Entropia final

ENTROPIA FINAL

(Miguel Carqueija)





“Eu sou o Alfa e o Ômega”

(Ap. 1,8)


A tela de gravidade era circular e nela as linhas apareciam em belas cores, geralmente rosadas
ou azuladas, que raramente se contorciam freneticamente. Agora, focalizadas no abismo negro, diluíam-se
num círculo escuro no centro do aparelho.
A Dra. Flavia Hernando aproximou-se de mim, olhou tristemente para a tela e observou:
— Você está fascinado com esse espetáculo. Mas não sei se adivinha o que eu já adivinhei.
Considerei-a. Colombiana, 48 anos, única sul-americana a bordo, era tida como uma cientista de
elevada reputação. Em nossa expedição ela mantinha-se ou era mantida algo à parte, para o que se podiam
aventar várias hipóteses explicativas: sua nacionalidade (embora falasse bem o inglês), sua religiosidade
(que a separava daqueles cientistas positivistas ou agnósticos que eram maioria a bordo) ou talvez sua
personalidade introspectiva.
— Imagino que isso representa um perigo para daqui a bilhões de anos – sugeri, não de todo a sério.
— Gostaria que viesse ao meu escritório. É uma coisa que eu prefiro falar em particular.
— Acompanhei-a; ela fechou a porta, convidou-me a sentar e mostrou - me uns mapas astronômicos
onde se viam diversas crateras negras.
-— Você é um escritor e talvez por isso tenha a mente mais aberta do que a maioria dos cientistas,
que são excessivamente preconceituosos. Você sabe o que é e como se forma uma cratera negra?
— Uma estrela entra em colapso e forma uma região de gravitação tão forte que nem a luz pode
escapar, e ainda chupa a matéria em volta, não é isso?
— Assim se crê. O processo é complexo e só deve ocorrer com estrelas de volume muito grande:
primeiro o sol entra em colapso, implodindo; aí forma-se um horizonte incidente, além do qual a luz não
passa, e a estrela atinge então o “ponto de singularidade”, onde, supõe-se, não funcionam as leis tradicionais
da Física. O buraco negro está pronto e já pode atuar como uma voragem, ou um ralo no espaço.
— Dizem que dois buracos negros podem se juntar, não é?
— É correto e já foi observado. Mas agora compreenda: comprovamos esse objeto tão próximo do
Sistema Solar. Nunca se observara um abismo negro a tão pouca distância de um sol e seus planetas – e é
logo junto ao nosso sistema que ele se encontra. Meus colegas hesitam em reconhecer, mas eu já percebo
que as linhas gravitacionais do Sistema Solar estão sendo distorcidas. Todo o nosso sistema poderá ser
puxado para o interior do abismo negro e isso não é para daqui a bilhões de anos, mas muito menos.
— E não há meio de impedir? Temos tempo e com o avanço da Ciência...
— Receio que a Ciência seja impotente para modificar os profundos desígnios de Deus. Não, Solón,
o que nós hoje assistimos apenas confirma o que sabemos há séculos: que a energia se dispersa e que o
Universo tende a ficar indiferenciado. Só que os abismos negros representam um apressamento do fenômeno.
Hoje em dia já orçam por milhões os pontos de singularidade conhecidos. Não passa um dia sem que algum
seja descoberto. Parecem brotar do nada.
“Eu imagino que a epidemia desses abismos anuncia a entropia final do universo. E não há força que
a isso possa se opor, pois é a própria Vontade Divina que está agindo.
Arrisquei uma pergunta sem muita importância:
— E você crê que devemos dizer isso no relatório?
Ela voltou-me as costas e fitou a janela panorâmica, de onde se podia avistar o horizonte de eventos:
— Meu caro, desde que me conheço sei o quanto são materialistas os relatórios. O que importa não é
isso. O que importa é que cada um de nós reconheça o quanto somos pequenos diante dessas maravilhas. Não
fiz da Ciência um ídolo. A Ciência sem Deus é um cadáver.
Apontou a medonha aparição do abismo negro:
— Veja como cai matéria por lá. Nuvens cósmicas, mais facilmente atraídas. Um processo lento mas
irreversível. Como vê, Solón, Ele nos mostra claramente que o Universo não é eterno.
“Só nos resta, agora, substituir a velha arrogância científica pela humildade profunda”.