por ter encontrado ajuda. – disse enquanto colocava uma colher cheia na boca dele.
A mente de Alexander se encheu de questionamentos, tantos que parecia que ia explodir num mar de dúvida.
A comida quente despertou-o assim que entrou para seu estômago, o gosto sequer o importou pois a sensação de ser aquecido e nutrido era incomparável, pensou nas milhares de vezes que já havia tomado sopa, em nenhuma delas sentiu-se vivo. Após duas colheradas ele mesmo se encarregou de terminar com o prato, foi em questão de minutos para notar se o fundo branco da louça que se via lindamente pintada com flores azuis, a vontade e a fome foram saciadas logo assim que a senhora lhe ofereceu o seu prato sobrepondo em cima do prato vazio, o segundo foi mais demorado e melhor degustado, até o ar frio se tornou relaxante e fresco, após a refeição o rapaz se mostrou mais disposto a instigá-la.
- A senhora precisa me contar o que está acontecendo aqui.
- Você não vai desistir não é mesmo?...
5. UMA DESCOBERTA
A casa era grande, parecia ser antiga mas notava se que fora construída para resistir aos piores desastres que aquele lugar poderia proporcionar, não era nem de longe humilde, tinha 2 andares e ao que ele conseguia contar, talvez umas dez janelas, se assimilava a um pequeno prédio de cor escura, era o que dava pra ver apesar de estar coberta de neve, as paredes eram de madeira nobre e notava-se de longe que eram grossas, ele se imaginou quantas pessoas poderiam caber naquele pequeno monumento histórico que estava a sua frente.
- Entre, meu jovem... – disse a senhora empurrando com um pouco de dificuldade o portão para si, a neve que caiu enquanto caminhavam foi o suficiente para cobrir seus pés e endurecer as dobradiças do grande portão da casa.
Os metros caminhados até a porta foram mais dificultosos do que parecia, o frio era doloroso e deixava as coisas muito mais lentas, tudo naquela casa tinha detalhes bonitos, foi o que ele notou quando se aproximou, tudo com pequenos desenhos e gravuras que combinavam com o ar frio e sombrio que fazia no cair da noite. Quando a porta foi aberta, ele se deparou com a casa vazia e uma grande quantidade de poeira, parecia que as janelas nunca eram abertas, cada passo dado ecoava até as portas do segunda andar.
- Não acho que deva me estender...- disse a senhora retirando o pesado casaco que levava nas costas, Alexander pôde notar a silhueta magra e franzina mais de perto, usava um vestido vermelho e pequenos sapatos pretos, entre um emaranhado de colares conseguiu notar um pequeno aparelho pendurado que não soube ao certo o que era, a senhora se aproximou de uma estante que parecia ser de uma cor avermelhada, puxou com dificuldade de lá uma caixa grande e pesada, lá continha ao que parecia um emaranhado de papéis e pastas. Tirou de lá muitos documentos colocando-os numa mesa onde estava uma máquina de escrever, ligou uma pequena luminária que tinha uma boa luz. - ...me deixe procurar...- foleava uma pilha de papéis até chegar a uma pasta vermelha, havia uma gravura em caracteres russos, logo abaixo estava escrito: Experimento 27.
A senhora entregou a pasta nas mãos de Alexander, que sentou-se numa cadeira à beira da luz da luminária, abrindo a pasta cuidadosamente.
Nela continha alguns papéis que alternavam pequenas palavras traduzíveis, sendo a maioria em russo, logo acima preso ao restante, uma foto de uma criança, branca e franzina com roupas laranja segurando uma placa vermelha com o número 27. Aqueles olhos azuis quase transparentes eram únicos demais para serem confundidos, o macacão laranja que vestia parecia ser o mesmo, exceto pelas costuras estarem no lugar, e a gravura no bolso poder ser vista claramente, a mesma gravura da pasta que segurava, era igualmente enorme para o corpo de uma criança, seu olhar era triste e parecia apavorada.
- é ela... a...a mulher que me resgatou e me salvou da morte... ela está presa...desde quando era uma criança?
- Eu a batizei de Rose quando a conheci...
A senhora levantou a gola do vestido revelando seu pescoço, nele uma cicatriz curiosa aparecia, um círculo formado de pequenas ondulações.
- Ela também já me salvou da morte...mesmo eu não merecendo...
CONTINUA...