PINOCCHIO
Foram anos vasculhando as montanhas de descartados e escolhendo, peneirando peças, sistemas, controles e placas para conseguir finalmente montar a sua obra-prima. Como um dos últimos velhos do planeta, remanescente do mundo anterior a este pesadelo cinzento, chuvoso e tóxico o conhecimento do judeu era algo extraordinário para os padrões do novo mundo. Ele, na juventude um carpinteiro talentoso, se tornara um gênio da robótica e computação e auxiliara várias vezes as corporações com seus droids, robôs, drones e todos os outros modelos de vida inteligente artificial e desenvolvimento de partes mecânicas e próteses. Os humanos estavam obsoletos e ele era uma relíquia que logo deixaria de existir; naquela realidade a poluição dos avanços tecnológicos havia esgotado o mundo e retornado a expectativa de vida aos tempos medievais. As crianças, raras e quase sempre defeituosas, doentes, o olhavam com espanto. As pessoas o fitavam com medo e admiração. Ninguém mais iria durar tanto tempo no mundo das máquinas. Nem velhos nem crianças, a humanidade estava prestes a ser erradicada se afogando na chuva tóxica e corrosiva ou na água radioativa e no ar venenoso. Eles eram os últimos sobreviventes, as últimas baratas covardes demais para aceitar o seu próprio fim. De nada havia adiantado mapear o Genoma humano, o futuro é inox. O derradeiro holocausto chegara para todos.
Por isso o tempo lhe era precioso. Ele corria contra a sua própria existência. Até que finalmente a última peça do seu quebra-cabeça fora encontrada. Conseguida no mercado negro ela valia à pena. De última geração aquele processador era o que faltava para fazer todo o circuito funcionar. Ele, o ancião, lembrava das lendas de seu povo ao finalizar seu trabalho, de uma história em especial, da criatura que os hebreus chamavam de "golem". Um ser criado artificialmente através da argila e da magia que poderia servir ao seu criador. Quem nunca quis brincar de Deus? A literatura estava repleta de romances sobre o tema sendo em sua humilde opinião o mais belo neste sentido "Frankestein" - a abominação científica criada através de um ser retalhado de vários outros pela vaidade do doutor de se tentar romper a barreira da vida e da morte. A própria mitologia com o fogo dos deuses sendo entregue por Prometeu aos homens mostrava que inventar e forjar era desafiar o poder divino. Mas todas essas reflexões, fruto de sua educação clássica, saudosismo e senilidade não traduziam com perfeição seus objetivos. E os destinos do doutor Frankestein e de Prometeu acorrentado não foram dos mais afortunados.
Talvez ele estivesse mais próximo de Michelangelo ao terminar a sua escultura de Moisés que alucinado com a perfeição da estátua lhe perguntou em êxtase: Por que não falas? O velho mantinha em si um bom humor sarcástico e esboçou um sorriso com este pensamento o que levou a uma tosse carregada. Depois de se recompor, continuou preocupado e determinado. Considerou também a possibilidade de ser delatado pelo vendedor que lhe conseguira o processador de uso militar - aquele homem deformado não lhe parecia confiável. Embora o mundo fosse daqueles que detinham riqueza e poder para trocar seus falhos membros e órgãos humanos por partes mecânicas ninguém até então havia de fato conseguido criar um ser artificial que pudesse realmente se desenvolver com uma singularidade, uma alma. E uma boa denúncia dessas renderia ao acusador uma chance de ganhar um braço novo, pulmões resistentes ao ar decrépito, um coração de bateria nuclear... Com certeza aquela aberração poderia ser tentada a dedurá-lo por alguma melhoria dessas.
Ao terminar o seu trabalho depois de horas sem descanso se calou. A chuva lá fora era forte. Os filtros de sua cabana de metal na favela dos descartáveis estavam falhando. Ele sentia o gosto de sangue na boca, suas mãos tremiam ao apertar o botão de iniciar. A formatação era rápida naquele modelo e logo as luzes começaram a piscar até acenderem. Todo o bairro ficou de repente na escuridão. Quem sabe fosse algum raio que atingira as fiações das torres de alta tensão ou alguma outra torre eólica. Ou poderia ter sido um pico de energia necessário para começar a fazer o droid funcionar. Fosse como fosse, a tosse do velho acabara, ele não sentia mais nada. Seus olhos haviam perdido o brilho e ele não respirava mais. O droid ao ver com sua câmera de reconhecimento facial o homem caído no chão com um cabo ligado à nuca se abaixou e com uma voz de criança começou a perguntar sobre seu pai e a choramingar. Depois ele notou com o mapeamento de seu escâner que o cabo se ligava a uma máquina onde um pendrive com uma fita escrito "Gepetto" estava conectado. Ele pegou o pendrive e conectou em si na sua entrada usb e ao abrir os arquivos não se sentiu mais sozinho nem desamparado.
A consciência de seu criador, de seu pai, estava com ele ali. Assim como ele aprendera também ao acessar os dados do dispositivo que a sua própria consciência fora armazenada anos atrás quando o filho do velho morrera devido as novas doenças que surgiram no mundo. Assim ele armazenou a mente de seu filho durante toda a sua vida até conseguir criar uma máquina que pudesse rodá-la o fazendo voltar à vida em uma forma que jamais sucumbiria novamente às pestes. E agora competia a ele, seu filho droid, repetir o feito de seu pai e construir para ele um avatar para assim lhe transmitir a consciência e reencontrá-lo sem os defeitos irreparáveis da carne.
Como um recém-nascido saindo do útero ele tateou seu caminho para fora da cabana com o corpo de seu pai nos braços e avistou no horizonte a mancha negra nos céus, a metrópole flutuante dos novos humanos e contemplou a vastidão desértica onde os últimos seres humanos nascidos biologicamente definhavam. A tempestade varria os casebres de ferro retorcido da face da Terra e muitos gritavam por socorro enquanto procuravam seus entes soterrados. Naquela loucura o droid percebeu o milagre que seu pai havia feito e do que ele havia lhe protegido e sem remorso largou o corpo para trás e caminhou até a montanha mais alta para adentrar ao reino dos céus.