A DIFÍCIL ARTE DE LIDAR COM PATRULHEIROS DO TEMPO
A DIFÍCIL ARTE DE LIDAR COM
PATRULHEIROS DO TEMPO
Miguel Carqueija
Inclinado sobre a minha mesa de trabalho, eu lançava uma sucessão de fórmulas, de equações e inequações, no papel A4. Havia uma idéia vaga em meu cérebro. Se tivesse valor possivelmente levaria anos para desenvolve-la. Claro, tudo iria para o computador, mas eu gostava de iniciar com a caneta. É mais humano.
Então aconteceu. Um momento, eu havia olhado para o lado, vendo a parede cor de caramelo, a grande fotografia de Gillian Anderson colada ao lado do relógio-cuco, e a mesa cheia de miniaturas que faziam lembrar o Dementia 13 de Roger Corman e Francis Ford Coppola. Voltei a olhar para o papel, avancei um pouco nos cálculos e tomei a olhar para o mesmo ponto...
Lá estava ele.
— Não se assuste, professor Aveleira, por favor ! — foi dizendo o rapaz, fazendo um gesto tranqüilizador.
- Não se preocupe. Eu nunca me assusto, nem mesmo com os planos do governo. Mas quem é você e como entrou aqui ? A propósito, não vou dar nenhum baile a fantasia.
- Eu sei disso, professor. Mas essa é a minha roupa mesmo, e isso aqui no meu cinturão é uma pistola de raio laser. O senhor pode não acreditar, mas eu vim do século XXIII e tenho a missão de matá-lo.
Eu girei a cadeira para encará-lo melhor e respondi: - Se você vai matar alguém, não pode avisá-lo previamente.
- Mas, professor, o que posso fazer? Também penso assim, mas os regulamentos da Patrulha do Tempo são muito rígidos. E uma das regras incontornáveis, como nós as chamamos quando de todo obrigatórias, é essa de que se vamos executar alguém, a pessoa visada tem o direito de saber que vamos matá-la, e de ser informada sobre as razões.
- Lindo! Edificante! Tanto mais que, se eu entendi bem, vocês nos julgam a revelia e já nos comunicam a sentença, sem nenhum direito à defesa. Não é isso?
Ele parecia pouco à vontade e, sendo tão jovem e coberto de sardas, era difícil leva-lo a sério.
- Será que o senhor me permite sentar um pouco? Afinal eu talvez demore, tenho que lhe explicar tudo e esclarecer suas dúvidas... é muito chato.
- Meu caro rapaz, se você não acha necessário pedir a minha permissão para me tirar a vida, porque se preocupar em pedir essa permissão para puxar uma cadeira e sentar um pouco? Tanto mais que essa sua ridícula roupa futurista, que me faz lembrar uma história do Mickey e do Pateta que eu li há quarenta anos, parece muito rígida e desconfortável. Além disso eu não gosto de falar com gente em pé; fico nervoso.
Ele puxou a cadeira e se sentou, parecendo cada vez mais encabulado. Se tivesse sotaque lusitano pareceria até o Roberto Leal na década de sessenta, mas o seu sotaque era qualquer coisa de turco com cearense.
- Obrigado, professor Aveleira... agora, se me permite eu vou lhe explicar...
- Olhe aqui, já que você interrompeu meu trabalho, a minha linha de pensamento, com o risco de me causar um prejuízo irreparável, porque o pensamento criativo não deve ser contido, espero que não se importe se eu comer alguns sucrilhos. Ajudam a manter minha mente alerta!
- Não, é claro que não!
- Espero também que não se importe com os ruídos, pois eles são crocantes. Além disso espero que não se importe se eu não lhe oferecer um floco sequer, ou mesmo um copo d’água. Não sei se as viagens temporais dão sede, mas acho desaforo ser um bom anfitrião com quem entra em minha casa para me matar. Fui bem claro?
- Oh, sim, senhor. Fique tranquílo, não quero nada. Só quero terminar logo com tudo isso e retornar para o meu tempo.
- Isso é algo bastante problemático, se me permite uma ilação.
- Como assim, senhor?
- As implicações de uma viagem no tempo... já parou para pensar no assunto ?
Pela primeira vez ele pareceu relaxar um pouco e até deu um sorriso de superioridade.
- Ora, professor! Na minha época isso é um problema resolvido... já dominamos á técnica.
- Bom, há umas coisas a esse respeito que eu desejo esmiuçar... mas agora me diga logo, enquanto eu vou comendo os sucrilhos, porque é que vocês do futuro querem que eu morra.
- É muito simples, professor. Dentro de cinco anos o senhor vai inventar a bomba de táquions. Ela vai causar problemas muito sérios à civilização. Como resultado direto das guerras e destruições que hão de ocorrer, no século XXIII vai surgir um tirano temível, o Stalin-Hitler.
- Como é que é?
- Isso é um apelido que pusemos nele. É que o homem é considerado tão ruim quanto o Stalin e o Hitler juntos...
- E qual é o nome desse anticristo?
- Não posso lhe dizer. Não devemos revelar coisas específicas do futuro, para evitar revelações e profecias que perturbem a sequência natural dos acontecimentos.
- Natural? Vocês ainda acham que é natural, com todo esse patrulhamento? Mas de qualquer forma você não vai me matar, daqui a pouco?
- É sim, mas... procure compreender... não posso ferir o regulamento...
Nesse momento o telefone tocou.
- Não fale nada, ouviu? – ele apontou-me a arma
Atendi, era o meu filho dizendo que havia batido com o carro e precisava de um socorro financeiro para arcar com o prejuízo.
- Você estava com a namorada?
- Estava...
- E quantos copos você tomou?
- Papai, por favor...
- Está bem. É muito tarde para resolver isso. Amanhã eu vejo isso com você, se eu estiver vivo, é claro. Agora tchau que estou com meus próprios problemas para resolver.
Desliguei o telefone e expliquei:
- Meu caro patrulheiro, é assim que as coisas acontecem na vida real. Interrupções inusitadas, inesperadas. Ou você acha que tem que ser tudo certinho como nessas novelas em que o sujeito telefona até para o presidente dos Estados Unidos e o dito cujo atende na hora? Porque na vida real a gente liga e a pessoa não está, ou dá sinal de ocupado, ou, inversamente, a gente está no meio de uma conversa importantíssima, como essa agora, e chegam visitas... Por falar nisso já pensou se chegassem visitas agora?
Tendo pousado a arma na mesa das miniaturas, ele ocultou o rosto entre as mãos.
- Pare! Pare! O senhor está me deixando louco!
- Onde você aprendeu essa frase? Será possível que no século XXIII a televisão ainda exibe o Chaves?
- Professor, podemos voltar ao fio da meada?
- Sim, claro... mas qual é o seu nome ? Afinal você sabe o meu.
- Bem isso não é contra o regulamento. O meu nome é Paulo Alfredo.
- Não acredito! Você podia ao menos ter um nome menos comum ! Pois no futuro vão existir nomes como Flash Gordon, Buck Rogers, Perry Rodhan, Spock, Lucky Star...
- O que é que eu posso fazer? Os meus pais não tinham muita imaginação.
- Bem, vamos voltar ao fio da meada. Você diz que eu vou inventar uma arma terrível que vai causar guerras e destruições de toda sorte e ensejar a aparição de um tirano bárbaro, sanguinário e perverso, que provavelmente arrastará o mundo a um conflito devastador. E só por isso vocês vão me matar?
- O assunto foi exaustivamente discutido pelo Conselho de Interferência da Patrulha Temporal...
- Oh, está bem, vamos esquecer esse detalhe por ora. Há uma outra coisa que está me preocupando.
- Ah, sim? O que poderá ser, além de ficar mastigando esses sucrilhos irritantes ?
- Muito simples. Fico imaginando como é que eu posso estar aqui conversando com uma pessoa que não existe.
- Que é que você quer dizer com isso? Asseguro-lhe que eu existo!
- Já se beliscou? Não, não faça isso, por favor. O resultado pode ser desastroso. Olhe aqui, seu Paulo Alfredo: já lhe ocorreu que você não existe, pelo simples motivo de que você não pode existir ?
- Como não posso? Você está querendo me confundir! Mas não vai conseguir nada!
Ele já havia trocado o tratamento, sinal evidente de uma sutil modificação nervosa.
- Vou lhe dizer: para que existam patrulheiros temporais, seria preciso que não existisse a lei de causa e efeito. Ora, essa lei existe e não pode apresentar falhas.
- Ora, professor Aveleira! Isso tudo já foi discutido! E a prova que essa lei não é absoluta está na existência da Patrulha Temporal...
- Você pode até acreditar na existência dessa patrulha, mas o fato é que a lei mencionada não pode apresentar falhas e vou lhe dizer porque. Se existisse uma única falha nessa lei, o universo não poderia existir. Ora, mas parece que existe, logo, não há falhas na lei e você não existe.
- Professor Aveleira! Está querendo me enrolar! Não está me vendo aqui, e falando comigo?
- Teremos, é claro, de buscar uma explicação razoável para esse estranho fenômeno que é a sua aparição aqui. De qualquer forma o ponto pacífico é que você não existe, e nem a patrulha temporal, e passarei a demonstrar.
“Veja por exemplo o que acontece se você retornar ao passado e alterar um acontecimento. Você viaja para o ano de 1889 e mata o Marechal Deodoro, impedindo-o de proclamar a república. Resultado : se nada mais interferir, continuamos a ser monarquia.
“Isto significa que hoje, eu pego o livro de história e leio que Deodoro proclamou a república. Amanhã, porque um intrometido como você resolveu mexer com o passado, eu vou pegar o livro e vou ler outra coisa, ler que mataram o Marechal e que D.Pedro II continuou como imperador. E a nossa memória dos fatos como é que fica? E todas as implicações no universo? Você acredita em Deus?
- Bem... isto é... não tenho uma opinião formada a respeito.
- Alguma ordem exterior ao homem existe no universo, meu caro. E você não vê que, se o passado puder ser alterado por um viajante do tempo, esse personagem deterá um poder divino: o poder de alterar o universo inteiro?
- Como o universo inteiro? Só um fato desse planeta...
- Só um fato, não! E o nosso planeta está interligado com o resto do universo! Você altera um fato, altera toda a história futura, o que irá influenciar a própria relação da Terra com os outros planetas. Ora, como é que um homem pode ter um poder assim? Você se julga Deus?
- É claro que não! Isso é ridículo! Nós não olhamos as coisas sob esse ângulo.
- Mas tem que olhar. Você já pensou no milagre estúpido que ocorre sucessivamente cada vez que vocês alteram a história? Como é que você explica a transformação das palavras nos livros impressos ou na memória dos computadores? Além disso, desde que os patrulheiros temporais se tornam coisa normal e corriqueira, nada mais é certo no mundo. Suponhamos que alguém não goste de você. Um dos seus coleguinhas da patrulha. Ou vocês nunca brigam? Ele não precisa tocar em você: basta voltar no tempo e assassinar o seu pai ou sua mãe. Aí você nem nasce. Já pensou que isso pode acontecer depois que você me executar? Aí, como você nem chegou a nascer, também não me matou, e consequentemente eu volto a existir novamente. A nossa conversa é que nunca existiu. Está alcançando o que eu quero dizer?
Notei que ele empalidecera e as suas mãos apresentavam um tremor ainda pouco perceptível.
- Meu Deus! Eu nunca... nunca fiz essas relações antes... mas não é possível... nós manipulamos a história várias vezes...
- Deveras? Vocês impediram o assassinato do Kennedy?
- Não, isso nós ainda vamos fazer... já está programado...
- Então esqueça! Não está vendo, seu burro, que se vocês vão fazer isso no futuro a coisa já foi feita, e Kennedy não foi assassinado? Pois para efetuarem essa mudança, não importa que estejam no futuro, terão de ir até ao passado, algo que mesmo em minha época já ocorreu há décadas, aí vocês já foram e a história já foi alterada. Mas não foi. Está entendendo, seu Paulo? Vocês não podem mudar o que já aconteceu, caso contrário eu faço um desafio: ainda há pouco não lhe ofereci sucrilhos. Acha que você pode retornar uns vinte minutos para que eu lhe ofereça, alterando assim a história recentíssima? Se fizer isso eu acreditarei.
- Bem... bem... deixa isso pra lá. Detesto sucrilhos.
- Além do que você correria o risco de se encontrar consigo mesmo. Ora, isso é filosoficamente impossível, pois você é uma pessoa só até prova em contrário. Se você se desdobrar vai alterar o equilíbrio universal, pois a sua massa, e das suas roupas também, terá dobrado. Mas aí terá surgido matéria a partir do nada, e isso nem o Big Bang fez. Além disso suponha que você se desentenda consigo mesmo, bata boca, saia no tapa. Haveria de ser muito engraçado.
- Mas essas coisas não acontecem! – gritou ele, parecendo estar se agarrando a uma tábua de salvação. – Nós somos proibidos de viajar no nosso próprio passado... Tais superposições são vedadas...
- E isso resolve o assunto? Que adianta proibir? Não seria melhor fazer a experiência para ver no que resulta? Provavelmente uma explosão do continente. Mas, que digo? Nem isso haveria, pois você é uma pessoa só, você não é duas. E se você pudesse se desdobrar a coisa não teria um fim. Que diz você de uns duzentos, trezentos, oitocentos Paulos Alfredos espalhados por aí? Mas não, é melhor nem pensar nisso. Seria muito chato.
Como ele nada falasse, prossegui implacavelmente: - Diga só uma coisa: você tem família ?
- Tenho, sim – respondeu ele, em tom completamente desanimado. Não parecia nada entusiasmado com a referência.
- E como é sua família?
- Uma mulher chata e irascível e duas crianças mal educadas e problemáticas. Por quê ?
- Porque, seu manipulador do tempo, se realmente você e sua patrulha existem, quem pode garantir que foi sempre assim? E se as manipulações que vocês fizeram alteraram sua própria vida pessoal? E se originalmente você tinha uma esposa maravilhosa, filhos espetaculares, um salário melhor... você tem cara de quem passa fome.
Ele já estava perdendo as estribeiras.
- Pare com isso, pare! Já não aguento mais ouvir ! Quem sou eu, afinal? Eu existo? A minha vida é real?
- Você não existe. Nem pelo tomismo nem pela física quântica. Você não passa de uma ilusão audiovisual!
- Eu não existo! Eu não existo! – gritou ele, crispando as mãos e pondo-se de pé, presa de uma emoção incontrolável. E enquanto gritava e soluçava foi se transformando em linhas, as linhas contínuas foram se pontilhando e por fim ele desapareceu no ar, como um fantasma.
Respirei aliviado e me levantei. Andei um pouco pelo aposento, certificando-me de que nem pó de pirlimpimpim havia sobrado daquele visitante e, de volta à minha mesa de trabalho, pus-me a rasgar as anotações.
Por via das dúvidas, o melhor seria não contribuir para possíveis desgraças futuras... além do mais, da próxima vez poderiam enviar um sujeito menos burro...
A DIFÍCIL ARTE DE LIDAR COM
PATRULHEIROS DO TEMPO
Miguel Carqueija
Inclinado sobre a minha mesa de trabalho, eu lançava uma sucessão de fórmulas, de equações e inequações, no papel A4. Havia uma idéia vaga em meu cérebro. Se tivesse valor possivelmente levaria anos para desenvolve-la. Claro, tudo iria para o computador, mas eu gostava de iniciar com a caneta. É mais humano.
Então aconteceu. Um momento, eu havia olhado para o lado, vendo a parede cor de caramelo, a grande fotografia de Gillian Anderson colada ao lado do relógio-cuco, e a mesa cheia de miniaturas que faziam lembrar o Dementia 13 de Roger Corman e Francis Ford Coppola. Voltei a olhar para o papel, avancei um pouco nos cálculos e tomei a olhar para o mesmo ponto...
Lá estava ele.
— Não se assuste, professor Aveleira, por favor ! — foi dizendo o rapaz, fazendo um gesto tranqüilizador.
- Não se preocupe. Eu nunca me assusto, nem mesmo com os planos do governo. Mas quem é você e como entrou aqui ? A propósito, não vou dar nenhum baile a fantasia.
- Eu sei disso, professor. Mas essa é a minha roupa mesmo, e isso aqui no meu cinturão é uma pistola de raio laser. O senhor pode não acreditar, mas eu vim do século XXIII e tenho a missão de matá-lo.
Eu girei a cadeira para encará-lo melhor e respondi: - Se você vai matar alguém, não pode avisá-lo previamente.
- Mas, professor, o que posso fazer? Também penso assim, mas os regulamentos da Patrulha do Tempo são muito rígidos. E uma das regras incontornáveis, como nós as chamamos quando de todo obrigatórias, é essa de que se vamos executar alguém, a pessoa visada tem o direito de saber que vamos matá-la, e de ser informada sobre as razões.
- Lindo! Edificante! Tanto mais que, se eu entendi bem, vocês nos julgam a revelia e já nos comunicam a sentença, sem nenhum direito à defesa. Não é isso?
Ele parecia pouco à vontade e, sendo tão jovem e coberto de sardas, era difícil leva-lo a sério.
- Será que o senhor me permite sentar um pouco? Afinal eu talvez demore, tenho que lhe explicar tudo e esclarecer suas dúvidas... é muito chato.
- Meu caro rapaz, se você não acha necessário pedir a minha permissão para me tirar a vida, porque se preocupar em pedir essa permissão para puxar uma cadeira e sentar um pouco? Tanto mais que essa sua ridícula roupa futurista, que me faz lembrar uma história do Mickey e do Pateta que eu li há quarenta anos, parece muito rígida e desconfortável. Além disso eu não gosto de falar com gente em pé; fico nervoso.
Ele puxou a cadeira e se sentou, parecendo cada vez mais encabulado. Se tivesse sotaque lusitano pareceria até o Roberto Leal na década de sessenta, mas o seu sotaque era qualquer coisa de turco com cearense.
- Obrigado, professor Aveleira... agora, se me permite eu vou lhe explicar...
- Olhe aqui, já que você interrompeu meu trabalho, a minha linha de pensamento, com o risco de me causar um prejuízo irreparável, porque o pensamento criativo não deve ser contido, espero que não se importe se eu comer alguns sucrilhos. Ajudam a manter minha mente alerta!
- Não, é claro que não!
- Espero também que não se importe com os ruídos, pois eles são crocantes. Além disso espero que não se importe se eu não lhe oferecer um floco sequer, ou mesmo um copo d’água. Não sei se as viagens temporais dão sede, mas acho desaforo ser um bom anfitrião com quem entra em minha casa para me matar. Fui bem claro?
- Oh, sim, senhor. Fique tranquílo, não quero nada. Só quero terminar logo com tudo isso e retornar para o meu tempo.
- Isso é algo bastante problemático, se me permite uma ilação.
- Como assim, senhor?
- As implicações de uma viagem no tempo... já parou para pensar no assunto ?
Pela primeira vez ele pareceu relaxar um pouco e até deu um sorriso de superioridade.
- Ora, professor! Na minha época isso é um problema resolvido... já dominamos á técnica.
- Bom, há umas coisas a esse respeito que eu desejo esmiuçar... mas agora me diga logo, enquanto eu vou comendo os sucrilhos, porque é que vocês do futuro querem que eu morra.
- É muito simples, professor. Dentro de cinco anos o senhor vai inventar a bomba de táquions. Ela vai causar problemas muito sérios à civilização. Como resultado direto das guerras e destruições que hão de ocorrer, no século XXIII vai surgir um tirano temível, o Stalin-Hitler.
- Como é que é?
- Isso é um apelido que pusemos nele. É que o homem é considerado tão ruim quanto o Stalin e o Hitler juntos...
- E qual é o nome desse anticristo?
- Não posso lhe dizer. Não devemos revelar coisas específicas do futuro, para evitar revelações e profecias que perturbem a sequência natural dos acontecimentos.
- Natural? Vocês ainda acham que é natural, com todo esse patrulhamento? Mas de qualquer forma você não vai me matar, daqui a pouco?
- É sim, mas... procure compreender... não posso ferir o regulamento...
Nesse momento o telefone tocou.
- Não fale nada, ouviu? – ele apontou-me a arma
Atendi, era o meu filho dizendo que havia batido com o carro e precisava de um socorro financeiro para arcar com o prejuízo.
- Você estava com a namorada?
- Estava...
- E quantos copos você tomou?
- Papai, por favor...
- Está bem. É muito tarde para resolver isso. Amanhã eu vejo isso com você, se eu estiver vivo, é claro. Agora tchau que estou com meus próprios problemas para resolver.
Desliguei o telefone e expliquei:
- Meu caro patrulheiro, é assim que as coisas acontecem na vida real. Interrupções inusitadas, inesperadas. Ou você acha que tem que ser tudo certinho como nessas novelas em que o sujeito telefona até para o presidente dos Estados Unidos e o dito cujo atende na hora? Porque na vida real a gente liga e a pessoa não está, ou dá sinal de ocupado, ou, inversamente, a gente está no meio de uma conversa importantíssima, como essa agora, e chegam visitas... Por falar nisso já pensou se chegassem visitas agora?
Tendo pousado a arma na mesa das miniaturas, ele ocultou o rosto entre as mãos.
- Pare! Pare! O senhor está me deixando louco!
- Onde você aprendeu essa frase? Será possível que no século XXIII a televisão ainda exibe o Chaves?
- Professor, podemos voltar ao fio da meada?
- Sim, claro... mas qual é o seu nome ? Afinal você sabe o meu.
- Bem isso não é contra o regulamento. O meu nome é Paulo Alfredo.
- Não acredito! Você podia ao menos ter um nome menos comum ! Pois no futuro vão existir nomes como Flash Gordon, Buck Rogers, Perry Rodhan, Spock, Lucky Star...
- O que é que eu posso fazer? Os meus pais não tinham muita imaginação.
- Bem, vamos voltar ao fio da meada. Você diz que eu vou inventar uma arma terrível que vai causar guerras e destruições de toda sorte e ensejar a aparição de um tirano bárbaro, sanguinário e perverso, que provavelmente arrastará o mundo a um conflito devastador. E só por isso vocês vão me matar?
- O assunto foi exaustivamente discutido pelo Conselho de Interferência da Patrulha Temporal...
- Oh, está bem, vamos esquecer esse detalhe por ora. Há uma outra coisa que está me preocupando.
- Ah, sim? O que poderá ser, além de ficar mastigando esses sucrilhos irritantes ?
- Muito simples. Fico imaginando como é que eu posso estar aqui conversando com uma pessoa que não existe.
- Que é que você quer dizer com isso? Asseguro-lhe que eu existo!
- Já se beliscou? Não, não faça isso, por favor. O resultado pode ser desastroso. Olhe aqui, seu Paulo Alfredo: já lhe ocorreu que você não existe, pelo simples motivo de que você não pode existir ?
- Como não posso? Você está querendo me confundir! Mas não vai conseguir nada!
Ele já havia trocado o tratamento, sinal evidente de uma sutil modificação nervosa.
- Vou lhe dizer: para que existam patrulheiros temporais, seria preciso que não existisse a lei de causa e efeito. Ora, essa lei existe e não pode apresentar falhas.
- Ora, professor Aveleira! Isso tudo já foi discutido! E a prova que essa lei não é absoluta está na existência da Patrulha Temporal...
- Você pode até acreditar na existência dessa patrulha, mas o fato é que a lei mencionada não pode apresentar falhas e vou lhe dizer porque. Se existisse uma única falha nessa lei, o universo não poderia existir. Ora, mas parece que existe, logo, não há falhas na lei e você não existe.
- Professor Aveleira! Está querendo me enrolar! Não está me vendo aqui, e falando comigo?
- Teremos, é claro, de buscar uma explicação razoável para esse estranho fenômeno que é a sua aparição aqui. De qualquer forma o ponto pacífico é que você não existe, e nem a patrulha temporal, e passarei a demonstrar.
“Veja por exemplo o que acontece se você retornar ao passado e alterar um acontecimento. Você viaja para o ano de 1889 e mata o Marechal Deodoro, impedindo-o de proclamar a república. Resultado : se nada mais interferir, continuamos a ser monarquia.
“Isto significa que hoje, eu pego o livro de história e leio que Deodoro proclamou a república. Amanhã, porque um intrometido como você resolveu mexer com o passado, eu vou pegar o livro e vou ler outra coisa, ler que mataram o Marechal e que D.Pedro II continuou como imperador. E a nossa memória dos fatos como é que fica? E todas as implicações no universo? Você acredita em Deus?
- Bem... isto é... não tenho uma opinião formada a respeito.
- Alguma ordem exterior ao homem existe no universo, meu caro. E você não vê que, se o passado puder ser alterado por um viajante do tempo, esse personagem deterá um poder divino: o poder de alterar o universo inteiro?
- Como o universo inteiro? Só um fato desse planeta...
- Só um fato, não! E o nosso planeta está interligado com o resto do universo! Você altera um fato, altera toda a história futura, o que irá influenciar a própria relação da Terra com os outros planetas. Ora, como é que um homem pode ter um poder assim? Você se julga Deus?
- É claro que não! Isso é ridículo! Nós não olhamos as coisas sob esse ângulo.
- Mas tem que olhar. Você já pensou no milagre estúpido que ocorre sucessivamente cada vez que vocês alteram a história? Como é que você explica a transformação das palavras nos livros impressos ou na memória dos computadores? Além disso, desde que os patrulheiros temporais se tornam coisa normal e corriqueira, nada mais é certo no mundo. Suponhamos que alguém não goste de você. Um dos seus coleguinhas da patrulha. Ou vocês nunca brigam? Ele não precisa tocar em você: basta voltar no tempo e assassinar o seu pai ou sua mãe. Aí você nem nasce. Já pensou que isso pode acontecer depois que você me executar? Aí, como você nem chegou a nascer, também não me matou, e consequentemente eu volto a existir novamente. A nossa conversa é que nunca existiu. Está alcançando o que eu quero dizer?
Notei que ele empalidecera e as suas mãos apresentavam um tremor ainda pouco perceptível.
- Meu Deus! Eu nunca... nunca fiz essas relações antes... mas não é possível... nós manipulamos a história várias vezes...
- Deveras? Vocês impediram o assassinato do Kennedy?
- Não, isso nós ainda vamos fazer... já está programado...
- Então esqueça! Não está vendo, seu burro, que se vocês vão fazer isso no futuro a coisa já foi feita, e Kennedy não foi assassinado? Pois para efetuarem essa mudança, não importa que estejam no futuro, terão de ir até ao passado, algo que mesmo em minha época já ocorreu há décadas, aí vocês já foram e a história já foi alterada. Mas não foi. Está entendendo, seu Paulo? Vocês não podem mudar o que já aconteceu, caso contrário eu faço um desafio: ainda há pouco não lhe ofereci sucrilhos. Acha que você pode retornar uns vinte minutos para que eu lhe ofereça, alterando assim a história recentíssima? Se fizer isso eu acreditarei.
- Bem... bem... deixa isso pra lá. Detesto sucrilhos.
- Além do que você correria o risco de se encontrar consigo mesmo. Ora, isso é filosoficamente impossível, pois você é uma pessoa só até prova em contrário. Se você se desdobrar vai alterar o equilíbrio universal, pois a sua massa, e das suas roupas também, terá dobrado. Mas aí terá surgido matéria a partir do nada, e isso nem o Big Bang fez. Além disso suponha que você se desentenda consigo mesmo, bata boca, saia no tapa. Haveria de ser muito engraçado.
- Mas essas coisas não acontecem! – gritou ele, parecendo estar se agarrando a uma tábua de salvação. – Nós somos proibidos de viajar no nosso próprio passado... Tais superposições são vedadas...
- E isso resolve o assunto? Que adianta proibir? Não seria melhor fazer a experiência para ver no que resulta? Provavelmente uma explosão do continente. Mas, que digo? Nem isso haveria, pois você é uma pessoa só, você não é duas. E se você pudesse se desdobrar a coisa não teria um fim. Que diz você de uns duzentos, trezentos, oitocentos Paulos Alfredos espalhados por aí? Mas não, é melhor nem pensar nisso. Seria muito chato.
Como ele nada falasse, prossegui implacavelmente: - Diga só uma coisa: você tem família ?
- Tenho, sim – respondeu ele, em tom completamente desanimado. Não parecia nada entusiasmado com a referência.
- E como é sua família?
- Uma mulher chata e irascível e duas crianças mal educadas e problemáticas. Por quê ?
- Porque, seu manipulador do tempo, se realmente você e sua patrulha existem, quem pode garantir que foi sempre assim? E se as manipulações que vocês fizeram alteraram sua própria vida pessoal? E se originalmente você tinha uma esposa maravilhosa, filhos espetaculares, um salário melhor... você tem cara de quem passa fome.
Ele já estava perdendo as estribeiras.
- Pare com isso, pare! Já não aguento mais ouvir ! Quem sou eu, afinal? Eu existo? A minha vida é real?
- Você não existe. Nem pelo tomismo nem pela física quântica. Você não passa de uma ilusão audiovisual!
- Eu não existo! Eu não existo! – gritou ele, crispando as mãos e pondo-se de pé, presa de uma emoção incontrolável. E enquanto gritava e soluçava foi se transformando em linhas, as linhas contínuas foram se pontilhando e por fim ele desapareceu no ar, como um fantasma.
Respirei aliviado e me levantei. Andei um pouco pelo aposento, certificando-me de que nem pó de pirlimpimpim havia sobrado daquele visitante e, de volta à minha mesa de trabalho, pus-me a rasgar as anotações.
Por via das dúvidas, o melhor seria não contribuir para possíveis desgraças futuras... além do mais, da próxima vez poderiam enviar um sujeito menos burro...