O AMULETO
 

 
Quando eu saia às duas horas da madrugada teria que passar novamente naquela rua perigosa próxima ao bairro onde morava há três semanas.  A pura verdade é que nunca me senti bem ao caminhar sob a claridade da lua e das luminárias foscas dessa cidade de concreto, principalmente quando as sombras furtivas de malandros noturnos insistiam em me botar medo. Eu já era freguês de moleques insolentes com armas em punho altas horas da noite me abordando e me roubando impunemente.
A noite nunca foi o meu ambiente preferido, mas, as dificuldades me levaram aquele trabalho noturno, inclusive durante alguns finais de semana. Era o trabalho duro na fábrica e depois voltar para casa altas horas, seguindo sempre o mesmo caminho.
Alguns devem perguntar o motivo de me sujeitar a um trabalho desses, e às vezes deixar sempre uma parte do salário do mês nas mãos de algum sujeito mal encarado que te abordou naquela noite em que você não estava com sorte.
A rotina de ouvir um “perdeu, passa a grana!” de algum modo já se tornaram mecânicas. Sabendo dos perigos logo entregava todo o dinheiro aos bandidos que sempre agiam em dupla; eles ficavam de tocaia como predadores esperando a próxima vítima naquela rua escura, da qual provavelmente eles mesmos haviam quebrado todas as lâmpadas dos postes de iluminação.
Uma noite dessas; um corajoso colega de trabalho incrédulo de minhas histórias de assaltos constantes, resolveu me acompanhar durante a volta pra casa seguindo por aquele beco mal iluminado em direção à zona norte da cidade.
Seguimos o mesmo caminho costumeiro, no entanto quando fomos abordados por dois sujeitos mascarados com armas em punho, percebi que meu colega não reagiu, ele apenas tentava dialogar com os meliantes.
Foi uma coincidência incomum aquilo que vi de olhos arregalados.
Os malandros ficaram de olhos vidrados e abaixaram as armas nos deixando passar, acatando o que ouvi incrédulo meu colega falar, “Eu quero que abaixem as armas e nos deixem passar” disse ele com se desse uma ordem.
De algum modo os bandidos ouviram pacificamente, e o mais incrível é que os sujeitos pareciam que estavam hipnotizados, quase não acreditei quando nos deixaram passar.
Então, muito trêmulo, vi os dois assaltantes com passos largos sumirem na escuridão do beco.
Pela primeira vez, em três semanas não tinha sido assaltado, quando já nos aproximávamos de onde morava, meu colega me contou o motivo daquela noite eu não ter sido roubado.
Fiquei estupefato quando escutei a história incrível contada depois que o vi puxar de dentro do uniforme azul aquele patuá, um amuleto com inscrições e uma estrela de cinco pontas totalmente estranho.
Disse-me que o estranho amuleto que carregava foi conseguido de uma velha cigana acampada nos arredores da cidade, contando-me em seguida uma história fantástica.
Foi difícil acreditar naquela história. Entretanto no dia seguinte ele convidou-me para ir até ao acampamento cigano e conhecer a feiticeira.
Foram quarenta minutos de táxi, depois de desembarcarmos foram mais meia hora de caminhada até onde os nômades estavam acampados.
O acampamento cigano foi logo alcançado, ficava no meio daquela pequena mata existente depois da rodovia.
Quando chegamos perto das tendas, notamos que um homem com trajes típicos segurava um enorme cão negro preso por uma grossa corrente de aço, ao nos aproximarmos o cão começou a latir sem parar, um latido grosso estridente que mais parecia um rugido. Então ouvi espantado o cigano sussurrar uma frase curta ao cão, em seguida o animal ficou silencioso como se tivesse entendido aquelas palavras secretas.
O nômade prendeu o animal feroz aproximando-se de meu amigo. Eu havia ficado mais afastado e vi quando um dedo foi apontado pra mim e um rosto moreno de olhos negros com um lenço azul amarrado na cabeça ficar sisudo de repente. Depois de uns minutos de conversa fomos conduzidos até a tenda daquela velha cigana da qual ele me falara, sendo acompanhados de longe pelo cigano que nos recebera e que novamente segurava o enorme cão negro rugindo em nossa direção.
Quando adentramos a tenda da feiticeira, apesar de lá fora o sol ainda estar alto, dentro da casa de lona vermelha me pareceu que era noite.
No interior da tenda, havia um candelabro com cinco velas bruxuleantes iluminando o rosto da cigana sexagenária e, fiquei espantado como o interior daquele lugar escuro forrado de estrelas brancas e amarelas que pareciam emitir um brilho imitando perfeitamente o céu estrelado.
Próximo da entrada da tenda havia uma mesa de madeira rústica, e sobre ela uma bola de cristal de variadas cores flutuando e também muitos tecidos e lenços multicoloridos.
A cigana logo reconheceu meu amigo e perguntou com uma voz rouquenha num sotaque nitidamente castelhano, o que teria trazido ele a sua casa novamente.
Sem perda de tempo fomos direto ao assunto do amuleto, eu queria um patuá igual aquele disse sem pestanejar; a mulher de pele morena enrugada coçou por um instante a cabeça coberta por um lenço vermelho e arregalando os olhos foi logo dizendo que precisava de um motivo para me dar o tal amuleto.
Então, contei a ela sobre o que acontecera na última noite enquanto voltava do trabalho acompanhado de meu colega e do amuleto que ele carregava no peito, explicando para a cigana que já estava cansado de deixar todo o dinheiro suado nas mãos dos malandros que me atacavam durante a volta do trabalho. Ao ouvir aquilo a mulher se dirigiu até um baú enorme, ao abrir a pesada tampa vi espantado brotar uma espantosa claridade dourada de dentro do baú.
A cigana iluminada por aquela estranha luz dourada curvou-se e agarrou um amuleto dourado com uma estrela de cinco pontas e cheio de letras misteriosas; aproximou-se, e me deu o objeto pedindo para deixar uma doação, explicando-me rapidamente sobre a mágica do amuleto.
Dei todo o dinheiro que havia sobrado da última noite, em seguida saímos da tenda da velha feiticeira.
A hospitalidade dos nômades não foi de modo algum o mais estranho, nem a facilidade com que consegui o patuá, foi quando saímos da tenda percebi que o sol já havia declinado no horizonte e a lua majestosa pousava no céu, já era de madrugada. Aquilo realmente me deixou encucado, de algum modo achava que havíamos acabado de entrar na tenda.
A cigana nos seguiu até a porta da tenda com uma lamparina, e vimos quando o outro cigano segurando o enorme cão negro se aproximou dela. Apressamos o passo e adentramos o mato em direção à rodovia. Lembro-me claramente quando escutei o enorme cão negro uivando, e senti um calafrio quando olhei e vi aqueles olhos reluzentes nos perseguindo pela mata e sumindo de repente assim que chegamos à rodovia. Depois de uma ligação, o táxi logo chegou e fomos embora daquele local.
Os fantásticos acontecimentos das noites seguintes foram místicos, de posse do amuleto conseguido com a cigana, durante a volta do trabalho eu parecia que havia me tornado invisível para os bandidos que frequentavam aquele beco.
Eu vi um deles de olhos arregalados apontar para minha sombra fazendo o trajeto, onde estavam acostumados a me abordar e roubar todo o dinheiro.
— Olhe aquilo!
Foi o que disse um deles ao ver a sombra ondular sob a luz fraca do poste de iluminação.
Só sei que nas noites que se seguiram um deles chegou a abordar aquela sombra, e incrédulo tentou entender a sombra furtiva sumindo na rua com pouca claridade, como se fosse uma assombração das trevas. E o mais incrível, os assaltantes agora não me viam e de algum modo aquele amuleto me tornara invisível.
A notícia de certo modo se espalhara entre os maus elementos frequentadores do bairro. Uns policiais ouviram o relato de um assaltante preso recentemente, sobre a sombra que caminhava durante altas horas da madrugada pela rua pondo medo e espantando uma corja de bandidos que costumavam atacar os que se aventuravam em passar naquele bairro de madrugada. Mas o que os policiais viram os deixou intrigado, eles apenas me viram caminhado para casa, e chegaram a me abordar perguntando se eu fazia sempre aquele trajeto questionando se havia visto a sombra.
Um fato extraordinário foi na noite seguinte, quando Lis, uma colega de trabalho que havia se mudado para o mesmo bairro onde eu morava pediu para me acompanhar durante a volta do trabalho.
Eu havia ficado invisível para os malandros que já faziam plantão ali, a Lis conseguia me ver e me acompanhava caminhando. De um modo espantoso o amuleto me tornava invisível somente para os bandidos, no entanto Lis foi vista quando me acompanhava enquanto cruzávamos a avenida em direção ao beco.
Os criminosos acostumados com o trajeto, quando viram a moça sozinha chegaram cheios de coragem e a abordaram logo pedindo o dinheiro ou coisas ruins iriam acontecer com ela.
Uma lâmpada num poste distante iluminava a carranca dos dois ratos de esgoto, um deles era corpulento de estatura baixa e estava com uma camiseta sem manga mostrando os braços musculosos, o outro era um velho sórdido atarracado com a barba por fazer a dias e um boné com a aba virada, ele grunhiu algumas palavras podres para moça apavorada, eu imediatamente falei para ela se acalmar.
Ao ouvir aquela voz soar do nada, já que eles não me viam, o velho que era o mais baixo deles disse com os olhos arregalados: “Ei moça, porque fala como se tivesse mais alguém aqui?” Naquele instante foi que dei uma gravata no musculoso, ele se debateu segurado por uma mão invisível.
O velho quando viu aquilo começou numa tremedeira e saiu correndo em disparada com se tivesse visto um fantasma, segurei o criminoso até ele desmaiar. Rapidamente levei Lis em segurança até a casa onde morava, o amuleto mágico me tornara invisível, e nas noites seguintes comecei a imaginar o que poderia fazer com todo aquele poder.
Uma noite dessas eu vi quando os ciganos se mudaram, eu os vi passar em frente à minha rua indo em direção ao beco. A curiosidade me fez segui-los, por incrível que pareça em pleno século vinte um os nômades ainda usavam cavalos e carroças. Trafegar de madrugada pelo beco era suicídio, pensei. Ouvi o cavalgar silencioso e o ranger sinistro da carroça trilhando o caminho para sair da cidade, a saída passava por aquele beco perigoso em frente à fábrica onde trabalhava.
Segui os nômades até o beco, e fiquei escondido.
Então eu vi quando quatro malandros abordaram a carroça e cheios de coragem mandaram a mulher descer.
O que aconteceu em seguida talvez ninguém acredite. Diante de meus olhos arregalados eu vi aqueles quatro malandros apontarem suas armas na direção do cigano que conduzia a carroça, gritando para entregar o baú com todo o dinheiro.
Os ciganos são gente misteriosa e sua origem é tão obscura quanto suas histórias;
Naquele momento me enchi de coragem e resolvi ajudar os nômades caminhando na direção da carroça.
Foi impressionante o que vi acontecer em seguida; apesar do céu estar escuro como o breu, consegui ver o cigano segurando um enorme baú com uma das mãos, ele não parecia ser tão forte; quando jogou o baú diante dos bandidos; aquilo fez eles ficarem de olhos arregalados, pois de dentro do enorme baú emanava um claridade dourada que talvez os tenha deixado hipnotizados.
Eu já estava bem próximo quando vi aquela luz sugar os quatro maus elementos para dentro do baú, eles foram devorados pela luz dourada que os deixara hipnotizados; os ciganos me viram e disseram para aproximar-me. Aquele espetáculo de mágica realmente me fascinou, e ouvi da boca da cigana algo que me deixou assombrado.
Apesar de não serem desse mundo eles já estavam aqui há séculos, devido a um incidente no passado, o incidente ocorrido os deixou presos neste mundo e os obrigou a vagar por centenas anos até os dias de hoje.
Em seguida, muito impressionado com tudo aquilo vi a cigana embarcar novamente na carroça acompanhando o outro nômade; na parte de trás da carroça estava ele, preso em uma grossa corrente de aço, olhos reluzentes e latido estridente me olhando com aqueles olhos sinistros de planetas perdidos, o cão negro!
Então, eu fiquei parado perplexo olhado a carroça coberta com lona sumindo na escuridão do beco, e no fundo da carroça os olhos vermelhos do cão negro pareciam me vigiar.
Continuei usando os poderes ocultos do amuleto; no entanto depois daquela noite nunca mais vi os nômades novamente.
FernandoCreed
Enviado por FernandoCreed em 07/12/2016
Reeditado em 28/03/2017
Código do texto: T5846399
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