Fogo

Na gigantesca tela que ocupava toda uma parede da sala de estar da confortável residência dos Holcroft, surgiu uma imagem de devastação onírica: a encosta de uma montanha, por onde, entre rochas negras e solo calcinado, rios de lava corriam desprendendo fumo e árvores incineradas erguiam seus galhos nus contra um céu crepuscular, no qual ainda brilhavam as últimas estrelas. Nuvens rosadas prenunciavam o raiar do dia, e um brilho dourado no horizonte marcava o local onde iria nascer o Sol. Ao fundo ouvia-se uma música melancólica, cujo volume foi reduzido quando o locutor começou a falar:

- Este foi o mundo que abandonamos. Um mundo que precisou ser purificado pelo fogo para destruir o Mal que continha.

No sofá da sala, os Holcroft - pai, mãe e um casal de filhos pequenos - apresentavam um ar de atenção concentrada, embora já tivessem visto aquela apresentação pelo menos uma vez por ano desde que se entendiam por gente. Na tela mural, o cenário enegrecido foi substituído por uma chuva devastadora, que caía do céu em cataratas, arrastando tudo em seu caminho.

- E após tudo ser queimado, as cinzas foram lavadas e levadas para que o mundo se tornasse fértil outra vez.

Sob um céu azul pontilhado de nuvens brancas, a encosta da montanha reverdeceu. As árvores desgalhadas voltaram a ganhar folhas e flores. Pássaros coloridos esvoaçavam pelo cenário e pequenos animais corriam pela relva. Em seguida, surgiu um casal de meia-idade caminhando em direção à câmera, mãos dadas, ar confiante estampado nos rostos. Quando estavam suficientemente perto para serem enquadrados da cintura para cima, o homem falou para a câmera:

- Este é o mundo que construímos para cada um de vocês, e que cada um de vocês mantém de pé todos os dias, com seu trabalho e suas boas ações. Digam seus nomes, para que possamos ouvi-los.

Vendo que o casal na tela aguardava em serena expectativa, os Holcroft ergueram-se de mãos dadas. O pai fez as apresentações:

- Eu sou Martin Holcroft, e esta é Margareth, minha esposa, Michael e Maryanne, meus filhos.

Na tela, o casal sorriu. Ainda de mãos dadas, ergueram os braços livres num gesto de bênção e disseram em uníssono:

- Martin Holcroft... nós acolhemos a sua família na nossa!

A imagem da dupla na tela desvaneceu-se lentamente. Por um instante, parecia que deles só restaria o sorriso, como o do Gato de Cheshire, mas depois este também desapareceu. O símbolo da emissora surgiu, ocupando o centro da tela.

Os Holcroft se abraçaram, cheios de contentamento.

- Eu sinto uma felicidade imensa quando os Pais nos acolhem na Família... - disse Margareth, os olhos úmidos. - É uma sensação tão boa que não posso descrever!

- Pena que isso só aconteça uma vez por ano - ponderou o pai. E para as crianças:

- O que acharam da comemoração do Dia do Fogo este ano?

Maryanne, a caçula, olhou para o pai encabulada:

- Eu não gosto daquela parte em que aparece tudo queimado...

- Aquele era o mundo de antes da Família - disse o pai. - É para ter medo mesmo.

- E como era esse mundo, pai? - Indagou o menino.

- Era um mundo onde as pessoas não se reconheciam como sendo parte de uma família. Todos brigavam entre si, tinham opiniões diferentes...

- E por que era assim? - Insistiu o menino.

- Porque as pessoas liam! - Exclamou o pai.

- Era um hábito primitivo - aduziu a mãe. - As telas são muito melhores, não é preciso ler nada!

- Mas por que as pessoas liam, pai? - Quis saber Maryanne.

- Porque elas se achavam no direito de ter opiniões diferentes das outras. E isso só causava ainda mais brigas. Cada um queria fazer as coisas do seu jeito, e não do jeito certo!

- E é por isso que os bombeiros queimam livros, - explicou a mãe - para que esse hábito maldito que quase nos destruiu, nunca mais volte!

Maryanne olhou para os sapatos e depois encarou timidamente a mãe:

- Mas mãe... o que são livros?

- [03-06-2017]