AULA MAGNA
Cidadela, Rhea, 30 de agosto de 2015.
No gabinete de Aldo, uma janela de alumínio transparente dava ao sul. Através dela enxergavam-se, quatrocentos metros abaixo, as pistas de pouso e as estradas que conduziam às colônias ainda em construção, dentro de montanhas próximas, onde futuramente seriam colocados os xawareks de Japeto que trabalhariam no projeto do motor de dobra, denominado Empreendimento NX. (Novo Xawarek).
–Está na hora de cumprir sua promessa – disse Kern Mokvo, rosnando como um tigre furioso, talvez pela luz amarela.
Após milênios acostumados à luz desta região do espaço, os xawareks estavam esquecidos da forte e branca luz de Sírio, a não ser na sua fortaleza principal, onde instalaram luminárias de luz branca. Aldo virou-se de costas à janela e encarou os dois personagens. Zyphran Kohuáscar, o engenheiro, acrescentou de forma grosseira:
–A não ser que agora resolvesse ser traiçoeiro como afirmou que sua raça é.
–Se eu quisesse traí-los não teria me tomado ao trabalho de trazê-los aqui e construir moradias para vocês – disse Aldo friamente. Tinha que ser agressivo para impor respeito numa raça que prezava a força – Agora se sentem!
Os tigres obedeceram rosnando e coçando os olhos. Aldo também sentou detrás da sua mesa e após um estudado silêncio disse:
–Não sabemos nada de dobra espacial. Apenas teoria pobre e inexata.
–Imaginei isso – rosnou o cientista nascido em Japeto; descendente do primeiro engenheiro náufrago, cujo conhecimento fora transmitido de pais para filhos através de incontáveis gerações.
–Deveremos começar de zero – prosseguiu o líder terrestre – para tanto, vocês deverão instruir meus engenheiros com tudo o que precisam saber. Isso é fundamental para adquirir material em Taônia e no caso mandar trazer material do quinto planeta, onde temos bases. Acham que podem?
–Podemos. Quando começamos?
–Já. Meus engenheiros esperam na sala ao lado. Digam o quê precisam.
Kohuáscar puxou um computador de bolso que parecia uma agenda terrestre.
–Está tudo aqui. Só quero uma interface para seus computadores.
–Na sala ao lado há tudo o que precisam – disse Aldo levantando-se – venham!
A sala de reuniões estava iluminada com lâmpadas retiradas das instalações de Japeto, que geravam luz branca ao gosto dos sirianos e requeria uso de óculos escuros pelos terrestres.
Os engenheiros Henschel, Dreisen, Martinez e o comandante Boris; esperavam na sala com Regina como tradutora auxiliar.
Logo entraram os pilotos, entre eles Alan Claude, Kowalsky, Cikutovitch e Bjorn Petersen. Van der Grunn da Wodan e Karapsias da Vingador entraram junto com o engenheiro da Milenium, Márcio Vladimir Zenkner, filho do brigadeiro Carlos Frederico Zenkner da FAEB; e os capitães Cardelino, Regert e Stefansson.
Após as apresentações, o Dr. Zyphran Kohuáscar alisou seus bigodes, satisfeito com a luz, e iniciou sua Aula Magna.
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–Antes de tudo, seres; vou explicar a teoria. Como não podemos ultrapassar a velocidade da luz, que é uma constante, precisamos enganar a física. Para tanto devemos dobrar o espaço como uma folha de xil para encurtar distância entre um ponto e outro do quadrante; criando uma anomalia espaço temporal artificial; como as fendas ou túneis espaciais naturais que existem no universo e dobram ou atravessam o espaço, que é ilimitado, porém curvo e finito.
-Atalhos naturais aparecem de tanto em tanto em alguns quadrantes da galáxia, mas não se podem aproveitar porque não podemos controlá-los. São anomalias naturais de um universo em constante mudança.
-Precisamos criar anomalias controláveis, ou seja, abrir fendas artificiais que encurtem caminho em linha reta pelo subespaço e passar por elas, como se caminhássemos de popa à proa dentro de uma nave, que voasse de popa á proa dentro de uma nave maior e assim quase ao infinito... Entenderam o que é a sobreposição de velocidades?
Zyphran Kohuáscar estava se empolgando. Mais de uma vintena de seres absortos prestava-lhe atenção. Era mais interessante do que lecionar para seus filhos.
Após uma pausa no meio de olhares de assentimento, o cientista prosseguiu:
–A nave deve ir para o curso traçado pelo hiper direcionador programado pelo navegador, em distância, tempo e dobra apropriada; embora isto possa ser modificado no meio da viagem, segundo a ocasião o requeira.
-Para entrar no subespaço, as bobinas de dobra das nacelas gerarão uma fenda á frente, uma fenda em constante pseudo-movimento; cujo comprimento será igual a três longitudes da nave em dobra 1,0; para atingir a velocidade da luz; seis longitudes em dobra 2,0 (dobra 1,0 sobreposta dentro de dobra anterior), para atingir uma velocidade igual a dez vezes a da luz; doze longitudes em dobra 3,0 (dobra 2,0 sobreposta dentro de dobra anterior), para atingir uma velocidade igual a 39 vezes a da luz; vinte e quatro longitudes em dobra 4,0 (dobra 3 sobreposta dentro de dobra anterior) para atingir a velocidade igual a 102 vezes a da luz.
–Com 48 longitudes em dobra 5,0 (dobra 4,0 sobreposta dentro de dobra anterior) atingirá uma velocidade igual a 214 vezes a da luz. Para entrar no túnel ou dobra dentro de dobra deve-se acelerar a impulso máximo; um quarto da velocidade da luz... 74.940,62 kms por segundo, em medidas terrestres... É isso, tradutora?
–Sim doutor – disse Regina – está correto.
–Os deuses lhe deem filhos valentes – disse o felino, usando a expressão mais aproximada para obrigado em raniano, e que não existia na sua língua.
–Uma vez em dobra, navegar-se-á de olho no hiper direcionador e na tela de compensação de pseudo-velocidades, o que fará a nave entrar automaticamente em dobra 1,0 assim que chegar às proximidades do sistema solar desejado; a mais ou menos um quinto de parsec das proximidades da estrela. Então se poderá sair de dobra manualmente. Isto é fundamental para evitar um desastre.
Alan Claude e Aldo levantaram a mão simultaneamente.
–Ah! Perguntas!... – exclamou o cientista mostrando os agudos dentes afiados de felino carnívoro no que seria um sorriso de satisfação – Digam, senhores.
–Que tipo de desastre? – perguntou Alan Claude.
–A nave pode sair de dobra dentro de um planeta ou de um sol. Em ambos casos; seria o fim definitivo da caçada, coronel. O que ia perguntar, capitão?
–Então não é seguro sair de dobra dentro dos limites de um sistema solar?
–Não. Nem entrar; pelo estremecimento do espaço. Pode-se absorver algum pequeno corpo celeste ou nave que esteja nas proximidades. Deve-se sempre sair fora do sistema em impulso máximo ou dobra 1,0 a mais ou menos um quinto de parsec para ficar livre da influência solar e da poeira, que se faz importante nas proximidades de uma estrela. Não que não exista no espaço profundo; por isso a nave deve ser aerodinâmica e o escudo mais aerodinâmico ainda.
-A poeira interestelar pode frear ou destruir uma nave nessas pseudo-velocidades. Isso me lembra que vocês devem refazer seus escudos. Precisam um defletor sólido de pseudo-partículas alinhadas por campo.
-É o mesmo principio que vocês já dominam para controlar o fluxo de antimatéria. Vocês estão a um passo de consegui-lo. Nós não temos porque faltam elementos. Mas com o material taoniano; podemos fazer alguns protótipos.
–Nosso escudo capaz de parar uma bomba nuclear não é suficiente?
–Para as pseudo-velocidades que estamos falando não, capitão Al-Do. Além disso, o sistema gera o campo de compensação dos amortecedores inerciais.
–Para que servem? – perguntou Henschel.
–Para evitar que vocês sejam esmagados como insetos na parede de atrás da cabine durante a aceleração ou saiam disparados como torpedos pela janela da frente na freada... – disse o cientista, sorrindo de forma sinistra.
–O quê é tela de compensação de pseudo-velocidades? – perguntou Alan.
–Uma tela visual não afetada pelo... Como vocês chamam essa coisa... O efeito de afastamento da luz?
–Efeito Doppler – disse Alan Claude.
–Que seja. Pela janela perceberão escuridão, porque viajam mais rápido do que a luz, as estrelas serão linhas finas. Com a tela de compensação, parecerão quietas e vocês poderão ver onde estão. Isso é fundamental para evitar acidentes desagradáveis.
–É difícil construí-las? – perguntou Henschel.
–Não é. Podemos modificar algumas que temos ainda da nossa velha nave naufragada e vocês poderão duplicá-las, seguindo nossas especificações.
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Zyphran estava feliz. Tinha uma audiência à altura. Os seres aí reunidos faziam perguntas mais inteligentes que as dos filhotes xawareks; mais interessados em jogos de luta do que em estudar.
–Outros elementos importantes para a navegação são os sensores. Os de vocês são inferiores aos nossos de curta distância. Deverão construir sensores subespaciais de longa distância, que atinjam pelo menos uns três parsecs, ou seja, um pouco mais da distância de nossa estrela Xawarek, que vocês chamam...
–Sírio – completou Regina.
–Que seja. Para tal, temos bastantes deles em depósito, que vocês deverão copiar com sua tecnologia. Estes sensores só funcionam com a nave em dobra. Sensores de longa distância, escudos defletores, hiper-direcionadores. Estes são elementos fundamentais para uma nave estelar poder viajar em dobra.
–O quê é um hiper-direcionador? – perguntou Alan Claude.
–É um computador de navegação programado com o mapa tridimensional do quadrante da galáxia onde pretendemos navegar. Ele controla o leme, o motor de dobra e dirige a nave com segurança à região escolhida.
–Os nossos podem ser adaptados? – perguntou Henschel.
–Impossível, são binários. Deverão copiar o nosso. O sistema positrônico é o único possível de ser transformado. Os mapas deverão ser traduzidos para seu sistema de números e a perspectiva tridimensional deverá ser mudada para este sistema. O nosso está programado para Xawarek. É trabalho de programadores para muito tempo.
-Depois disso tudo, que é fundamental, passarei ao ponto mais importante antes de falar no gerador de dobra: o motor de impulso. Vocês usam a antimatéria para seu impulso, mas pelo que vi das suas naves; não aproveitam tudo o que ela pode dar.
-Para atingir impulso máximo devem mudar seu conceito para energia fotônica; seus motores fotônicos são fracos porque vocês não usam o plasma corretamente. Com as nossas modificações, as naves de hoje parecerão brinquedos.
–Não podemos adaptar as nossas? – perguntou Aldo.
–Em princípio sim. Mas deverão reforçar a couraça externa, que achei fraca. Seu planeta é leve, comparado ao nosso: 0,7G pelas nossas medidas. Precisam mais um processo no material que usam...
–Vitrotitânio – disse Aldo.
–Que seja. Haverá que aumentar sua dureza em dois pontos a nível molecular, ou revesti-lo com pranchas finas de 0,2, retemperadas em zero G. Talvez seja melhor construir novas pranchas de tri-titânio, endurecido a nível molecular fundidas às pranchas de vitrotitânio que vocês usam e trocar toda a fuselagem de suas naves. Acho que seria a melhor medida e menos demorado do que projetar novas naves.
–Pode ser feito – disse Aldo – estamos providenciando uma estação orbital em torno desta lua. A construção começa esta semana, como treinamento dos taonianos.
–Ótimo. Embora vocês deveriam construir suas naves do inicio, como pretendo construir a nossa. Falo disso mais adiante. Finalmente chegamos ao ponto principal; o motor de dobra, que deverá ser composto de um núcleo de antimatéria bem maior do que os brinquedos que vocês usam e cabem numa navezinha para dois tripulantes.
-O núcleo precisa um campo de contenção. Caso contrário a antimatéria encontrar-se-á com a matéria e ambas se autodestruirão e também o planeta onde a nave estiver. Para controlar o fluxo de antimatéria é preciso que seja injetada na matéria de maneira lenta e segura no reator para gerar energia para o impulso e o plasma de dobra nas bobinas das nacelas. A contenção comum não serve para isso.
–Então, como controlar tudo isso? – perguntou Henschel.
–É preciso que haja uma matriz neutra através da qual grande quantidade de antimatéria possa circular e encontrar-se com a matéria sem provocar um desastre. Este elemento é um mineral cristalino que para nós é a única substância no universo capaz de segurar a antimatéria e que chamamos Diankrap.
–Parece-me algo assim como bi-urânio – interveio Regina – ankrap em alakrano significa ranaeraclvuro; urânio em raniano.
–Deve ser – disse o cientista xawarek, e acrescentou:
–Submetendo o ankrap à hiper-pressão do plasma de dobra este se cristaliza e perde a radiação, transformando-se num cristal amarelado inofensivo. Existe puro em alguns planetas, mas é raro e difícil de achar.
-Ele controla a antimatéria e gera o plasma que pode ser armazenado; mas sem o plasma o diankrap não pode ser gerado. Portanto é preciso consegui-lo puro em forma cristalina natural para começar a reação do reator.
-Coletores serão instalados nas nacelas para coletar matéria interestelar durante a caçada. Quanto á antimatéria, sei que vocês conseguem produzi-la e controlá-la, embora em ínfima quantidade, mas esse não é nosso maior problema, senão conseguir diankrap. Sem ele não podemos iniciar o circuito.
-Por isso faço questão de melhorar os sensores disponíveis, que são fundamentais para localizar os cristais em estado natural neste sistema, se os houver. Uma vez em funcionamento o reator de dobra, isto não é mais necessário, porque a nave pode fabricá-lo a partir do ankrap inteiro.
-Além do mais, se não houver mais ankrap para cristalizar, e os cristais se racharem, podem ser re-cristalizados, repressurizando-os com radiação. É difícil e demorado, mas pode ser feito.
–Um dilema – disse Henschel.
–Sim – disse o siriano – precisamos chocar o ega da blenfa para a blenfa nascer e pôr o ega, mas sem a blenfa para pôr o ega; não há ega para chocar.
A analogia da fêmea do hod-do provocou a descontração do ambiente e todos riram, bem na hora em que Valerión entrava na sala.
–Está animada a reunião! – disse o cientista terrestre – cheguei bem na hora?
–Está muito atrasado – disse Aldo.
–Perdi muito?
–Nem imagina, Valerión.
–Vejo que Regina está gravando.
–Está. Onde estava?
–Em Taônia. Depois te conto.
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Quando se fez o silêncio, Zyphran retomou seu discurso:
–A matriz de diankrap injeta a antimatéria na matéria de maneira lenta e
segura no reator para gerar plasma, que é fácil de controlar; o qual carregará as bobinas de dobra das nacelas, que deverão estar a distância segura do casco, segundo a potência das mesmas. As nacelas projetam adiante o hiper-campo que gera uma anomalia no subespaço pela qual a nave entrará em impulso máximo como eu já disse.
-Dependendo da potência das bobinas, a capacidade de dobra poderia ir de dobra 1,0 à teórica dobra 9,9999 o máximo que alcança a física conhecida. Comentava-se há milhares de ciclos que os alakranos viajavam em transdobra 3,0; mas isso talvez seja lenda.
-A verdade pode ser mais simples; eles podem ter encontrado uma anomalia estável para vir aqui. Contudo, eles moravam num quadrante, que pelas suas medidas, está a uns 25.000 anos luz. Para nós isso é inatingível por enquanto. Por último vamos tratar do tamanho das naves estelares.
–Estas deverão ser grandes, para conter a enorme engenharia necessária para alcançar dobra máxima. Como eu já disse, por enquanto não há condições, visto os parcos recursos com que contamos. Quanto maior a nave, mais espaço da engenharia.
-Um motor de dobra com capacidade de chegar longe a máxima velocidade; necessita espaço para armazenar o núcleo e o plasma de dobra. O tempo em que se pode manter a velocidade; é limitado pela resistência da matriz cristalina, que pode se partir; e a das bobinas que podem fundir-se pela sobrecarga.
-Vocês lidam com alguns poucos átomos de antimatéria. Nós precisamos grandes quantidades e grandes campos de contenção. Pode-se construir um reator menor que pode caber em naves como as de vocês, mas o máximo que se poderá atingir será dobra 2,0 ou 3,0 com um pouco de sorte. Para voltar a Xawarek será suficiente, embora não consigamos colocar toda nossa gente nelas. Faremos muitas viagens, a não ser que façamos uma nave grande.
–O quê é preciso para fazer uma nave grande? – perguntou Aldo.
–Uma nave para 2000 seres deverá ser montada em órbita. Sua engenharia consumiria muito material e tempo. Se estiver disposto a trabalhar muitos ciclos...
–Vamos ficar muito tempo nestas luas e precisamos ocupar esse tempo até estarmos prontos para voltar ao nosso planeta ou seguir adiante – disse Aldo – há filhotes para nascer; há esta base para terminar; há a estação orbital e a doca espacial para iniciar; há sua nave e as nossas para construir.
–Muito tempo? – perguntou Zyphran.
–Temos todo o tempo do mundo para trabalhar nos projetos – retrucou Aldo com otimismo – vocês estão aqui há muitas eras. Alguns ciclos não farão diferença.
Zyphran e Kern Mokvo trocaram olhares e rosnaram. Por fim o cientista de Sírio disse, mostrando os enormes dentes afiados:
–Por que não?
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Continua em: A GRANDE CAÇADA
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O conto AULA MAGNA - forma parte integrante da saga inédita Mundos Paralelos ® – Fase I - Volume III, Capítulo 24; páginas 96 a 101; e cujo inicio pode ser encontrado no Blog Sarracênico - Ficção Científica e Relacionados:
http://sarracena.blogspot.com.br/2009/09/mundos-paralelos-uma-epopeia.html
O volume 1 da saga pode ser comprado em:
clubedeautores.com.br/book/127206--Mundos_Paralelos_volume_1