A Última Gota

O mundo se acabava em chuva. Félix Nogueira contemplava o temporal do último andar do prédio onde trabalhava. O expediente acabara há tempo suficiente para a maioria do pessoal já ter ido embora. Só ele permanecia ali por um motivo que nem ele sabia qual. Observava os desenhos que as gotas faziam no vidro, iluminadas pelas luzes coloridas da cidade. Um fascínio ocasional que o acometia vez ou outra – sentir a linha do tempo suspensa por um momento no qual passado e futuro deixavam de existir e só havia um vazio profundo, onde algo rastejava infinitamente, nas profundezas onde ele não era capaz de alcançar. Félix suspirou e já ia pegar suas coisas para ir embora quando julgou ter lido algo na janela. Duas letras se formaram nas gotas que banhavam o vidro:

– Oi

"Caralho" – Pensou Felix. – "Eu tô precisando mesmo de férias". – Um ponto de interrogação surgiu na frente da palavra.

– Oi?

– O-o-oi. – Gaguejou ele, sentindo-se bastante estúpido por isso.

Rapidamente, outras palavras se moldaram na superfície do vidro:

– Quer saber?

Félix ficou parado, esfregando as mãos nos olhos, para então olhar novamente as palavras escritas claramente.

"Isso só pode ser um sonho!" – Disse para si mesmo e mais três palavras foram moldadas pelas gotas na janela.

– Quer saber? Ou não quer?

– Que-quero! – "mas que porra é essa?!"

Rapidamente, as palavras se transformaram em outra, de maior tamanho:

– Sobe.

– O quê?

A palavra "sobe" se transformou em uma seta apontando para cima, como se um jato de ar preciso moldasse a água com fina habilidade.

Félix Nogueira subiu as escadas que levavam a cobertura do prédio, tendo certeza que a porta, como de costume, estaria trancada e isso poria um fim naquela loucura toda. Então ele poderia ir para casa tranquilamente assistir um seriado medíocre qualquer, mas que aparentemente todo mundo estava vendo e adorando, e se masturbar umas duas vezes antes de dormir lá pra depois da meia noite, deprimido por saber que teria que acordar antes das 6:00. Mas, para sua surpresa, a porta estava aberta, foi só encostar e ela se abriu para a noite tempestuosa.

Chuva e vento forte castigavam uma aeronave que ele julgou ser algum tipo de helicóptero. Do lado dela estava um homem vestindo uma grande capa de chuva escura, o capuz cobrindo a cabeça, segurando o que parecia um cachimbo de plástico... um brinquedo?

Félix deu dois passos sob a chuva, instantaneamente ensopando-se da cabeça aos pés, e gritou para o estranho homem:

– É agora que você me mata? Ou vai me levar vivo pra tirar os órgãos ainda frescos? Só vou avisando que meu fígado não é dos melhores, mas acho que as bolas dão pro gasto! – Ele falava com sádica indiferença, mas então a porta pela qual passara se fechou e ele caiu de joelhos.

E chorou.

Enquanto chorava o parecia que todas as suas lágrimas se uniam à chuva. Parecia que uma versão maior de si estava lá em cima chorando todos os seus prantos ocultos. E que mesmo aquela quantidade de água que caía do céu não era suficiente para colocar para fora tudo o que sentia. Toda aquela coisa nas profundezas que o espreitava pelo canto do olho, nos momentos onde a rotina parecia parar e dá espaço para o que havia além.

Viu todos os seus dias vividos envoltos numa penumbra de vazio. Nada do que fizera parecia relevante o suficiente no momento. Tantos dias desperdiçados com... com o que mesmo? O que havia? Nada. Nada. Nada. Um vazio infinito.

– Você é a morte? – Disse Félix, entre um soluço e outro.

– Alguns, em outros lugares, me chamam disso, ou de Anjo da Morte, pra ser mais exato... mas, foda-se! – ele ergueu as mãos – que diferença faz?

A tempestade intensificou-se e as rajadas pareciam capazes de rasgar e jogar pra longe as roupas de Félix. Era assim que ele se sentia de qualquer forma – nu sob a chuva. Nada para se esconder atrás e fingir que estava tudo bem. Nenhuma desculpa para dar. Era como se a tempestade o levasse para o céu em meio a raios e trovões e o fizesse contemplar o todo lá de cima. O todo de sua vida que insistia tanto em se parecer com um imenso nada.

Quando finalmente parou de chorar, percebeu que a chuva já não caía. O vento soprava inexoravelmente quase arrancando a capa escura do corpo do homem que ainda o esperava em frente à aeronave – e vez ou outra assoprava aquela coisa que parecia um cachimbo de brinquedo.

– Não se preocupe, eu não tenho foice, se é disso que tem medo... alguns parecem que sim... Já consegue ficar de pé? – Disse o homem, puxando o capuz para trás da cabeça, revelando uma barba parcialmente grisalha em um rosto velho e jovial ao mesmo tempo, com o que Félix julgou ser um sorriso irônico.

O rapaz se ergueu e disse:

– Sim. – E quando o fez, o horizonte no leste explodiu em luz – como se o sol estivesse lá há séculos, só esperando por aquela palavra.

Sua voz, pela primeira vez desde que subira até ali, soou firme.

– Então vamos? – O homem disse, e se virou na direção da aeronave.

A expressão no rosto de Félix agora parecia bem mais leve que minutos antes.

– O que estamos esperando? – disse ele, dando um passo.

Sorria.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 06/05/2017
Reeditado em 11/12/2017
Código do texto: T5991209
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