Eu Quero é Ser Sedado
Um atrevimento pelos campos da ficção científica, no estilo "punk".
Zav corria descalço pela grama úmida. A chuva cessara, e o azul do céu era cortado por um arco íris. O vento balançava os galhos das árvores e desmanchava os cachos loiros do cabelo da mulher que acompanhava com os olhos brilhantes o desempenho do rapaz.
Despertado por uma suave música, Zav recordou-se do sonho, enquanto braços mecânicos ajeitavam os lençóis e travesseiros do leito. Aliás, só conhecia aquele mundo vislumbrado por apresentações virtuais. Ele sempre viveu no Quadrante Alfa, somente se deslocava daquele camarote para a grande cúpula. O que se podia ver dali, através da descomunal redoma, era um exterior sempre cinzento e nebuloso.
Depois das pandemias, veio a desvitalização genética, a alimentação inapropriada; a escassez era natural, a terra perdera a força de germinar a semente, agora com uma temperatura média de sessenta graus Celsius. As armas químicas de alto potencial degenerativo das bases moleculares deixaram o ecossistema no planeta suscetível de falência. Aconteceu aniquilamento de boa parte da civilização. Somado ao aumento das micro-convulsões sociais, pouco a pouco, o modo de vida terráqueo sofreu mudanças sistêmicas irreversíveis, a natureza vista até meados do século XXI desapareceu. Criou-se um novo modelo de organização sócio-urbana em estufas do tamanho correspondente a vinte quadras, com atmosfera e iluminação artificiais.
O Fora se tornou inadmissível como habitat, não havia água potável, somente grandes extensões expandidas dos oceanos, que foram ganhando espaço devido ao derretimento das geleiras; as espécies haviam sido extintas, a vida na Terra fora reduzida à do homem e suas invenções dentro das plataformas. O que valia era sobreviver, e nesta batalha o preço alto do existir era sob o domínio da automação.
A ciência permitiu vida longeva àqueles que se predispunham a serem capsulados numa nova formatação que melhorasse suas capacidades; transformaram-se numa espécie de humanóides, dotados de partes orgânicas e cibernéticas. Viviam armazenados em campos específicos dos centros. Estas eram as informações que lhes eram transmitidas, todo o conhecimento que acessavam.
A fala do Mentor trouxe a mente do rapaz de regresso à palestra:
— Aprendizes, todos nós somos resultantes da fecundação in vitro, em ambiente controlado e recombinação genética necessária para a função que cada um de nós tem na comunidade. Neste grupo, o nível intelectivo foi preservado e ampliado, a memória de nascença é alimentada por hologramas...
Zav era portador de capacidades superiores às do homem comum. Compunha um seleto grupo de concebidos com a finalidade específica de tornar a civilização mais equilibrada e sustentável. A convivência se restringia àquele Quadrante em que conduziam o trabalho. Sempre ordem e disciplina.
Entretanto... Algo saíra errado no crossover de Zav — pensava demais, sentia-se diferenciado, não aceitava as limitações, desejava sair da cúpula. Contestava as informações que recebera sobre o mundo do Fora, planejava confrontos. Ele foi gerado para ser pensante e sua mente investigativa impedia que fosse manipulado. Eram diversas as questões que o incomodavam: se a população de humanóides era cerca de cinco bilhões, como viveriam enclausurados, quais os recursos de que dispunham? O Mentor, que contava duzentos e trinta anos, teria vivido somente Dentro?
O jovem tentou expor a sua dificuldade em obedecer meticulosamente às regras, mas o que sempre vislumbrava era um intricado quebra-cabeça. Questionar era um risco; era explorar o desconhecido; ninguém sabia o que poderia acontecer. Os outros Pensantes mostravam-se alinhados, focados na direção pré-determinada.
— Besteira! Por que nos fariam acreditar neste mundo? — respondiam nas conversas em baixa voz; ainda aconselhavam Zav a não se desviar.
— Esteja em paz! Não existem operações secretas! Segredos perturbadores estão apenas em sua mente. — com esta resposta, o Mentor o persuadia a assumir o papel que lhe fora confiado.
A oportunidade surgiu; a imaginação é capaz de exorcizar as crenças limitadoras. As plantas da construção vieram para seu companheiro, encarregado da manutenção; às escondidas, Zav estudou o mapa, as passagens, memorizou cada detalhe. Restava encontrar a solução para os implantes cerebrais, os sensores de presença. Foi uma lida de meses, muitos sobressaltos; a segurança era prioridade naquele setor, mesmo na intimidade a vigilância era intensa dificultando os passos do rebelde. Ele sondou os encarregados de cada setor, com mestria, captou dados úteis e acabou por obter sucesso, conseguiu desplugar todos os conectores e criar uma falsa posição que iludisse o controle. Montou um GPS com orientações de um manual antigo, organizou uma bagagem mínima com itens que acreditava necessitar no Fora, pílulas-alimento e, sobretudo, preparou o espírito para a aventura a que aspirava viver. Graças à camuflagem eletrônica, ele planejava voltar antes que notassem sua ausência...
Zav atravessou a área proibida, o Portal à frente começa, assim, a se abrir. A fresta já mostrava a luz do outro lado. Todos os seus sentidos vibraram! Não estava preparado para aquela visão!
Os hologramas de estudo do passado mostrariam o quadro contemplado pelo jovem como um dia de folga no parque. Era o ambiente ideal para quem buscasse um espaço de lazer. A natureza era magnífica, nuvens densas e macias, sombras de árvores, espelhos d’ água, coretos, e campos, a perder de vista, semeados de flores multicoloridas. Seria mais uma das projeções oníricas ou o local era real? Haveria de ser a verdade já que faltavam crianças e outras espécies animais. Esta era a substancial diferença entre o passado e a atualidade, além da presença dos robôs nas mais diversas formas, das novas formas de transporte e de comunicação, da ausência de poluição e da miséria. Por que a mentira? Por que Madre iludiria os Pensantes?
Zav ia levitando, graças ao mecanismo que mantivera ao deixar a Cúpula, em direção às habitações; penetrava no espaço e em um mundo que jamais imaginou existir. O instinto lhe dizia que aquela travessia implicava não em um engrandecimento pessoal, mas em um apagar da consciência para integrar-se ao coletivo, para enxergar a dimensão suprema. O resultado seria reavaliar toda a dimensão histórica.
Uma rapariga abordou o moço, que, no momento, já se encontrava mais refeito dos impactos da mudança de ambiente. A naturalidade com que ela se achegou foi surpreendente, livre de qualquer constrangimento. Ela era esguia e tão bela quanto as mulheres admiradas nas imagens difratadas; não estranhou a cabeça enorme do visitante, o corpo disforme de membros diminutos, a calvície e os olhos grandes, formatados para enxergar em graus diferenciados. Aliás, nem percebeu que era um ser vindo de outra esfera que aquela. Ela foi sua guia por um tempo de observação em que ia percorrendo aquele universo tão próximo e tão distante. Ele contatou outros seres que tiveram as mesmas reações de indiferença e aceitação...
Zav, então, entendeu a essência do trabalho que desenvolvia — os Hormons, as pílulas da aptidão, da alegria permanente, da alienação total, da inconsequência. Era assim que Madre dominava a população do Fora. Os do Dentro criavam os elementos necessários, as máquinas executavam o trabalho, os humanos viviam para o lazer, as cápsulas traziam a submissão...
Um laboratório em céu aberto. A curiosidade fez o Pensante retardar o regresso. Mais um tempo, mais experimentos... A jovem falara em sexo, sua curiosidade maior. Por que não? Estava no Fora mesmo. Mas, não estava pronto para aquilo. A moça ofereceu uma drágea, que ele reconheceu como Hormons. Por um instante teve dúvidas sobre o efeito no seu corpo franzino; temendo o remorso, rapidamente engoliu o comprimido. Pareceu-lhe que entrara em mutação, o poder espalhou-se por todas as entranhas. Zav vivenciou uma experiência singular, orgasmos contínuos, frêmitos, a natureza... Aquele prazer único entorpeceu-lhe a racionalidade, foi se tornando íntimo do novo e impassível reino. Desejava mais e mais...
O encantamento era renovado a cada outra atividade, a cada nova dose do Hormons: nadar, correr, jogar, competir; e o mais instigante, a comunicação, o contato com outro ser, a fuga do isolamento. Estas práticas lhe roubavam as energias para o retorno. Zav ia se estabelecendo ali, na proporção em que a ponderação se esmorecia. Não sabia mais quanto tempo era transcorrido, a exultação física o consumia. Seria difícil haver retorno.
Três andróides, vindos da cúpula por tubos despressurizados, projetavam imagens de Zav para a Madre.
— Abortar. Elemento contaminado. — proferiu a voz metálica e remota. — Aplicar o soro antimemória.
Zav perdeu-se em deleites indefiníveis, no entanto algum defeito ocorrera no crossover dele. Relances de outra linhagem o atormentavam. Entre uma pílula e outra, cristalizava-se um mito bizarro, e o cérebro enlouquecido começava a analisar a dualidade de tudo, bem e mal, certo e errado, gosto e não gosto, dominantes e dominados, sentia a vida construída dessa forma, em pares de opostos. Nestes clarões, mirava a cúpula escondida entre as nuvens e imaginava como seria estar lá. Percebia, em lampejos, que pensar é que constrói a noção de um eu, tomava consciência dialética. Até quando suportaria a rotina de prazeres? Se fosse um Pensante...
O porquê da mentira ficou evidenciado. O Dentro não precisava conhecer o Fora. O físico não poderia conscientizar sobre o espírito. Era o ritual derradeiro de uma cadeia cultural a se cumprir no nada absoluto.
“Nothing to do, nowhere to go, oh
I wanna be sedated”
(I Wanna Be Sedated – The Ramones)
Tradução: Nada para fazer, nenhum lugar para ir, oh
Eu quero ser sedado
I wanna be sedated”
(I Wanna Be Sedated – The Ramones)
Tradução: Nada para fazer, nenhum lugar para ir, oh
Eu quero ser sedado