A pior parte

- Inspetor Hasselblad?

Wilmer Hasselblad, que até então estivera imerso na contemplação das ondas arrebentando contra a praia de areia cinza, virou-se ao ser chamado. À sua frente, Carlo Celestini, representante da Pesquisa Colonial em Brennan-IIb, planeta situado nos limites da Federação Galática.

- Como está, Celestini? - Indagou Hasselblad. Os dois homens apertaram-se as mãos, demonstrando genuína satisfação em se ver.

- Melhor, agora que está aqui para lidar com os azerianos!

Hasselblad abriu um sorriso.

- Ah, bem que eu desconfiava que o convite não era só para comer um "polpettine di mare"!

- Mas é o melhor "polpettine di mare" deste lado da Galáxia! E tem também um "scampi a zuppetta" absolutamente fantástico...

- Bem... primeiro o trabalho - interrompeu-o Hasselblad, antes que a lista se tornasse exaustiva.

* * *

Brennan-IIb era um planeta com massa de 1,3 Terras, quase que totalmente coberto por oceanos. Orbitava uma estrela alaranjada, par menos brilhante de um sistema binário centralizado por uma estrela classe A. A Pesquisa Colonial planejava instalar ali um posto avançado e algumas pequenas colônias humanas nas poucas terras emersas, praticamente nenhuma das quais maior do que a superfície total da Nova Zelândia. Os problemas, contudo, haviam começado quando os azerianos, espécie inteligente que já possuía uma colônia em Brennan-Id, haviam questionado a presença dos humanos em Brennan-IIb.

- Os azerianos nos acusam de querer ficar com a melhor parte - explicou Celestini para Hasselblad.

- "A melhor parte"? - Indagou intrigado Hasselblad.

- A língua azeriana é complicada de transpor em termos humanos, mas essa foi a melhor tradução que conseguimos.

- Por "melhor parte" será que querem dizer "levar vantagem"? O que poderia haver de tão importante nessas ilhotas de Brennan-IIb?

- Nada que eles não tenham em Brennan-Id. E que, aliás, possui maravilhosos continentes emersos, com milhões de quilômetros quadrados para colonização.

Uma suspeita brotou na mente de Hasselblad.

- Em termos fisiológicos, qual é a classificação dos azerianos?

- Fisiologia? ANTR.

- ANTR... respiram água, correto?

- Sim, naturalmente.

- E Brennan-IIb é coberto por mares. Provavelmente, devem querer dizer que estamos ocupando um espaço que seria melhor utilizado por eles.

- Mas... isso não faz sentido! Os azerianos sabem que só pretendemos colonizar as ilhas, e que cidades subaquáticas ou coisa parecida não nos interessam.

- Acho que vou precisar ir até Brennan-Id falar com os azerianos - disse Hasselblad, expressão pensativa.

* * *

Ao descer em Brennan-Id, mundo ligeiramente menor do que a Terra, mas com gravidade equivalente, Hasselblad reconheceu a veracidade das palavras de Celestini. O planeta era praticamente o oposto de Brennan-IIb, com grandes massas continentais cobertas por vegetação azulada, e mares mediterrâneos, inexpressivos. Para os azerianos, criaturas semelhantes a pequenos elasmossauros cinzentos, de pescoço curto e cauda em forma de pá, com uma cabeça cilíndrica na qual sobressaía uma boca circular rodeada de pequenos tentáculos que faziam às vezes de órgãos de manipulação, viver ali não devia ser uma experiência das mais memoráveis.

Para recepcionar os visitantes respiradores de oxigênio atmosférico, os azerianos haviam construído algumas instalações de superfície próximas ao principal mar interno do planeta. Dele, partiam túneis subaquáticos que levavam até piscinas dentro das instalações, por onde eles podiam se deslocar graciosamente sem depender da locomoção bamboleante proporcionada por suas quatro nadadeiras palmípedes.

Foi para uma dessas salas, dominada por uma grande piscina circular, que Hasselblad foi conduzido por um robô. Os azerianos eram dependentes do trabalho das máquinas construídas pelos humanos, como outras espécies inteligentes que não possuíam órgãos de manipulação tão eficientes quanto braços e dedos e/ou tentáculos. Um hidrofone dentro da piscina transmitia os sons emitidos pelo azeriano, o qual já aguardava a chegada do inspetor.

Hasselblad sentou-se num banco de plástico em frente à piscina, e aguardou que o azeriano se manifestasse. Houve um pequeno "delay" enquanto o Tradutor Universal fazia a conversão dos apitos e silvos que pareciam ser todo o repertório vocal azeriano, em palavras inteligíveis.

- Eu sou Mike - apresentou-se o azeriano. O nome não tinha qualquer importância, era apenas um modo dos interlocutores humanos saberem com quem estavam falando, já que os nomes próprios azerianos eram impronunciáveis. Também parecia não existir o conceito de hierarquia entre eles: faziam assembleias, e alguém era escolhido como representante para falar pelos demais. A mensagem transmitida sempre era a mensagem do grupo.

- Eu sou Hasselblad - respondeu o inspetor.

- Estamos decepcionados com vocês - disse a voz monocórdia do Tradutor Universal. - Estamos profundamente magoados com vocês.

- Seja lá o que for que tivermos feito, não foi intencional, em absoluto - asseverou Hasselblad.

- Vocês nos deram "uaachói" e nos convidaram para vir para este lugar novo quando o antigo foi ameaçado - prosseguiu Mike. "Uaachói", plural de "uachói", era uma expressão azeriana para máquinas complexas. Máquinas complexas podiam ser praticamente de qualquer tipo: computadores, robôs, astronaves etc. Antes do contato com a Federação, os azerianos só possuíam "uaacha" - máquinas simples, como alavancas, por exemplo.

Hasselblad aguardou, enquanto o Tradutor Universal lutava com o idioma azeriano.

- Se estamos vivos hoje, é pela intervenção de vocês. Por isso, nos convencemos de que, apesar de sua estranheza física e extrema feiura, vocês eram criaturas merecedoras de nossa admiração. Mas vocês não parecem corresponder ao Coletivo.

"Corresponder ao Coletivo?", pensou Hasselblad intrigado.

- Demonstramos nossa gratidão escolhendo a pior parte entre os dois lugares novos. Seres realmente compassivos saberiam o que fazer então!

Subitamente, fez-se luz na mente de Hasselblad.

- Você tem razão, Mike. O que fizemos foi absolutamente vergonhoso. Eu peço perdão em nome do Coletivo. Voltarei à parte melhor para reparar isso.

* * *

Hasselblad deu um tapinha amigável nas costas de Celestini, enquanto ambos observavam os robôs desmontarem a estrutura da base da Pesquisa Colonial e levarem tudo para uma astronave de carga pousada numa grelha próxima.

- Calma, Celestini! Isso é temporário.

Celestini olhou para ele, desconsolado.

- Precisamos mesmo ir embora e deixar tudo para os azerianos, inspetor?

Hasselblad balançou afirmativamente a cabeça.

- Quando resgatamos os azerianos do seu mundo, que estava prestes a ser destruído por erupções solares, e os trouxemos para o sistema Brennan, pedimos que optassem entre os dois planetas habitáveis aqui existentes: Brennan-Id e Brennan-IIb, onde estamos. Para nós, humanos, essa seria uma escolha óbvia: optaríamos pelo mundo que nos fosse mais agradável. Só que para os azerianos, a partir do momento em que os salvamos da destruição, nós não nos tornamos benfeitores, mas azerianos honorários. E um verdadeiro azeriano não teria perguntado qual planeta deveria escolher, pois a resposta seria óbvia. Não passou pela nossa cabeça que eles escolheriam justamente a pior opção apenas para testar o nosso senso de "humanidade", se me entende. E fomos reprovados.

Celestini balançou a cabeça em concordância.

- Então, precisamos abandonar o planeta e trazer os azerianos para cá...

- Que era o que deveríamos ter feito desde o início, sem lhes perguntar nada. Os azerianos não sentem que nos "devem" alguma coisa. Esse conceito é desconhecido para eles. Sabem apenas que não correspondemos às necessidades do Coletivo. Portanto, chegou a hora da reparação.

Hasselblad olhou para o alto. O dia ia pelo meio, mas no céu arroxeado, Brennan-I era visível como uma estrela extremamente brilhante.

- E, Celestini, tão logo o Coletivo tenha nos perdoado, apesar de toda nossa estranheza e feiura, provavelmente farão um gesto de boa vontade nos convidando para colonizar as ilhas deste planeta. Aí, você me convida para aquele "polpettine di mare"...

Hasselblad tinha razão. De fato, nem demorou tanto tempo assim.

[05-04-2017]