Fibras óticas

0x01 Aquela imagem surgiu em seus olhos, os mesmos olhos configurados com proteção de raios UV e capacidade de zoom, lhe subtraindo a atenção de outras dinâmicas do ambiente, reduzindo a sua capacidade de calcular momentaneamente.

Pisou numa flor que serpenteava pela rachadura do asfalto como que de maneira byronica. Notificou as articulações que compõem os seus joelhos ao dobrá-los para se direcionar à flor. Os olhos buscaram rastrear de que espécie se tratava a partir de seu design, uma tentativa em vão. O design na flor, que antes se resumia ao reconhecimento de biocódigos que lhe são próprios, apresentara derrepente outras características até então imperceptíveis. Talvez tenham estado o tempo inteiro.

Percebeu que possuía um sistema conforme o vírus alastrava-se em seu corpo. Lhe irrompeu, então, uma possibilidade: que toda a sua gestualidade, seus gostos, desejos, haviam sido programados. Notou enquanto a contaminação se efetuava mais intensamente, desarranjando cada coordenação sua. Um corpo - era o que tinha!

0x02 Em meio a violinos que cintilam uma canção funesta para os vivos - o regozijo de uma existência onde viver e morrer se confundem -, entreolharam-se, interpenetrando-se em meio aos demais corpos que se movimentavam naquele ambiente. Puseram-se em direção um ao outro como estrategistas num campo de batalha.

Mirou-lhe com mais precisão os olhos, tal como um franco-atirador já preparado para apertar o gatilho a sangue frio. Diagnosticada a gênese do contágio, é a vez de contê-lo. Mostrou-se incapaz de articular uma equação que não portasse resultado em zero.

Mirou contra si, num movimento de roleta-russa. Concentrou-se calor na fronte de seu rosto. Deparou-se com um diagnóstico até então impassível de consideração: possuía também finitude o seu corpo.

0x03 O corpo se encontra camuflado por uma identidade mitofísica, ao passo que as suas partes se tratam de pedaços acoplados com linha de nylon cirúrgica semelhantes à de um pianoforte. Pedaços de mortos, deve-se salientar. E no fim das contas, nos compusemos assim, costurando pedaços de mortos em "nossos" corpos não tão nossos assim, para uma sinfonia macabra onde dançam os desejos como vampiros que nos tomam de supetão no crepúsculo de nossas certezas. Essa inclinação aos escritores e artistas já mortos sugere algo de necrófilo em nossas paixões. Violamos o túmulo-livro, o túmulo-música, o túmulo-quadro, e anexamos pedaços de seus cadáveres aos "nossos" corpos.

0x04 A fumaça, uma dançarina imanente, sucumbe à preciosidade do Nada no ar, enquanto a mão projetada num dos mais respeitados institutos de produção de andróides do Primeiro Mundo possibilita o encontro arrebatador do café com os lábios de silicone. Dali em diante, saberia dizer: o gosto trata-se de vício, podendo ser abdicado a qualquer momento de sua rotina. Vício atacado por um sistema imunológico que conceitua uma sensação como boa ou má, prazerosa ou desprazerosa, a partir de dualismo, oposição e hierarquização. Não buscaria o prazer. Não correria esse risco, sabia, ainda que se inclinasse vez ou outra sobre o parapeito da janela do trigésimo primeiro andar onde se encontrava. Uma vista incrível, um olhar que se lançava sobre os algoritmos da distância acima de prédios - então meras formas geométricas que se cumprimentam por convencionalidade social e tão somente, baixo um céu tempestuoso mutilado por algumas lâminas de sol.

O prazer, descodificado de uma suposta natureza, vacila entre notas gestionadas pela fricção metálica dos dedos sobre a superfície vítrea de uma mesa no centro da sala.

O sofrimento gargalha. Ecoa. Sua audição o busca.

Senta-se.

Fecham-se as cortinas e se apagam as luzes.

Dedicado aos supercílios

Inaê Diana Ashokasundari Shravya
Enviado por Inaê Diana Ashokasundari Shravya em 25/03/2017
Reeditado em 11/09/2019
Código do texto: T5951227
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